Racismo e traços de representações do negro na literatura das Luzes

“O processo ideológico de racialização e de naturalização das desigualdades foi adquirindo status científico, com o apoio das teorias racialistas, de modo que a noção de raça passa a estar estreitamente vinculada aos estudos sobre a estrutura do mundo animal. O racismo, como doutrina, supõe que as características culturais e psicológicas são determinadas pela raça, com base em conceitos científicos elaborados, no século XI, por Knox, Gobineau, Spencer e outros representantes da doutrina racialista.

A base ideológica do racismo, expressa pelo pensamento das Luzes, supunha uma nova concepção de hereditariedade biológica, entrelaçada com uma compreensão das possibilidades de um povo. O principal dogma do racismo afirma a desigualdade entre as raças humanas e essas desigualdades são expressas em termos de inferioridade e superioridade. Assim, a própria Ciência se encarregou de justificar o escravismo pela instituição da hierarquia das raças.

Na realidade, estudos diversos anotam que, apesar de partir das pesquisas de Lamark, foi Darwin quem deu impulso à teoria da evolução das espécies e sua tendência à adaptação. A teoria evolucionista é um esquema que se apóia na idéia de adaptação das espécies a seu meio, introduzindo a noção de hierarquia. Segundo a hierarquia defendida por Darwin, todos os grupos ou todos os indivíduos não têm o mesmo valor. Há, portanto, os mais dotados e os menos dotados, os superiores e os inferiores e a luta entre eles é inevitável, prevalecendo, nesse embate, o mais forte. O motor do progresso repousaria, justamente, na eliminação do mais fraco, dos piores em função dos melhores. Toda essa criação de Darwin foi aproveitada e ampliada pelo capitalismo, embora também influenciada por ele.

Aplicada ao domínio social, a teoria darwinista teve uma acolhida calorosa e configurou-se como um poderoso elemento “científico”, legitimador de um sistema capitalista emergente – sempre o capitalismo selvagem – com o auge do colonialismo, justificando a dominação das colônias, a escravidão e a exploração dos trabalhadores, os conflitos entre raças, classes, nações. Assim, serviu como excelente justificativa para manter o tráfico de negros do continente africano para as Américas, em nome do progresso. Como sabemos, a escravidão somente foi abolida, a partir da segunda metade do século XIX.

O surgimento da teoria de Darwin desencadeia um processo de adaptação das disciplinas ao seu método, com a contaminação de muitas ideologias e preconceitos então espalhados na humanidade com muitos séculos de fermentação. Influenciado pelos trabalhos de Darwin, o racismo assumiu os contornos do hoje chamado “darwinismo social” e de sua variante francesa, a “antropossociologia”.

A prova da inexistência de ligação entre os atributos morais que justifiquem as desigualdades seria suficiente para acabar com esse tipo de racismo? Segundo Appiah, a constatação de que não há tais provas não demove o racista de suas atitudes, pois para esse, a questão se localiza na “deficiência cognitiva” do outro. Ou seja, nessa concepção, o outro é inferior porque cognitivamente ele é deficiente. Ao nosso juízo, com apoio em Maturana, essa é uma visão da diferença, provocada, em última instância, por fatores de ordem emocional. É a nossa emoção que dificulta o abandono de crenças que usamos para justificar nossas posições e privilégios na ordem social. Se olharmos bem, poderemos perceber que as crenças racistas são defendidas, freqüentemente, por pessoas que se beneficiam de privilégios e vantagens, em função de sua “raça”. Daí sua pouca inclinação para aceitar evidências contrárias às que ele defende.

Na direção um pouco diferente de Appiah, ao distinguir “racismo” de “racialismo”, Todorov aponta que o termo “racismo”, muitas vezes, designa dois domínios muito diferentes da realidade. Se, de um lado, trata-se de um “comportamento” feito, na maioria das vezes, de ódio e de desprezo com relação às pessoas com características físicas diferentes, de outro, trata-se de uma ideologia, de uma doutrina referente às raças humanas, onde uma não precisa estar, necessariamente, junto com a outra.

