Raça e população no pensamento de Roberto Simonsen

"Em sua “História Econômica do Brasil”, quando, na página 33, trata do problema da colonização nos Estados Unidos, Simonsen afirma que a zona temperada do país teria contribuído para “evolução biológica” dos imigrantes europeus, “mesmo sem cruzamento”. Para ele, o “meio físico em tudo facilitava” a vida do imigrante nos Estados Unidos, enquanto o Brasil se constituía em um “meio pouco atraente ao elemento europeu”.

Duas conseqüências podem resultar das afirmações acima descritas. Uma delas se refere ao tema do determinismo geográfico, analisado no primeiro capítulo deste trabalho. A outra é a que nos interessa neste capítulo. Ao afirmar que houvera uma melhoria da evolução européia nos Estados Unidos, “mesmo sem cruzamento”, leva-nos a deduzir que ele esposava algumas das teorias que sustentavam a miscigenação como forma de fortalecimento racial para o enfrentamento dos climas inóspitos dos trópicos. Como exemplo de seguidores destas teorias, podemos citar Silvio Romero, que acreditava ser a miscigenação o centro da história brasileira, ou, ainda, se quisermos exemplo às avessas, podemos falar de Nina Rodrigues, que contradizia “frontalmente a opinião geral de que a miscigenação havia ajudado a raça branca a adaptar-se e a sobreviver no Norte tropical do Brasil”. A miscigenação também era condenada pelos representantes da lavoura paulista dos anos de 1920, que acreditavam que o cruzamento entre as raças diminuía a “vitalidade individual” e “acarretava perturbações de ordem psíquica muito graves”. Acreditavam que o Brasil possuía uma nacionalidade em formação, idéia esta também presente em Oliveira Vianna, que, ao apontar a “multiplicidade de tipos antropológicos” na sociedade brasileira, afirmava ser “extremamente árdua a fixação do nosso tipo nacional”.

Podemos achar outras considerações de ordem racial na obra de Simonsen, tais como a formação do brasileiro a partir das três raças, a incompatibilidade das instituições políticas e econômicas importadas diante do atraso das raças no Brasil, o canibalismo dos índios, sua mentalidade primitiva e sua fragilidade física para o trabalho sedentário, ou, ainda, o sacrifício dos brancos, tão grande como o dos negros e índios ao serem submetidos no processo de colonização.

Entretanto, há dois momentos em sua obra em que é francamente caudatário do pensamento racial brasileiro. Um primeiro momento diz respeito à hierarquização entre superior e inferior como medida dos resultados econômicos. Transcrevemos as palavras de Simonsen em “História Econômica do Brasil” por julgarmos bastante exemplar:

A lei do menor esforço, observa George Scelle, sempre atuou na produção econômica. No domínio social, ela se traduziu no aproveitamento de uma superioridade física, moral ou legal para a apropriação, com um mínimo de esforço, de máxima utilização do trabalho alheio.Resultou de sua influência que a parte mais penosa do trabalho foi transferida para aqueles que a natureza ou a organização social colocou em estado de inferioridade. E a remuneração seria tanto mais fraca quanto mais acentuada essa inferioridade
. (SIMONSEN, 1978:140 – grifos nossos).

Pode-se observar no trecho transcrito acima que a construção de uma ordem social hierarquizada é o resultado de uma superioridade física, moral e legal que permite a expropriação do trabalho alheio por parte dos que são levados a cumprir uma lei econômica, a do “menor esforço”. Esta divisão da sociedade, fruto de fatores endógenos ao “domínio social”, transfere o trabalho mais penoso para os que, por “natureza” ou pela “organização social”, foram condenados à inferioridade social, cultural, biológica e jurídica. Esta idéia está contida no capítulo VI – A mão-de-obra servil no período colonial –, do livro supracitado. Refere-se ao trabalho escravo e ao trabalho na Europa, no mesmo período, e é possível, pela análise de seu conteúdo, ver o exemplo estendido aos trabalhadores modernos. Assim sendo, Simonsen promove um corte no interior da sociedade colonial, nomeando aqueles que labutavam nas fazendas e garimpos como seres inferiores. Como a mão-de-obra era essencialmente negra, esta nominação passa a incorporar elementos constitutivos do discurso racial brasileiro.

Mas o momento mais significativo para representar a existência, no discurso de Simonsen, de noções do pensamento racial brasileiro é quando afirma não existir ódio racial no Brasil. Destarte, Simonsen acredita que o governo provisório de 1889 errou quando mandou queimar os arquivos relativos à escravidão, uma vez que fomos “dos mais brandos na sua utilização”. Outro fato que não justifica esta medida do governo é a existência do “entrelaçamento de classes que entre nós se verifica”.

O tema da raça reaparece de forma constante no decorrer das argumentações nacionalistas de Simonsen. Está sempre relacionado com a necessidade de fortalecer os sentimentos cívicos ou, ainda, de incutir, por um lado, o espírito da eficiência nas elites e, por outro, do trabalho disciplinado nas camadas populares. Um termo que unifica, pois aparece como um sentimento que serve de argamassa para a construção da nação. Apenas se observarmos os papéis reservados às elites e às camadas populares neste corpo unitário representado pela nação e a raça, é que poderemos perceber o projeto de domínio social forjado por Simonsen.

