Thomas Kuhn e o funcionamento comunitário da ciência

"Embora, o modelo mertoniano tenha prevalecido até a década de setenta como um dos principais modelos da sociologia da ciência, a partir do final da década de cinqüenta e início dos anos sessenta, outros pensadores contribuíram para desconstrução dos modelos lógicos da filosofia da ciência que predominavam até então. Autores como Thomas S. Kuhn, Paul Feyranbend, Ludwig Wittgenstein, dentre outros, começaram a explicitar e apresentar ferramentas conceituais que explicitavam aspectos não contemplados nos estudos epistemológicos da ciência. A função da história, a subjetividade do cientista, a linguagem e as transgressões metodológicas são alguns dos pontos investigados por esses pensadores que auxiliaram a crítica da ciência como algo “puro” que poderia ser analisada apenas por seus aspectos racionais. Algo que se tornou cada vez mais difícil à medida que a pesquisa histórica e sociológica se entrelaçava com temas supostamente lógicos da ciência. (Oliva, 1994) O clássico trabalho de 1962 de Thomas S. Kuhn, “A Estrutura das Revoluções Científicas” é uma síntese e, ao mesmo tempo, um marco nas discussões sobre a história e sociologia da ciência, que traz a tona o controle social da ciência.

Kuhn (1962/2006), ao buscar compreender os padrões de uma comunidade cientifica e como ocorrem as mudanças de perspectivas científicas, chamadas de revoluções científicas, apresenta uma interpretação que vai muito além da epistemologia positivista. Na verdade, sua obra caracteriza-se por não dar destaque especial à epistemologia, mas sim a questões de ordem subjetiva e formas de controle social estabelecidas pela comunidade científica que são determinantes para a maneira como o cientista direciona seus esforços para certos problemas científicos. Para isso, Kuhn recorre a diversas disciplinas: História, Sociologia, Psicologia, Filosofia da linguagem, dentre outras. É emblemática nesse sentido a afirmação de Kuhn (1962/2006), na introdução de seu livro, quando afirma que: “(...) muitas de minhas generalizações dizem respeito à sociologia ou à Psicologia Social dos cientistas”.( p.27). Oliva (1994) sobre esse ponto destaca que:

É ambicioso o projeto Kuhniano: ir da história da ciência para a epistemologia passando por generalizações sobre as condições psicossociais que tornam possível fazer ciência. Daí conferir destaque à seguinte questão: é a comunidade especial que congrega os cientistas, que dá unidade mínima às atividades de seus praticantes ou é a existência de um método, ainda que tacitamente compartilhado, que gera a identidade peculiar dessa comunidade? Seu modo de respondê-la corresponde à busca dos pontos de interação entre as razões epistêmicas tradicionais e os fatores psicossociais que se fazem presentes no processo de reprodução da racionalidade científica. (Oliva, 1994, p. 68-69).

Para Kuhn (1962/2006) a comunidade científica é caracterizada pela adoção de um paradigma – ou matriz disciplinar 2. Para o autor “(...) paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma.” (Kuhn, 1962/2006, p. 201).

Dessa forma, a comunidade científica é constituída por pessoas que aderem ao paradigma formando o que ele chama de “ciência normal”. Essa adoção, segundo Kuhn (1962/2006), é fruto da tradição de pesquisa na qual os estudantes se inserem e são “obrigados” a se preocupar com determinados problemas que a comunidade científica impõe.

(...) “ciência normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior.(p.29)

A partir disso, a comunidade científica estabelece formas de socialização específicas. Hochman (1994), ao discutir esse ponto na obra de Kuhn, sugere que o estabelecimento de um paradigma pode ser observado, em particular, pelos meios de comunicação utilizados pela comunidade. O aparecimento de revistas especializadas, sociedades, encontros e congressos, currículos de cursos, manuais científicos e livros didáticos são alguns dos meios pelos quais é possível observar a aceitação e divulgação de um paradigma.

