Umbanda: seus deuses e seus rituais

“A umbanda integra o que chamamos de campo religioso afro-brasileiro. Como o próprio nome sugere, tal campo é formado pelos sistemas religiosos que possuem uma marcante ascendência cultural africana. Vejamos, então, com quem ela divide esse “espaço”. Temos as variações regionais do rito jeje-nagô: o candomblé, de nação queto, na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo; o batuque no Rio Grande do Sul e o xangô em Pernambuco. De forte influência jeje, no Pará e no Maranhão, há o tambor-de-mina. Influenciado pelas práticas bantos, muito presente também na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo, há o candomblé de nação angola. Uma variante desse culto, muito presente na Bahia, e que é marcada por uma preeminência de espíritos que representam os indígenas que habitavam o Brasil antes da ocupação portuguesa, é o candomblé de caboclo. Numa faixa que se estende da Amazônia até Pernambuco, podemos ver uma série de variantes religiosas que combinam práticas banto com uma forte influência indígena. Merecem destaque a pajelança (Amazonas, Pará e Maranhão) e o catimbó (Pernambuco e Paraíba).

Por outro lado, se tratarmos de um campo religioso mediúnico, marcado pelos sistemas religiosos que, em suas práticas rituais, lidam com a incorporação de entidades espirituais, podemos agregar, também, o espiritismo kardecista.

Dito isso, tratemos especificamente da umbanda. Levando em conta a multiplicidade e complexidade de sua ascendência, é tarefa sempre árdua analisar suas origens. Para facilitar meu trabalho, comecemos por uma citação:

A umbanda, como culto organizado segundo os padrões atualmente predominantes, teve sua origem por volta das décadas de 1920 e 1930, quando kardecistas de classe média, no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, passaram a mesclar com suas práticas elementos das tradições religiosas afro-brasileiras, e a professar e defender publicamente essa “mistura”, com o objetivo de torná-la legitimamente aceita, com o status de uma nova religião. (Silva, 2000b:106)

Detalhemos as afirmações de Silva. O chamado “kardecismo” foi inspirado nas doutrinas do francês Allan Kardec21. Tratar-se-ia de:

(...) um sistema filosófico-religioso cujos principais elementos são a concepção hinduísta do carma – a crença na reencarnação – e a possibilidade de comunicação entre o mundo dos mortos e o dos vivos.
(...) Segundo a versão mais corrente do kardecismo, o universo está constituído por diferentes planos hierarquizados, de acordo com a posição que ocupam numa escala que vai desde estágios muito inferiores, próximos à matéria, até o plano da suprema perfeição espiritual. A lei da evolução, inscrita em cada ser, consiste na sua contínua e irreversível ascensão desde os planos inferiores aos mais elevados e perfeitos (Magnani, 1991:23).

Os praticantes do kardecismo, em sua comunicação com o mundo dos mortos, privilegiariam o contato com espíritos altamente evoluídos (as figuras dos médicos, como Bezerra de Menezes, seriam muito populares) e o fariam em um ambiente sereno e controlado. Quando espíritos considerados ainda atrasados espiritualmente e de comportamento mais performático – como caboclos e pretos-velhos – insinuam-se em suas sessões de trabalho, são convidados a retornarem ao plano astral.

A plasticidade e a liberdade de performance que faltavam aos rituais kardecistas foram encontradas nas práticas da cabula e da “macumba”, ambas de origem banto. Mais do que sistemas religiosos, tratavam-se de conjuntos pouco organizados de práticas mágicas. Em outra vertente das influências africanas, houve, também, a incorporação de divindades que compunham o panteão nagô: os orixás. As influências da “terra” fizeram-se notar pelas entidades dos caboclos e dos pretos-velhos. Os primeiros representando os índios que habitavam o solo brasileiro antes da ocupação portuguesa e os segundos os escravos que foram trazidos da África e sofreram toda a dor de longos anos de cativeiro. Junto a isso, ainda houve a influência do catolicismo popular, com a devoção aos santos, e das práticas mágicas de origem européia.