Raça e nação são idealizadas por Simonsen. Em “Vida de estudante e luta pela vida”, de 21 de Novembro de 1920, no tópico intitulado “Ideal brasileiro”, assim se expressa:

E nós brasileiros devemos e podemos ser otimistas. Tudo aqui nos sorri: a constância do tempo, a abundância da luz, a variedade de terra, as nossas tradições (...) são elementos que nos convidam a lutar sorrindo, a trabalhar cantando (...) Não temos competição de raças, ódios radicados ao solo, tradição de sangue, vindictas a acalentar
(SIMONSEN, 1932: 127).

Depois destes exemplos, fica difícil afirmar que haveria um “silêncio” das questões raciais na obra de Simonsen. A nossa hipótese é que podemos identificar em seu discurso aquilo que A. Goodman identificou, em outro contexto, como a “esquizofrenia do conhecimento”, ou seja, ainda que não central em seu pensamento, Simonsen, caudatário das teorias raciais do ambiente intelectual em que viveu, repete premissas vinculadas a estas teorias sem maiores preocupações de sistematização.

Alguns acontecimentos intelectuais e sociais colaboram para esta hipótese. Entre eles estão o movimento sanitarista do final dos anos de 1910, as críticas às teorias raciais promovidas por Alberto Torres e Manoel Bonfim e a separação entre raça e cultura realizada por Capistrano de Abreu e Gilberto Freyre. Capistrano “não acreditava em raças superiores nem inferiores”.

O prosseguimento deste combate ao determinismo racial tem continuidade com Alberto Torres e Manoel Bonfim. Para Torres não existia uma “hierarquia de raças”, enquanto que Bonfim defendia que “o racismo e as teorias científicas que o amparavam compunham o processo de dominação do resto do mundo pela Europa e seu prolongamento norte- americano”. Bonfim acreditava em diferenças culturais, e não raciais, entre os povos.

De fato, a partir do declínio da imigração estrangeira nos anos de 1920, as “concepções raciais sofreram certa alteração”, o que não significou o “abandono das teses antigas”. O que podemos observar na obra de Simonsen é a presença de uma série de considerações de ordem racial, apesar de a raça não ser um fator determinante nas explicações do atraso brasileiro. Isto não significa que, ao preocupar-se com a formação da nacionalidade brasileira, Simonsen não se inquietasse com esta questão. Assim, na década de 1930, ele se questiona se conhecíamos a “nossa verdadeira composição etnográfica em formação” e a influência que as “diversas unidades raciais” iam exercendo sobre nossa constituição racial.

Entretanto, o conceito de raça, em Simonsen, não parece estar ligado a origem exclusivamente genética, mas, antes, a fatores culturais e econômicos. Em 1934, falando a um grupo de deputados, na Assembléia Nacional Constituinte, o autor garantia que não se filiava “ao preconceito da inferioridade de raças”. Ao debater com seus pares o problema do crédito, Simonsen busca as razões da riqueza dos Estados Unidos no próprio país. Além de estarem localizados em uma zona temperada, o que lhes daria uma vantagem, foram “colonizados por uma raça forte, rica e profundamente educada em questões econômicas”.

Ao contrário, o Brasil seria colonizado por um povo que não possuía a “educação comercial da raça inglesa”. Isto não significava uma diferença geneticamente determinada, mas o resultado de um processo histórico que havia colocado os ingleses em um estágio financeiro e econômico mais adiantado do que o de Portugal. Todavia, Simonsen rende o seu respeito aos feitos portugueses em terra brasileira:

Isso não quer dizer que o povo inglês seja, de qualquer modo, superior ao português. Estou de acordo em que os ingleses, aqui, talvez não fizessem tanto quanto os portugueses
(SIMONSEN, 1934b: 41).

O fato de Simonsen afirmar não nutrir “preconceitos” raciais não o impedia de emitir várias opiniões muito próximas das teorias raciais em voga nas primeiras décadas do século XX. Isto fica bastante claro quando ele opina sobre a eficiência econômica da mão-de-obra nacional em contraste com a estrangeira. Seu entendimento acerca deste assunto se assemelhava muito à teoria liberal que teria fundamentado, segundo Capelato, a “utilização da mão-de-obra estrangeira, em detrimento do trabalhador brasileiro”.

