Algumas críticas ao realismo popperiano

“O’Hear (1992, p. 90-123) discute a posição realista de Popper, afirmando que seu falseacionismo o deixa muito próximo ao instrumentalismo, não obstante toda a ênfase que ele dá ao realismo. Para o autor, Popper faz concessões demais ao instrumentalismo, ao negar a crença essencialista da possibilidade de uma explicação última, além da qual não seria necessária nenhuma outra explanação. Está certo que Popper se afasta do instrumentalismo ao dirigir-se para formulações de caráter universal, mas, para O’Hear, ao tratar essa universalidade em termos de testabilidade, a teoria popperiana passa a ter as “desejáveis propriedades de uma ferramenta” (O’HEAR, 1992, p. 92), o que o aproxima perigosamente do instrumentalismo que tenta refutar. Este perigo seria amenizado com uma maior concessão ao essencialismo e às “explicações últimas”.

O’Hear sustenta ainda que, para o realista, é fundamental mostrar que as teorias não são meros instrumentos, mas que realmente podem nos dar um conhecimento do mundo real, enquanto Popper se limita a dizer que as teorias terão sobrevivido a alguns testes. Critica também a idéia de que teorias falseadas são descartadas e considera que uma teoria refutada é incorporada a teorias mais novas como aproximações.

Segundo este autor, a idéia de Popper de submeter as teorias a severos testes e criar teorias de maior grau de universalidade e profundidade pode simplesmente ser reinterpretada como uma perspectiva instrumentalista, com o objetivo prático de conseguir instrumentos melhores e mais largamente aplicáveis (O’HEAR, 1992, p. 93). Assim, a ênfase nos testes enfatiza apenas “os pontos de contato entre teorias e experiência”, não muito além do que faz o instrumentalismo (O’HEAR, 1992, p. 94). Um instrumentalista, afirma O’Hear, poderia replicar a Popper que está interessado em testar suas teorias precisamente para determinar até onde elas podem ser aplicadas.

Early (1999) levanta uma outra questão. Explanando o uso que Popper faz da teoria de Tarski, afirma que, ao aceitar a teoria da verdade como correspondência, o uso que Popper faz dessa teoria envolve claramente uma idéia de verdade absoluta. No entanto, ao falar de enunciados básicos e corroboração, Popper deixaria implícito que verdade não é relativa a um sistema de enunciados básicos que devem ser testados intersubjetivamente através da observação e falseáveis desse mesmo modo. Mas isso indica que o teste possui caráter convencional e não lógico, porque nós simplesmente tomaríamos a decisão de aceitar certos enunciados básicos, o que não está de acordo com uma idéia de verdade absoluta (EARLY, 1999, p. 21).

Early afirma ainda que, em Popper, podem ser distintos dois tipos de realismo. O primeiro seria uma “versão fraca”, de acordo com a qual há uma verdade absoluta e uma realidade objetiva, um mundo que existe independente de nossas mentes. A segunda, a “versão forte”, diz que as teorias científicas são explanações causais. Deste modo, segundo Popper, não deveríamos abandonar a busca por leis universais e pela explicação causal de qualquer tipo de evento. Este segundo realismo, essencial para o combate ao instrumentalismo, é metafísico, pois, para Popper, nem o idealismo nem o realismo podem ser irrefutavelmente demonstrados, pois não são científicos, a saber, falseáveis. Aliás, o falseacionismo proíbe que uma afirmação do tipo que implique relações causais seja considerada, de fato, real, já que não pode ser nem mesmo falseada.

Assim, a crença popperiana na realidade das leis naturais, embora seja um ponto de partida para o falseacionismo, não pode ser sustentada por ele, o que, segundo Early, introduz uma tensão entre realismo e falseacionismo que Popper não consegue resolver, deixando a conexão entre realismo e falseacionismo muito fraca. Como O’Hear, Early conclui que Popper está mais próximo do instrumentalismo que do realismo (EARLY, 1999, p. 26-27).

No caso da crítica de O’Hear, consideramos que a rejeição ao essencialismo não represente tanto perigo ao realismo popperiano. A recusa de uma explicação última ou de algum tipo de verdade suprema poderia indicar apenas a nossa dificuldade ou impossibilidade de chegar a esse ponto, tendo em vista o indeterminismo que Popper também defende. Este tipo de relação não aparece de modo tão explícito em Popper, mas acreditamos ser mais razoável argumentar a seu favor, recorrendo à sua idéia indeterminista, que se aproveita da negação do essencialismo.

O indeterminismo em Popper é objeto do nosso terceiro capítulo e não nos alongaremos nesse ponto. Ademais, a “interpretação instrumentalista” do falseacionismo pode ser refutada se considerarmos a afirmação de Popper de que a verdade é o ideal regulador da ciência, aspecto enfatizado em
R.A.Sc. para realçar o viés realista de sua tese. Se o realismo de Popper não consegue construir suficientemente bem o “pano de fundo” do falseacionismo – o que se pode conjecturar –, não podemos, daí, simplesmente considerá-lo um instrumentalista. Cabe ponderar que o fato de que uma teoria falseada pode ser incorporada a outra, mais ampla, não parece, de modo algum, refutar o falseacionismo. Popper discutiu esse tipo de argumento em R.A.Sc., o que já apresentamos anteriormente quando tratamos de demarcação e corroboração.

A crítica de Early quanto ao caráter convencional dos testes de hipóteses faz sentido enquanto a própria origem das hipóteses não deixa de ser puramente convencional, já que Popper se recusa a considerar o modo como formulamos nossas hipóteses e julga resolver a questão pela crítica consciente das hipóteses que levaria a refutá-las no confronto com a realidade. Além do mais, a idéia de verdade como ideal regulador parece suprir aqui, mais uma vez, o apelo à verdade absoluta. Neste ponto, parece-nos que tanto Early quanto O’Hear se esquecem que Popper foge o tempo todo do modelo de ciência de chamou “Ciência com ‘C’ maiúsculo”, cujo objetivo era a busca da certeza e da verdade absoluta. O fato de ser este um empreendimento impossível para a ciência (com “c” minúsculo) não implica o abandono da idéia de verdade, à qual a crítica racional, segundo Popper, tenderá a nos levar.

No caso da “versão forte” do realismo, acreditamos que as críticas de Early são, pelo menos em parte, bastante pertinentes. De fato, a demarcação entre ciência e metafísica, para além do valor indispensável que Popper dá a esta última, torna o realismo popperiano, de fato, um mero “pano de fundo” que o realista metafísico terá como “crença inabalável”. Também consideramos que a realidade das leis naturais é fundamental para o falseacionismo, pelo menos enquanto este pretende ser “realista”. No entanto, Popper não desenvolve suficientemente esta questão, afirmando, em
R.A.Sc., que a unidade estrutural do mundo é apenas uma metáfora, um “mistério impenetrável” (POPPER, 1992, p. 150).

Destarte, não nos interessa, no âmbito deste trabalho, uma discussão exaustiva acerca de considerações como as levantadas pelos autores citados. Seu uso aqui tem o condão apenas de reforçar as fraquezas do realismo popperiano, às quais retornamos no último capítulo, quando comparamos o realismo de Popper com o de Peirce.

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É isso!

Fonte:
JOSÉ FRANCISCO DOS SANTOS: “REALISMO E FALIBILISMO: “UM CONTRAPONTO ENTRE PEIRCE E POPPER”. (Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Filosofia pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Ivo Assad Ibri). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo . São Paulo, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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