As visões de ciência de Thomas Kuhn e Gaston Bachelard

“Em primeiro lugar, ambos trabalham com o binômio ruptura-continuidade quando refletem sobre o desenvolvimento da ciência e do indivíduo. Já explicitamos de que modo isso aparece na epistemologia kuhniana, na qual a mudança entre paradigmas requer uma ruptura. Embora Kuhn enfatize a idéia de “comunidade científica”, deixa claro que o indivíduo particular deve ser convertido ao novo paradigma, e discute, como vimos, “boas razões” para essa adesão. Isso significa que a ruptura dá-se na ciência como um todo e no indivíduo, em particular. Bachelard, embora não se utilize da noção de paradigma, defende também a idéia de ruptura, que para ele significa um rompimento com os obstáculos epistemológicos que se colocam para o indivíduo. Sua ênfase encontra-se no indivíduo, no espírito científico que evolui superando obstáculos. E nos fala também ele de uma “conversão”:

Todo o progresso real no pensamento científico necessita de uma conversão. Os
progressos do pensamento científico contemporâneo determinam transformações nos próprios princípios do conhecimento.”

A idéia de continuidade parece-nos ainda mais clara em Bachelard, uma vez que
no conceito de perfil epistemológico está garantida a permanência das diversas doutrinas filosóficas. Isso representaria um tipo de continuidade conceitual no indivíduo, uma vez que os conceitos “ultrapassados” continuam fazendo parte de sua estrutura cognitiva, podendo ser usados tanto em sua linguagem cotidiana como na resolução de problemas científicos. O “alargamento” filosófico proposto por Bachelard por meio de sua filosofia do não esclarece-nos acerca da natureza da continuidade existente, por exemplo, entre a mecânica newtoniana e a relatividade, que representa um tipo de continuidade conceitual na ciência, não deixando, ao mesmo tempo, de destacar a ruptura existente entre uma e outra.

Esse segundo tipo de continuidade é apontado por Kuhn quando afirma que um paradigma conserva boa parte das realizações científicas passadas, e que o “novo” conhecimento sempre resgata parte do anterior, sob nova ótica. No entanto, o autor não
aprofunda muito a natureza desse “resgate”, e foi justamente nesse ponto que consideramos oportuna a introdução de algumas idéias de Bachelard. Quanto ao primeiro tipo de continuidade, ou seja, a continuidade conceitual no indivíduo, Kuhn parece contradizer as teses de Bachelard ao defender que o cientista normal é um devoto exclusivo de um paradigma. A questão é complexa, pois não há correspondência direta entre o “paradigma” kuhniano e a “doutrina filosófica” bachelardiana.

A contradição tende a desaparecer se assumirmos um ponto de vista “bachelardiano”, numa tentativa de “alargar” a posição de Kuhn. Afirmaríamos então que o cientista normal pode, por vezes, utilizar-se de paradigmas “ultrapassados”, do mesmo modo que se utiliza de noções filosóficas “ultrapassadas”. No lançamento de um satélite, por exemplo, pode não ser necessário fazer uso de correções relativísticas, o que garante a aplicação do paradigma newtoniano. Os cientistas envolvidos podem,certamente, pensar, agir e comunicar-se de forma newtoniana ao levar a cabo tal atividade. Isso não significa que não haja um paradigma dominante, pois o cientista sabe que está aplicando parte de um paradigma “ultrapassado”. Ainda que não tenha essa clareza durante todo o tempo, tomará o devido cuidado ao escrever um trabalho científico a respeito. Pode-se estabelecer aqui, inclusive, um paralelo com um estudante
principiante de física que, em situações de sala de aula, utiliza corretamente a física newtoniana na solução de exercícios típicos, e deixa transparecer a física aristotélica em situações não convencionais.

São os protagonistas de revoluções, entretanto, que nos evidenciam de forma maiscontundente como noções filosóficas e paradigmas diferentes podem conviver em um mesmo indivíduo. Kuhn salienta a existência de “debates filosóficos” nos momentos de transição. A “ciência extraordinária” é um momento propício para aflorar esse tipo de discussão. Encontramos em Galileu, Planck e Bohr, entre outros, fortes evidências em favor dessa análise, que seria uma interpretação bachelardiana tanto do espírito que
articula a ciência normal quanto daquele associado às revoluções científicas.