Ao assegurar, em 1934, que não se filiava “ao preconceito da inferioridade de raças”, Simonsen recorre a palavras pronunciadas em 1919, ao partir para a Inglaterra em missão oficial do governo brasileiro:

Temos de estudar a fundo os problemas nacionais; de vulgarizar com rapidez a educação econômica e os ensinamentos da ciência, como obra indispensável de patriotismo, para que, no concerto das nações, venhamos a ocupar a posição a que temos direito pela nossa grandeza e pelas aptidões da nossa raça. Divulgados esses conhecimentos, verificaremos então que os caipiras, os jagunços e os cangaceiros não são a prova da inferioridade de nossa raça: são ‘corpos de prova’, vivos, em que, os que sabem estudar, vão aprender as hostilidades cósmicas e os meios de combatê-las! Heróis inconscientes oferecidos em holocausto à ciência, até termos evoluído a ponto de fazermos acompanhar, os que se embrenham em nossos sertões, pelos conhecimentos precisos para aproveitar as nossas riquezas e para combater os seus malefícios, que são muitas vezes apenas reações da natureza contra os que a desbravam sem ciência e inconscientemente destroem a sua produtividade
(SIMONSEN, 1932:65).

Os conhecimentos científicos devem não só construir o espírito da nação, mas também a própria raça. A construção da raça deveria se dar pelos critérios da Ciência. Por meio destes, as aptidões naturais em estado bruto da população brasileira ganhariam em eficiência e produtividade. Assim sendo, ao estudar o país, suas elites deveriam se preocupar em buscar soluções científicas para os problemas nacionais. A divulgação dos conhecimentos científicos seria indispensável para se criar a consciência nacional.

Todavia, ao falar de um saber popular, representado na figura interiorana do sertanejo e do caipira, considera-o como prova para a atuação sistemática da Ciência. Àquele saber desqualificado, propõem como alternativa a Ciência como fator principal e necessário ao ordenamento da realidade brasileira.

A imagem que Simonsen faz do trabalhador brasileiro e, principalmente, do nordestino, reafirma os conceitos de inferioridade da mão-de-obra nacional. No trabalho “Recursos econômicos e movimentos das populações”, apresentado no VIII Congresso Científico Americano, em Washington, março de 1940, assim se refere ao trabalhador nordestino:

O trabalho agrícola na fazenda de café é um mister contínuo, exigindo regularidade e disciplina (...) Os trabalhadores nordestinos não se adaptam facilmente a essa cultura, pois estão habituados a trabalho menos disciplinado
(SIMONSEN, 1943b: 141).

Esta opinião a respeito dos trabalhadores nordestinos poderia ser explicada pela diferença cultural entre eles e os trabalhadores estrangeiros, estes mais afeitos ao trabalho disciplinado. Não obstante, esta hipótese se empalidece ao cotejarmos a imagem descrita acima com as representações dramáticas que Simonsen fazia das populações sertanejas.

As populações flageladas pela seca encaminharam-se para São Paulo, por via ferroviária, em sua maioria, e estipendiadas pelo governo do Estado. Para alcançar a estação de estrada de ferro (...) muitos desses imigrantes caminharam a pé ou se utilizaram de outros meios de transportes, percorrendo mais de 1000 quilômetros e chegando a São Paulo subalimentados e em más condições para um trabalho produtivo imediato
(SIMONSEN, 1943b:143).

A despeito de esta imagem conter um grau acentuado de verdade e de estar presente em descrições que outros intelectuais faziam do sertanejo, a interpretação que Simonsen dá ao fenômeno não nos permite desvinculá-lo dos preconceitos raciais de seu tempo. A condição de flagelado desdobra-se em uma propriedade psicológica que desqualifica o sertanejo, atribuindo-lhe uma característica endógena a sua condição de miséria.

As populações de extensas regiões do Norte do país, em clima tropical e semitropical, cresceram mais depressa que os recursos econômicos (...) Daí a queda lenta do padrão de vida de tantos habitantes de zonas do Norte, que cada vez mais apegados ao seu solo, não imigram, em sua maioria, por iniciativa própria, e vão perdendo, gradualmente, toda a ambição de progresso
(SIMONSEN, 1943 b: 146).

Simonsen insiste neste raciocínio e vincula esta condição psicocultural às crises econômicas e aos cruzamentos raciais.

Nessas zonas, as populações resultantes do cruzamento dos primeiros colonos com os habitantes autóctones, ou com os africanos, são profundamente apegadas às localidades onde vivem, e emigram muito mais estimuladas por cruéis crises econômicas do que por ambição de melhoria do seu padrão de vida
(IBIDEM: 152).

Este mesmo tipo de pensamento aparece em autores como Oliveira Vianna, para quem as características psicológicas, oriundas do entrelaçamento da três raças, marcariam a mentalidade e a moralidade de vastos seguimentos de nossa população.

Assim, apesar de a raça não ser o fator principal que explica os descaminhos de nossa formação histórica, Simonsen não deixa de cotejar as teorias raciais de seu tempo. Seu enfoque principal está na raça como fator de produção. Ao debruçar-se sobre as características da população brasileira, tem como enfoque a necessidade de transformá-la em trabalhadora, ordeira e organizada. O tratamento dado à população como fator econômico reforça-se ao observamos como Simonsen encarava a escravidão em sua obra.”

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É isso!


Fonte:
Fábio Maza: "O IDEALISMO PRÁTICO DE ROBERTO SIMONSEN. CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INDÚSTRIA NA CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO." (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em História. Orientador: Prof. Dr. Ulysses Telles Guariba Neto). Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 2002.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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