Para Todorov, enquanto o racista comum não é um teórico e, portanto, não é capaz de justificar seu comportamento por meio de argumentos “científicos”, o ideólogo das raças não é, necessariamente, um racista, no sentido estrito do termo, pois suas posições teóricas podem não influenciar seus atos. Sua teoria pode não implicar em juízos de valor. No entanto, se uma questão não implica na outra, quando se juntam, os resultados podem ser catastróficos, como bem exemplifica o caso do Holocausto.

A diferenciação de Todorov, no entanto, é problemática, embora concorde com a idéia de que designe domínios diferentes da realidade. Não seria a hierarquização das raças, de antemão, um posicionamento racista perante a diferença? Hierarquizar não implica numa classificação de raças superiores e inferiores? E a realidade já não nos provou que a essa hierarquização se acompanham distinções morais? Como distinguir o que se pensa do que se pratica? Como separar idéias de ações? É possível a separação do sujeito e do objeto de estudo?

Tudo isso leva a crer que o racismo, concebido como um comportamento de ódio e desprezo a pessoas com características físicas diferentes, no entanto, ainda que possa ser justificado por argumentos ditos racionais, é um fenômeno de ordem não racional, e sim emocional.

Na realidade, os racistas se pautam numa série de crenças infundadas sobre diferenças genéticas que seriam associadas a presença ou ausência de características e capacidades, vistas como socialmente significativa. Nesta perspectiva, características físicas e culturais de alguns grupos como as dos negros adquirem significação social negativa, enquanto os atributos do racista são supervalorizados.

Segundo Chomsk
y, o racismo tem mais a ver com conquista, com opressão e com uma idéia de superioridade do dominador. O racista é aquele que inferioriza moralmente o outro, o diferente e, em muitos casos, acredita que, pela sua superioridade, estaria fazendo um bem ao oprimido, impondo-lhe sua própria visão de mundo e negando-lhe a sua existência enquanto ser coletivamente construído. Na base dessa postura, estaria uma crença de que o diferente é o desigual, o degenerado, a quem precisa o dominador, com a sua “alta” cultura corrigir e, para isso, são utilizados todos os recursos disponíveis para essa “correção”, que vão desde as coerções explícitas na ação policial, até as políticas menos explícitas.

Em termos literários, os séculos XVIII e XIX apresentam, de certo modo, um estatuto social diferente para os negros. Do negro escravo caracterizado pela gentileza, ingenuidade, comum na literatura romântica, as obras literárias desse período passam a descrever as atrocidades do tráfico e os horrores das plantações, embora a imagem do negro continue estereotipada e bastante pejorativa. Mesmo marcados por uma tendência crescente de um sentimento se não contra a escravidão, ao menos contra os seus aspectos mais bárbaros, os filósofos das Luzes, em suas obras, também se viram envoltos num perfeito dilema: a luta entre os princípios morais e religiosos e as teses que defendiam a inferioridade dos negros.

Seja por razões morais, seja porque estavam imbuídos das idéias de liberdade, fraternidade e igualdade, fundadas no direito natural, condenavam a escravidão e contestavam o argumento da inferioridade do negro: todavia, atrás da máscara da igualdade, consideravam seriamente a sua inferioridade. Jamais diziam que o negro é um homem inteligente. Contestavam a escravidão por princípios humanistas, mas, debaixo da máscara enganosa das teorias, por trás do discurso, encontrava-se vivo o mesmo sentimento antigo.

Posição crítica que foi corroborada por Pluchon, ao assinalar que, por trás do invólucro da defesa dos oprimidos, do apelo à reconciliação das raças, da tolerância, da benevolência e da compreensão, “l’Esprit comme tel restait surds aux exhortations du coeur, reste figé dans son attitude traditionelle” . Esta outra frase é ilustrativa da surdez a que nos referimos: “
Dans le recoin des consciences éclaires ou obscurantistes, on découvre, avouée ou travestie, la certitude que l’Africain appartient à une espèce inferieure, qu’il est un sous-homme” .

Para esse autor, o próprio Voltaire, já mencionado acima, por exemplo, embora demonstrasse nos seus escritos uma condenação à escravidão, da mesma forma que seus contemporâneos, não cultivava outra coisa senão uma condescendência desdenhosa pelos negros, que pode ser conferida abaixo:

“ La race des Nègres est une espèce d’hommes différente de la notre, comme la race des épagneuls l’est des lévriers.”[...] leur laine noire ne ressemble point à nos cheveux, et on peut dire que si leur intelligence n’est pas d’une autre espèce que notre entendement elle est fort inférieure. Ils ne sont pas capables d’une grande attention; ils combinent peu, et ne paraissent faits ni pour les avantages ni por les abus de notre philosophie” .