Assim, Kuhn (1962/2006) salienta a necessidade de voltar-se para uma análise da estrutura comunitária da ciência. “Como se escolhe uma comunidade científica? Qual o processo e quais etapas as etapas de socialização de um grupo? Quais os objetivos coletivos de um grupo; que desvios, individuais ou coletivos, ele tolera?” (Kuhn, 1962/2006). São perguntas que podem indicar a organização social da comunidade científica.

Isso leva Kuhn (1962/2006) a dar destaque ao papel desempenhado pela linguagem assumida por uma comunidade cientifica uma vez que a relação entre os pesquisadores de uma comunidade científica ocorre por meio de uma linguagem bastante particular e, que para compreendê-la, é preciso estar minimamente inserido naquele contexto. Então, para Kuhn (1962/2006), a criação, legitimação e reprodução de uma linguagem é fator essencial para formação de uma comunidade científica. As duas últimas frases do posfácio da “Estrutura das revoluções científicas” evidenciam a importância dada a esse aspecto que é posteriormente uma das bases das tentativas reformulação de sua teoria.

O conhecimento científico, como linguagem, é intrinsecamente a propriedade comum de um grupo ou então não é nada. Para entendê-lo, precisamos conhecer as características essenciais dos grupos que a criam e o utilizam. (Kuhn, 1962/2006).

Embora a noção de paradigma seja vista por diversos críticos de Kuhn como uma idéia estática da ciência, Kuhn (1962/2006) afirma que não é verdade que sua teoria não reserve
espaço para problemas. Para ele, esses problemas são revelados por aquilo que ele chama de anomalias, sendo essas fundamentais para transformações na ciência. Em termos gerais, anomalias são problemas que surgem no interior de uma comunidade científica quando conceitos e/ou teoria não possibilitam ou são limitados para a resolução de problemas científicos. Anomalias são normais na ciência, mas essas passam a desempenhar papel importante na transformação da ciência quando levam grande parte da comunidade científica a procurar sua resolução e essa resolução torna-se visível e explicita um problema do paradigma ao lidar com determinados fenômenos. Isso acaba por resultar na consciência de uma crise do paradigma que supostamente conseguia ter respostas satisfatórias para um determinado fenômeno.

Nesses momentos de crise do paradigma, são bastante comuns explicações não tradicionais para resolução do problema, o que acarreta a instauração de instabilidade do modelo vigente, de modo que o cientista passa a não mais ter confiança total em seu modelo científico. Com a eclosão dessa crise, todos os esforços da comunidade científica voltam-se para resolução desse problema que é em geral resolvido através da formulação de um novo modelo científico - estrutura-se dessa forma uma revolução científica. A partir dessa revolução, a comunidade científica passa a operar de forma totalmente incompatível com o paradigma anterior – assim um paradigma torna-se incomensurável . Isso significa que:

Conseqüentemente, em períodos de revolução, quando a tradição científica normal muda, a percepção que o cientista tem de seu meio ambiente deve ser reeducada – deve aprender a ver uma nova forma (gestalt) em algumas situações com as quais já está familiarizado. Depois de fazê-lo, o mundo de suas pesquisas parecerá, aqui e ali, incomensurável com o que habitava anteriormente. Está é uma outra razão pelo qual escolas guiadas por paradigmas diferentes estão sempre em desacordos.(Kuhn, 1962/2006, p.148)

Para Kuhn (1962/2006), o resultado de uma revolução científica é que a comunidade passa a vigorar sobre uma nova visão de mundo. Embora, não seja nosso objetivo aprofundar nas complexas discussões críticas que o trabalho do referido autor suscita até hoje.

