Versões do mito da criação do povo Terena

“O discurso mítico passa a existir a partir da historicidade que o constitui e essa historicidade pode ser vista como resultado de processos discursivos, constituindo-se em uma prática social. Esse gênero discursivo permite uma reflexão a propósito do papel que desempenha, e, com isso, abre-se uma via de investigação que se caracteriza não apenas por integrar à leitura morfológica as abordagens sociológica ou mítica, mas – e sobretudo – por interrogar o papel que exerce o mito no conjunto das ações que podem constituir peculiaridades e ideologias de uma dada época e/ou situação. Conforme Orlandi (1990, p. 174), não se trata de dizer o que o mito significa, mas de explicitar como ele produz sentido, qualquer que seja.

O mito, materialização das ideologias, das aspirações, da identidade, da reconstrução do passado, enfim, do imaginário social de um povo, apresenta-se, assim, como espaço de manifestação de posições discursivas antagônicas, do diálogo entre os sujeitos que fazem circular concepções de mundo e aqueles que as interpretam.

A mitologia Terena explica a origem de seu povo, justifica a permanência de alguns aspectos culturais, crenças e superstições tais como: as crianças não podem sair de casa ao anoitecer, não podem “bagunçar” nem chorar, porque à noite os espíritos maus vêm buscá-las. Outra crença é a de que, quando morre alguém da família, pelo menos alguma mudança deve ser feita como: pintar as janelas de cor diferente, plantar novas árvores, trocar a posição dos móveis para que quando voltar o espírito do morto não reconheça o lugar e não entre na casa. Quanto a isso, Martinez (2003, p. 66) afirma: “Contudo, o mais curioso é que várias dessas superstições perduram até hoje”.

Durante a pesquisa bibliográfica foram encontradas quatro versões da origem do povo Terena, extraídas dos livros A história do povo Terena, Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber e a beleza e Os diários e suas margens, das quais duas se apresentam a seguir.

Professores da Aldeia Cachoeirinha assim resumiram, em 1995, a criação do povo Terena:

(1)
A criação do povo Terena

Havia um homem chamado Oreka Yuvakae. Este homem ninguém sabia da sua origem, não tinha pai e nem mãe, era um homem que não era conhecido de ninguém. Ele andava caminhando pelo mundo. Andando num caminho, ouviu grito de passarinho olhando como que com medo para o chão. Este passarinho era bem-te-vi.
Este homem, por curiosidade, começou chegar perto. Viu um feixe de capim, e embaixo era um buraco e nele havia uma multidão, eram os povos terenas. Estes homens não se comunicavam e ficavam trêmulos. Aí Oreka Yuvakae, segurando em suas mãos tirou eles todos do buraco.
Oreka Yuvekae, preocupado, queria comunicar-se comeles e ele não conseguia. Pensando, ele resolveu convocar vários animais para tentar fazer essas pessoas falarem e ele não conseguia.
Finalmente ele convidou o sapo para fazer apresentação na sua frente, o sapo teve sucesso, pois todos esses povos deram gargalhada, a partir daí eles começaram a se comunicar e falaram para Oreka Yuvakae que estavam com muito frio (BITTENCOURT, 2000, p. 22/23)
.

(2)
“Havia um maço de Exerogupi (capim) no meio de um lugar chamado Etxí-uá, isso lá no pantanal (na margem ocidental do rio Paraguai), onde hoje só tem Xamakoko e alguns Kadiwéu brigando com eles. É por isso que os beiços e as orelhas dos Xamakoko são furados... Gente moça terena tirou toda a terenada debaixo da terra, pelo buraco do Exerogupi. Saíram tremendo de frio e foram ficando encolhidos no chão. Tremendo muito. Saiu também uma velha que esqueceu lá no buraco o seu Hupaié (fuso). Ela quis voltar para apanhar o seu Hupaié e para lá voltou, ficando tampada pelo Pitanoé, um dos irmãos (gêmeos) terena. Metade dos Terena ficou por lá – e talvez ainda exista gente terena lá” (OLIVEIRA, 2002, p. 125).