Vejamos, então, como esses elementos combinaram-se para dar origem à umbanda. Podemos dizer que o kardecismo forneceu a sintaxe e as demais variantes mágico-religiosas os personagens, práticas rituais e elementos litúrgicos da nova religião. Explico. Coube à doutrina kardecista a codificação da umbanda a partir de sua teoria da evolução espiritual. O Deus judaico-cristão, os orixás do panteão nagô, os caboclos e pretos-velhos – mais algumas entidades que citarei a seguir – foram ordenados num continuum de evolução espiritual, desde os mais perfeitos até os menos evoluídos. As práticas mágicas, por sua vez, foram absorvidas a partir de uma depuração que procurava pôr de lado tudo que era considerado representativo de atraso espiritual e barbarismo – um bom exemplo é o dos sacrifícios animais. E o ideal kardecista do trabalho espiritual caritativo permaneceu como finalidade maior.

Vale lembrar que, ao longo de sua história, a umbanda organizou-se através de federações. Essas instituições procuravam cumprir um papel duplo. Por um lado, organizar, representar e defender as tendas umbandistas (através de apoio jurídico, por exemplo) e, por outro, fazer o esforço codificador chegar até os espaços de culto. Se obtiveram relativo sucesso no primeiro caso, o mesmo não se pode dizer do segundo. Mais que Umbanda, o que temos hoje são umbandas. Cada tenda encerra um microcosmo religioso, com misturas específicas de magia, influências africanas, kardecistas, cristãs... Há tendas que se aproximam muito das práticas do candomblé angola e outras que preferem as influências do kardecismo. Algumas baniram o sacrifício de animais, enquanto outras continuam a realizar tal ritual. Também há aquelas que se dedicam quase que exclusivamente ao culto das entidades de luz, ao passo que outras privilegiam as entidades das trevas (os chamados terreiros de quimbanda). Enfim, as possibilidades são muitas.

Podemos tentar classificar essas várias umbandas, no entanto, de acordo com as tentativas de seus integrantes no sentido de embranquecer ou empretecer suas características cosmológicas e litúrgicas. Assim, na prática, no campo religioso brasileiro, teríamos algumas umbandas que procurariam destacar suas influências kardecistas e outras que valorizariam sua ascendência africana. Vejamos um exemplo, coletado no campo, de discurso de um representante de uma umbanda embranquecida. Trata-se de uma comparação feita por Alexandre, um “militante” umbandista egresso do kardecismo. Ele procura afirmar o caráter de brasilidade dessa religião em contraposição à valorização de uma ascendência cultural africana presente no candomblé. Para ele, não sem razão, o candomblé seria:

“(...) uma religião brasileira que visa resgatar a religiosidade da cultura nagô e iorubá, que faz o culto de orixá na África. Só que, na África, o que existe são cultos de nação. O candomblé, ele tenta restaurar, num único culto, todos os cultos de todas as nações nagô-iorubá”.

Ele enxerga o candomblé como uma resistência cultural e um resgate da religiosidade africana. Já a umbanda não teria nenhuma preocupação com esse resgate. Sua conclusão:

“(...) Ela tem influência africana? Tem. Do mesmo jeito que tem influência indígena. Se falar que a umbanda é afro-brasileira, então tem que falar que é afro-indo-européia-brasileira. Porque a umbanda tem influência indígena, européia e brasileira”.

Mas vejamos um fato interessante. No cotidiano das tendas, se não são freqüentes menções ao kardecismo, seus freqüentadores ou seus centros de trabalho espiritual, por
outro lado, no que diz respeito ao universo afro-brasileiro, mais especificamente ao candomblé, parecem existir relações muito mais intensas. Tais relações seriam marcadas por disputas, trocas simbólicas, aproximações e distanciamentos rituais, etc. Assim, ao menos no nível do discurso, o que fica muito evidente é: a umbanda pode se apropriar de um sem-número de práticas do kardecismo; pode, inclusive, ter importado toda sua moldura cosmológica a partir desse sistema, mas, na prática, parece disputar espaço com o candomblé, no campo religioso brasileiro.

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É isso!

Fonte:
Antonio Gracias Vieira Filho: “Domingo na Igreja, sexta-feira no terreiro”: As disputas simbólicas entre Igreja Universal do Reino de Deus e umbanda” (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva). São Paulo, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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