Destacam-se neste momento dois pontos importantes para o campo da presente investigação. O primeiro diz respeito a principal fonte de crítica ao trabalho de Kuhn – a noção de incomensurabilidade dos paradigmas. O que alguns autores (Oliva, 1994; Roque, 2002) sugestionam é que uma revolução científica não significa o rompimento total com um modelo anterior e muito menos que o cientista mude de forma irrevogável sua visão de mundo ao adotar um paradigma novo. O segundo aspecto diz respeito às várias discussões sobre a impossibilidade de utilização do modelo de Kuhn para interpretação das ciências humanas e sociais. Isso porque, para Kuhn, seria impossível falar de paradigma nessas ciências. Em sua perspectiva, elas estariam situadas em um período denominado de pré-paradigmático, logo estariam em constante crise pré-paradigmática. Contudo, ele não argumenta que isso signifique algo inferior às ciências naturais nem muito menos que vários de seus conceitos, e esclarecimentos acerca do funcionamento da comunidade científica não sejam úteis para uma
interpretação das ciências humanas. Embora, seja quase impossível uma interpretação negativa derivada dessa concepção. Desse modo, o próprio Kuhn (1962/2006) realiza em sua obra análises de alguns aspectos do funcionamento das ciências sociais e outras áreas do conhecimento a partir de muitos de seus conceitos.

O que é necessário destacar neste momento é que a apresentação de algumas noções gerais das formulações de Kuhn não tiveram como função recorrer aos seus argumentos como base para discutir ou afirma a idéia de paradigma no contexto da Psicologia Social. O que buscamos foi destacar que Kuhn (1962/2006) explicita importantes aspectos que envolvem o controle social da ciência que parecem independer de qual modelo científico está se tratando, principalmente, aqueles envolvidos na definição de ciência normal.

Nessa perspectiva, Masterman (1970/1979) afirma que, dentre os diversos significados dados à expressão paradigma por Kuhn, encontra-se aquele que aproxima sua análise de questões sociológicas da ciência as quais envolvem o funcionamento da comunidade científica. Assis (1993) sugere que, nessa definição de paradigma, Kuhn estaria mais preocupado com questões que: “Dizem respeito mais à natureza da aceitação que às características estruturais de um corpo de doutrina.”(p.140).

A definição, por exemplo, dos problemas que serão investigados por uma comunidade científica estão largamente relacionados ao paradigma ou matriz disciplinar adotada até aquele momento. “Numa larga medida, esses são os únicos problemas que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus membros a resolver.” (Kuhn 1962/2006, p.60). Nesse sentido, Kuhn (1962/2006) destaca o controle exercido pela comunidade científica sobre seus integrantes. Esse controle, com certeza, é mais explícito nas ciências naturais na qual os programas de pesquisa são bastante específicos e supostamente mais rígidos do que nas ciências humanas. O que não significa que esse tipo de controle não ocorra em tais ciências. O que parece acontecer, nesse caso, é um controle menos explícito o que dificulta observar as formas de controle social vigentes nessas áreas.

Ainda sobre o controle social da ciência Kuhn (1962/2006) chama atenção de aspectos até então poucos destacados, como, por exemplo, o pressuposto de que a comunidade científica é coercitiva e dogmática, em especial, com aqueles que buscam demonstrar que o modelo em vigor de uma ciência apresenta problemas, e outro pressuposto polêmico seria o de que a ciência, em alguma medida, é um empreendimento bem sucedido porque grande parte dos cientistas aceitam os pressupostos daquele modelo em vigor sem questionamento. Por isso, Kuhn (1962/2006) destaca que, para compreender como um pesquisador escolhe uma comunidade científica e como ele torna-se membro dessa sociedade, é preciso saber quais as etapas da socialização de uma comunidade científica e como são definidos os objetivos de um grupo e, ainda, como a comunidade lida com os desvios individuais e coletivos. O evidencia que tal enfoque salienta a importância de se voltar para o funcionamento comunitário da ciência.”

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É isso!

Fonte:
Robson Nascimento da Cruz: “A produção social do conhecimento na Psicologia Social brasileira: um estudo descritivo/exploratório a partir da revista Psicologia & Sociedade”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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