A narrativa mítica (1) começa com os Terena confinados, juntos, em um espaço interno; estão reclusos num grande buraco, cuja entrada está coberta ou camuflada por capim. Trêmulos, desprovidos da capacidade de falar, de pôr em cena sua voz, dependem da ação de um desconhecido, que, orientado por um pássaro, os traz para o mundo. O mito de origem (1) procura explicar como os Terena saíram do buraco, ganharam voz e alcançaram o riso.

Enunciadas por uma voz que assume o mito e adere à enunciação de seu conteúdo, validando-o, tornando-o eco de uma voz coletiva anterior, as versões constituem-se canonicamente: localização em lugares e épocas remotos; redução a dimensões primitivas, mas num espaço-tempo real, para resultar em ilusão convincente.

Como em outros relatos do gênero, a narrativa projeta esperanças, personifica desejos coletivos, condensando os poderes naturais e humanos, fazendo ressurgir, pela narrativa, uma realidade primitiva, contada para insinuar submissões sociais, afirmações e mesmo exigências práticas, numa expressão direta de seu próprio tema: a constituição da identidade do povo/sujeito terena: um povo que deseja, mas não pode agir por si mesmo. Auxiliado pelo bem-te-vi, Oreka Yuvakae torna-se, na versão (1), capaz de libertar o povo do enclausuramento. Para completar a tarefa, precisa, todavia, de mais um “adjuvante” – o sapo –, que liberta os “tereno” do silêncio e lhes permite enunciar e instalar-se no “novo mundo”.

Nas duas versões, “quem conta” não se revela por meio de índices de subjetividade: aparece sob a forma de uma terceira pessoa, produzindo um efeito de sentido de objetividade, de isenção, de veracidade. Instala-se uma não-pessoa “ele” em um espaço “lá” e em um tempo “então” (FIORIN, 2002), identificado por formas verbais no pretérito imperfeito do indicativo (havia, sabia, tinha, era, andava), que constroem o pano de fundo, as ações e estados; e no pretérito perfeito do indicativo (ouviu, começou, viu, tirou, resolveu, convidou, teve, deram, começaram, falaram), indicando o mundo narrado.

*

Na versão (2), há, ainda, o emprego do presente em “onde hoje só tem Xamakoko e alguns Kadiwéu brigando com eles. É por isso que os beiços e as orelhas dos Xamakoko são furados...”. O tempo presente evidencia o lugar dessa forma no discurso: enuncia verdades eternas e acarreta a idéia de mundo acabado e equilibrado, com uma ordem determinada. Configura-se um sentido fechado, como verdadeira substância plena: a essência, a identidade, a não-transformação, acentuada pelo gerúndio de “brigando” e pelos sentidos de “ter” (‘haver’; ‘existir’) e “ser”, a que se agrega o efeito de real, de verdade.

O tempo da narração mítica é um tempo que não se marca pela enunciação dessa narrativa, ou seja, não há uma organização do tempo da narrativa de acordo com o instante da narração. Trata-se de um tempo primordial, que se opõe ao tempo presente. Essa construção de tempo apaga a voz do narrador, fazendo parecer que não é importante quem apresenta o mito. O efeito dessa construção é de destaque para o narrado, produzindo-o como se ele fosse autônomo, sustentando-se por si mesmo, independente de todo contexto enunciativo. Uma voz sem dono, sem corpo ou natureza: sobrenatural.

Há, no entanto, toda uma ordem discursiva na produção do mito. Se, por um lado, há o efeito de que não importa quem o verbalize, por outro o sujeito que apresenta o mito é elemento constitutivo de seu sentido. Esse sujeito se constitui constituindo, ao mesmo tempo, uma posição de leitor, que finalmente produzirá o efeito de fechamento do texto como um todo, do fechamento de um sentido.

Importa acrescentar a heterogeneidade enunciativa (AUTHIER-REVUZ, 1990) que se pode identificar no relato: há um ato anterior expresso por mais de uma voz, que é assumida por uma voz coletiva, que, por sua vez, valida as primeiras asserções, “sacraliza” a verdade (pressu) posta.

