A contribuição dos Jesuítas na circulação dos remédios

Medicina Missionária: A contribuição dos Jesuítas na circulação dos remédios

“A presença dos jesuítas em Portugal se deve ao governo de D. João III, que compreendeu que para conseguir uma efetiva dominação em suas conquistas coloniais mais do que a coerção física precisaria de um componente ideológico: a religião. Logo a ordem monopolizou o ensino nos Colégios das Artes e na Universidade contestando o humanismo cristão pelos ideais da nova escolástica.

Junto com a expansão marítima o Reino português lançou aos mares a expansão da fé, através de missionários de diversas ordens que partiam de Lisboa e seguiam nas caravelas rumo ao Oriente junto dos mercadores levando para os povos pagãos “os tesouros celestes”. Entretanto, segundo Charles Boxer, a catequese nessas regiões somente foi possível quando os padres da Companhia de Jesus assumiram essa empreitada e estudaram o idioma, os livros sagrados e as crenças religiosas daqueles que desejavam converter.

Os primeiros jesuítas desembarcaram na Bahia, em 1549 sete anos depois da mesma experiência em Goa, com “o séqüito de Tomé de Souza, chefiados por Manoel da Nóbrega”, para empreender a catequese dos ameríndios. Tão logo aportaram sentiram as primeiras dificuldades do viver em colônia e buscando amenizar essa precariedade praticaram diversos ofícios entre os quais estão os ligados à arte médica.

Lycurgo dos Santos Filho chamou de medicina jesuítica as práticas que os inacianos tiveram como: médicos, enfermeiros, cirurgiões e boticários, empregando tratamentos curativos tanto nos indígenas quanto nos colonizadores, tendo sido suas enfermarias os primeiros hospitais da população colonial. As enfermarias estavam presentes em toda aldeia indígena e junto a essa se instalava uma pequena botica.

Os Colégios da Bahia, Pernambuco (Olinda e Recife), Maranhão, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo contavam com sua farmácia que, em muitos casos, foram únicas ao proverem a população de gêneros medicinais. Somente a partir de 1640 é que se permitiu o estabelecimento de lojas de medicamentos com fins comerciais, decretando que os boticários poderiam exercer, também, as práticas da sangria, extração dentária, pequenos curativos e intervenções de emergência, além da manipulação dos remédios, porém até a expulsão dos jesuítas do território ultramarino, no século XVIII, as boticas laicas foram abastecidas, principalmente, pela farmácia dos missionários.

O fornecimento dos remédios importados, para as boticas jesuíticas, tinham sua origem no Colégio de Santo Antão, em Lisboa de onde partiam as cargas de fármacos enviadas para as diversas conquistas portuguesas. Devido as dificuldades provenientes das da pirataria!! devido às guerras e invasões que aconteciam na América portuguesa àquela altura. A necessidade de possuir grandes reservas de medicamentos nas boticas, a irregularidade e a corrupção que alguns remédios chegavam fizeram com que os inacianos aliassem os seus conhecimentos da medicina européia à prática médica indígena, apresentando indicações e efeitos de espécies vegetais nativas que acabaram sendo incorporadas à farmacopéia mundial.

Esse senso de observação que os missionários estabeleceram com os povos conquistados foi fundamental para a circulação de novos saberes e mercadorias, pois “apesar dos limites impostos por alguns dogmas católicos” os jesuítas “não deixaram produzir e incorporar novidades científicas” como podemos perceber no relato do padre Francisco de Azevedo em 1631, no Tibet, onde descreveu o animal que produz o almíscar - remédio utilizado como afrodisíaco, perfume e condimento.

Há no mato desta povoação grande copia de bichos de almíscar que dão o mais limpo e precioso que se sabe. É bicho como duas vezes uma lebre da mesma cor e feitio, quase. (...) Come a fêmea ervas peçonhentas que mastigadas e mal cozidas no estômago, as vomita e dá ao macho, das quais ele só cria no umbigo um pulmão para fora em que está o almíscar, ao qual chamamos papo, o que tudo vi com curiosidade no mesmo bicho
(...).

A partir das missões foram estabelecidas redes intercontinentais de comércio, estando os jesuítas presentes no “negócio das especiarias e sedas” e no dos remédios. De acordo com Eliane Deckmann Fleck foi através das Cartas Ânuas que, produzidas na Província Jesuítica do Paraguai, nos séculos XVII e XVIII, os inacianos revelaram a incorporação gradativa da farmacopéia ameríndia e a utilização das terapêuticas curativas nativas. A situação na Província do Paraguai, durante o século XVII, não era diferente da encontrada nas regiões da América portuguesa, àquele tempo, e devido à carência de remédios e ao grande número de enfermos iniciou-se o emprego das técnicas medicinais/terapêuticas medicinais guaranis.

Esses registros se tornaram, muitas vezes, correspondências onde experiências eram passadas “de redução a redução, de convento a convento e de colégio a colégio” constituindo os escritos sobre os climas, flora, fauna, doenças, hábitos e costumes dos povos como se pode ver nos tratados de Matéria Médica Missioneirae também nos diversos catálogos de ervas medicinais e suas aplicações se formou uma farmacopéia jesuítica. Esta foi de suma importância para a divulgação de novos fármacos na Europa, sendo incorporado às novas terapêuticas produtos que os inacianos introduziram nas suas receitas de medicinas como a jalapa, a quina, a coca, o bálsamo e a salsaparrilha.