Uma consciência da superioridade da brancura européia que, apesar de não ser nova, ganha força no século XVIII. Ao mesmo tempo, posição que, além de contradizer as pretensões humanitárias, traduz muito bem o sentimento de superioridade racial e civilizatória que dominou o mundo, a partir dessa Razão já anunciada.

Ainda que a posição racista desse período tivesse estimulado produções de ordem ficcional que colocavam o negro sempre em posição de inferior, a ênfase recai mais em certa cientificidade do que propriamente na literatura ficcional, o que não só não invalida o poder das construções racistas que prevaleceram na ficção, como também comprova o quanto de suposto, de imaginário e de invenção – como pressupostos, hipóteses, teses e toda a construção dita científica – se oculta atrás de uma rede considerada como racional e objetiva.

Nessa perspectiva mais cientificista, mesmo elevado a tema do discurso literário, a preocupação com o negro revelava mais uma formalidade do que propriamente uma preocupação com questões de raça ou de desigualdade racial. O negro continuou figurando como personagem na ficção, em algumas obras. Porém, isso acontecia, quando muito, para constatar sua condição de escravo, sua ingenuidade, sua falta de malícia, seu conformismo com a condição escrava, a eterna gratidão ao seu senhor. Ou então, era demonizado por não se conformar, por fugir à escravidão. Em alguns casos até chegava-se a denunciar a violência da escravidão mas, o que se percebe no geral, é que o personagem do escravo e a própria escravidão não são problematizados.

Por conta dessa tendência em tornar objetiva a Literatura, o século XIX é considerado o período em que esta perde um pouco do sabor e do prazer que a caracterizavam. O caráter de sonho e de diversão que antes a definia, agora é substituído pelo estímulo à reflexão, pelo convencimento e pela reprodução de experiências científicas. A intenção didática passa a prevalecer sobre a forma literária. O realismo com que muitos escritores representam seus personagens nos dá a exata dimensão dessa pretensão à objetividade.

Essa tendência em desqualificar a Literatura por não ser “científica”, ensejando, assim, uma busca pela cientificidade que se consolida no século XIX, não é um processo recente, embora tenha ganhado força na modernidade quando a Filosofia e a Literatura passam a desempenhar funções distintas. Hermenegildo Bastos, mostra claramente essa distinção. Para ele, as diferenças entre a Literatura e a Filosofia, tida esta última como ciência, são históricas e remontam à Antiguidade: a tendência já era a de considerar a literatura como inferior, devido ao seu caráter ficcional, supostamente incapaz de fornecer conhecimento verídico. No entanto, a separação entre as duas só veio a se consolidar, no final do século XVIII, momento em que a palavra literatura começou a ser usada na acepção moderna, quando passa a ser considerada a contraparte do “discurso da verdade”, por fazer parte do mundo da ficção , tido como não científico.

Lembremos suas palavras:

“Da mesma forma que verdade/ficção, o binômio subjetividade/objetividade marca o mundo moderno e a literatura. O surgimento da literatura na era moderna não é uma entre outras coisas, mas algo fundamental. A literatura é o espelho no qual a subjetividade é visível para si mesma. É nela que o eu se diz e se confirma. O texto literário veio a ser o texto pelo qual melhor se exprimiria a ‘voz interior’ , a da subjetividade”.

Como veremos no capítulo posterior, ainda que em linhas gerais, é, justamente com a ascensão da burguesia, no Iluminismo, que a Literatura e a cultura popular, com seus saberes mágicos e míticos baseados na experiência, nas crenças legadas pelos mais antigos, e na ficção, foram fortemente combatidas pela ciência, como não confiável por não serem passível de comprovação científica. Uma separação que lança reflexos na educação escolar, ainda hoje.”

---
É isso!


Fonte:
EUGÉNIA DA LUZ SILVA FOSTER: “RACISMO E MOVIMENTOS INSTITUINTES NA ESCOLA”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Educação. Orientadora: Prof. Dra. CÉLIA FRAZAO SOARES LINHARES). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!