As figuras que aparecem – um homem [que não tinha pai nem mãe], passarinho [bem-te-vi], sapo – remetem a elementos do mundo natural, a “todo o conteúdo de qualquer sistema de representação que tem um correspondente perceptível no mundo natural” (FIORIN, 2002, p.65), enfim: dão a conhecer o “novo mundo”. Acrescente-se que o fato de o homem não ter pai nem mãe remete ao discurso bíblico da criação contido no livro de Gênesis. (BÍBLIA SAGRADA).

Inscrevem-se, na narrativa da versão (1), discursos distintos. Em: “ele resolveu convocar vários animais para tentar fazer essas pessoas falarem”, percebe-se a preocupação com o sair do silêncio e o apropriar-se da voz, além da remissão ao “no princípio era o Verbo”, também inscrito na versão religiosa da criação do mundo e do homem.

Lida pelo viés da “visão atual”, a versão, enquanto discurso, poderia remeter ao discurso histórico: a partir do século XVI, com a chegada dos europeus, a perda de territórios pelos indígenas vinha acompanhada da perda das condições de subsistência, dos traços culturais, da língua e da autonomia. Observe-se que o verbo “falar” surge como intransitivo, como o antônimo de “calar” ou “silenciar”. Também se pode “ler” que, apesar da soberania que o homem detém sobre os demais seres do universo, ele não consegue completar sua tarefa nem viver só; depende do auxílio dos demais seres. A presença do bem-te-vi e do sapo figurativiza, pois, a incompletude do homem como ser individual, ante todas as forças do universo, o que também remete, enquanto discurso mítico, ao processo da criação relatado em Gênesis (BÍBLIA SAGRADA).

Na segunda versão, além da divisão interna das tribos e dos confrontos, parece sugerir-se – se a lermos como discurso e também pelo viés “atual” – o processo de aculturação. Nas imagens “tremer de frio” e “encolher-se”, a representação das dificuldades advindas do convívio com o branco e a submissão; na figura do “fuso”, a representação de um modo primitivo de produção; na volta da “velha” para buscar o objeto de “valor”, a simbolização do destino daqueles que não aceitam a dominação do outro ou não se submetem a ela. Nesse contexto, vale a pena ressaltar que “compreender a estrutura e a função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos” (ELIADE, 2004, p. 8).

Na primeira versão, percebemos a representação mítica do cacique, chefe nas tribos indígenas brasileiras, como o líder que pede ajuda ao pássaro para que os Terena possam sair do buraco; na segunda versão, essa figura é representada por “gente moça terena”.

De qualquer modo, as narrativas constituem-se em documento histórico, já que demonstram as atividades e a história do índio. Conforme afirma Foucault (2004, p. 8), “A história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens”.

Quanto ao espaço reservado à constituição histórica do povo Terena, é omitido, em (1), e mostrado como “Etxíuá” (o espaço primitivo), “traduzido” por aquele que narra como “isso lá no pantanal (na margem ocidental do rio Paraguai)”, em (2). No plano propriamente lingüístico, importa observar os seqüenciadores “[a partir] daí” e “aí”, presentes na versão (1). Trata-se de marcas que denotam a característica do gênero em questão, a oralidade, embora se deva destacar que as versões já resultam de um segundo olhar (o daquele que o materializou na escrita) e que o nosso já é um “terceiro” olhar, que procura entender os textos em questão como lugar de possível constituição de memória e de engendramento de sentidos (ORLANDI, 1990, p.124), como prática constitutiva da cultura do povo que o terá produzido.”

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É isso!

Fonte:
ROSA MARIA SANTANA MARCHEWICZ: “COM A PALAVRA, O ÍNDIO: UMA INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES NO MUNDO TERENA”. (Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do título de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu – Mestrado em Letras – da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, sob a orientação da Profª Marlene Durigan). Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul .Três Lagoas, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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