Falar um pouco mais dos colégios!!
De acordo com o que foi descrito acima, os jesuítas tiveram um papel preponderante no comércio e no monopólio de alguns remédios de segredo que levavam em suas formulações elementos de tratamentos de cura nativos. Esse foi o caso da famosa Triaga Brasílica, desenvolvida no Colégio da Bahia, que era um antídoto que contava com vinte e sete produtos em sua fórmula quase todos cultivados na América. Falar da substituição das Triagas Romanas e Venezianas pelos jesuítas!!(exceto as raízes de acoro, aristolonquia redonda, de junca e de melvaisco) e que gradualmente substituiu os componentes do modelo europeu de triagas - eletuários preparados através da mistura de extratos de várias plantas, herança da Roma antiga. A reunião de todas as receitas formuladas por missionários inacianos em diversas partes do globo compôs, no século XVIII, a Coleção de Receitas (dizer que foi perdido, citar referencia completa), que contava com mais de duzentas fórmulas entre as quais sessenta possuíam gêneros oriundos do Brasil.

Nesse sentido, as boticas da Companhia eram produtoras de um saber e para isso contavam com uma boa estrutura de oficina onde os irmãos boticários manipulavam os medicamentos, sendo estas instalações verdadeiros laboratórios que possuíam toda espécie de instrumentos e utensílios dificilmente encontrados em outras boticas particulares coevas. Os utensílios que os laboratórios possuíam foram ferramentas fundamentais para a manipulação de novas formulações concebidas na América e no Oriente, que compreendiam tanto receitas de segredo da Companhia quanto com as receitas de conhecimento público como as do médico João Curvo Semedo, as de Jacob de Castro Sarmento, entre outros autores incluindo a confecção de remédios químicos o que demonstra que os padres estavam em consonância com os saberes científicos mais atuais a cerca da farmácia e da medicina.

Embora o modelo de caridade aplicado pelos missionários atendesse a população desprovida de recursos para comprar as mezinhas, todo esse arsenal terapêutico rendeu grandes lucros aos colégios e propiciou que os jesuítas provessem não só as boticas laicas como também as das Santas Casas de Misericórdia. Serafim Leite ao descrever o rendimento das farmácias dos Colégios, revela que o da Bahia e do Rio de Janeiro eram os mais bem providos de medicamentos e, conseqüentemente, os mais rentáveis na América portuguesa, o que possibilitava uma manutenção das suas boticas, pois a arrecadação da venda dos remédios aos ricos “só podia ser utilizada na compra de novos medicamentos e se sobra alguma coisa se empregue em livros para a biblioteca do Colégio sem que o Reitor possa dar outra aplicação”.

Os inacianos, conforme apontou Russel-Wood, foram responsáveis pela difusão e alavancagem dos medicamentos no âmbito do Império português, o que também pode ser verificado no interior do continente americano, pois havia uma intensa troca de experiências e de informações entre os missionários que viajavam por essa vasta região, um exemplo disso foi o cultivo do cacau, originário da região do Grão-Pará, nas missões do sul. A remessa de remédios enviada do Colégio da Bahia para o do Pará, em 1720, conforme podemos perceber na tabela 1.1 também nos aponta para a existência dessa ligação inter-regional realizada pelos jesuítas.

Ao analisarmos a tabela acima percebemos que todos os medicamentos contidos nela são importados, o que se deve a uma maior regularidade das frotas que partiam do Oriente e de Lisboa em direção aos portos soteropolitanos e cariocas a partir do final do seiscentos. A instalação de uma botica no Colégio do Pará, que era única nessa região, propiciou que os jesuítas possuíssem um amplo conhecimento dos recursos da natureza amazônica o que fica claro nos escritos do padre João Daniel, no século XVIII, nas suas descrições sobre os cipós, árvores, frutos e folhas entre outras drogas ou tesouros da Amazônia que poderiam ser aplicados nos tratamentos terapêuticos e aproveitados por Portugal de forma mercantil.

Embora os jesuítas possuíssem um papel importante no que diz respeito ao comércio de variados gêneros, segundo Boxer a mercantilização não foi o propósito da Igreja. Isto apenas ocorreu devido à precisão de manter as missões que eram responsabilidade do Rei de Portugal que “através do Padroado (...) devia, em princípio, fornecer os fundos necessários a este fim; mas, com as enormes obrigações criadas pelo Império marítimo, raras vezes conseguia fazê-lo adequadamente”. Apesar dos jesuítas terem monopolizado o ensino e o comércio de alguns gêneros e de terem estabelecido uma rede de comunicação entre Goa, Macau, Lisboa e América incorporando novos conhecimentos terapêuticos eles não foram os únicos missionários a se estabelecerem no ultramar e possuírem botica.

Estudos como o de Maria Franco T. Medeiros, comprovam a projeção e prestígio de farmácias de outras ordens religiosas. No que diz respeito ao Rio de Janeiro, existia, desde o final do século XVII, uma botica beneditina bem provida de medicamentos que era aberta aos necessitados, abastecia algumas boticas leigas e atendia principalmente a população escrava. Tal qual a dos jesuítas sua farmácia ficava acoplada à enfermaria para atendimento dos doentes. Uma das diferenças que podem ser apontadas entre a medicina praticada pelos missionários inacianos, para os de outras ordens, foi o convívio com os povos nativos e suas terapêuticas que provocou a incorporação dessas novas práticas às farmacopéias e aos tratados médicos europeus.”


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Fonte:
Danielle Sanches de Almeida: “Entre lojas e boticas: O comércio de remédios entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais - 1750-1808." (Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em História Social, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profa. Dra. Íris Kantor). Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 2008 .

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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