Chamamos a atenção, nos parágrafos anteriores, para a continuidade existente apesar das rupturas, para a sutil continuidade entre paradigmas incomensuráveis, que pode variar de intensidade e natureza (conceitual, ontológica, formal-matemática etc). Haveria ainda espaço para falarmos em outro tipo de continuidade, presente nos períodos de “calmaria” representados pela prática da ciência normal. Essa seria um tipo
explícito de continuidade, é a própria articulação do paradigma. É, mais apropriadamente, um continuísmo. É essa continuidade que Kuhn caracteriza como um aspecto cumulativo da ciência normal.

A análise precedente parece-nos relacionar, por fim, as visões do processo ruptura-continuidade em Kuhn e Bachelard, complementando-as. Contudo, não se dá essa complementação de modo tácito, restando uma vastidão de problemas filosóficos “abertos”. Por exemplo, o das possíveis relações entre a noção de “paradigma” e a idéia
de “doutrina filosófica”.

O caráter conservador da atividade científica é bastante evidente na visão kuhniana. Já Bachelard não segue esse caminho, mas deixa claro que, se deve haver rupturas, é porque há obstáculos colocados pela própria prática científica. Ao discutir o conceito de “massa negativa” de Dirac, por exemplo, afirma que para o cientista do século XIX esse conceito pareceria “monstruoso”, e seria considerado um erro fundamental. Não seria essa uma situação na qual a ciência normal procura afastar uma anomalia, desconsiderando-a, tratando-a como não-científica? As dificuldades de superação de um racionalismo simples em direção ao ultra-racionalismo evidenciam como:

“(...) as filosofias mais sãs como o racionalismo newtoniano e kantiano podem, em determinadas circunstâncias, constituir um obstáculo ao progresso da cultura.”

Vemos também profundas semelhanças entre a noção de incomensurabilidade de Kuhn e a idéia de transcendência presente em Bachelard. Os dois autores certamente concordam no que se refere à existência de mudanças nos significados de conceitos como espaço, tempo, massa, energia etc, quando analisamos comparativamente as mecânicas de Newton e de Einstein. Entretanto, Kuhn fala de uma transformação radical
na visão de mundo do cientista, que passa a viver num “mundo diferente” com a mudança de paradigma. Bachelard não parece ir tão longe, preocupado que está em evidenciar o “alargamento” dos conceitos, característico do novo espírito científico. Ambos, no entanto, concordam quanto à existência de mudanças ontológicas.

Outro ponto importante a considerarmos aqui é em que medida a concepção de progresso filosófico em Bachelard aponta um “destino”, um fim último. Seria o ultra-racionalismo o estágio final da evolução? Essa é uma questão polêmica, pois vimos que
a concepção “evolucionária” do progresso científico, presente em Kuhn, refere-se a uma evolução a partir de, e não em direção a. No entanto, parece-nos prematuro atribuir essa idéia “finalista” para a hierarquia proposta por Bachelard. Em nenhum momento ele parece conceber o ultra-racionalismo como algum tipo de “limite superior” em termos de doutrinas filosóficas, colocando um fim ao progresso filosófico dos conceitos. Sua preocupação é, antes, de caracterizar um “novo espírito científico” que surge, e de analisar as bases filosóficas que o sustentam, e que refletem o desenvolvimento histórico correspondente.

Bachelard não “dita regras”, e a própria natureza de sua filosofia do não nos
parece proibir uma interpretação pretensamente mais “fechada” da proposta bachelardiana. Ousaríamos dizer que o progresso para Bachelard é, sim, “em direção a”: mas em direção a uma filosofia aberta que reflete uma racionalidade que se complica, desdobra-se e multiplica as próprias direções possíveis para uma compreensão posterior dos conceitos.

Há uma evolução não em direção à verdade, à compreensão absoluta da natureza,
mas em direção à multiplicidade de direções, ao não-absoluto, no sentido da complicação e do desdobramento que os conceitos e teorias sofrem ao longo desse processo. O progresso é epistemológico, e não ontológico, o que nos lembra novamente as idéias de Kuhn, quando defende que a sucessão: teoria aristotélica, mecânica de Newton, e relatividade, não representa uma “direção coerente de desenvolvimento ontológico”.

Certamente encontraremos, em ambas as epistemologias, uma série de
implicações de natureza educacional. Kuhn e Bachelard ainda têm, nesse aspecto, muito a nos dizer. Deixaremos, entretanto, para um capítulo posterior essas considerações. Por ora, gostaríamos de finalizar com uma pergunta: poderia haver melhores maneiras de promover o progresso científico?

No posfácio de A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn relata algumas críticas recebidas por seu trabalho, acusando-o de estabelecer uma confusão entre o descritivo e o normativo, entre o “é” e o “deve ser”. Vejamos então o que ele diz:

As páginas precedentes apresentam um ponto de vista ou uma teoria sobre a natureza da ciência e, como outras filosofias da ciência, a teoria tem conseqüências no que toca à maneira pela qual os cientistas devem comportar-se para que seu empreendimento seja bem sucedido. Embora essa teoria não necessite ser mais correta que qualquer outra, ela proporciona uma base legítima para o uso dos “o que poderia ser” (should) e “o que deve ser” (ought).”

O autor defende sua teoria dizendo que os cientistas comportam-se como ela prescreve. Na realidade, parece realmente possível fazermos leituras da obra de Kuhn bastante diferentes, que vão desde uma crítica contundente à prática científica até uma
prescrição do fazer científico, passando por uma simples descrição despretensiosa.

Há, sem dúvida, “boas razões” para aderirmos a esse “paradigma epistemológico”. A principal delas é que (e esperamos tê-la justificado suficientemente!) a proposta de Kuhn parece-nos descrever adequadamente o trabalho dos cientistas e permite-nos compreender a evolução histórica da ciência. Embora essa teoria “não necessite ser mais
correta que qualquer outra”, compartilhamos com ela uma concepção de como é a ciência. Mas a nossa leitura da obra de Kuhn não nos permite encará-la como uma prescrição, tampouco despretensiosa. Pelo contrário, tomaremos muitas de suas falas como críticas severas quando, em seguida, discutirmos uma concepção educacional que se pretenda transformadora. Sua epistemologia é tomada por nós não de uma forma dogmática, fechada. Resguardamo-nos o direito de incorporar a ela elementos importantes de outras epistemologias, de maneira que, parafraseando Bachelard, essa diversidade permita-nos esclarecer as diversas “faces” da ciência.

Desse modo, quanto à questão colocada acima (poderia haver melhores maneiras de promover o progresso científico?), o trabalho de Kuhn não nos permite estabelecer conjecturas, respondendo talvez com um histórico “não”. Mas a epistemologia de Bachelard parece em alguns momentos pregar uma atitude mais crítica e transformadora
por parte do cientista. No debate entre realismo e racionalismo, com respeito ao conceito de massa, ele deixa escapar que:

Só existe um meio de fazer avançar a ciência; é o de atacar a ciência já constituída, ou seja, mudar a sua constituição.”

Com isso queremos salientar que, embora a idéia de progresso histórico da ciência seja um elo de ligação entre Kuhn e Bachelard, suas diferentes abordagens sugerem respostas contrárias para a questão colocada por nós. A citação acima parece contradizer a prática da “ciência normal”. No entanto, Bachelard não aprofunda essa questão, não estabelece “diretrizes” claras para a prática posterior da ciência, ainda que aponte o aprofundar do pensamento racional.

Consideramos, no entanto, suficientemente apresentada, para os nossos propósitos, a nossa concepção de ciência e de seu desenvolvimento. Contudo, face a essa última polêmica, apresentaremos a seguir uma resposta possível, a partir da análise de algumas idéias defendidas por Paul Feyerabend. Isso levar-nos-á a novas conclusões..."

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É isso!


Fonte:
ANDRÉ FERRER PINTO MARTINS: “O ENSINO DO CONCEITO DE TEMPO: CONTRIBUIÇÕES HISTÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS”. (Dissertação apresentada ao Instituto de Física e à Faculdade de Educação como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ensino de Ciências – Modalidade Física. Banca Examinadora: Prof. Dr. JOÃO ZANETIC (Orientador) Profª. Drª. HERCÍLIA TAVARES DE MIRANDA Prof. Dr. MANOEL ROBERTO ROBILOTTA). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

Um comentário:

  1. Parabéns pela publicação deste texto. Muito esclarecedor e com linguagem acessível. João Paulo Barbosa

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