A idéia de raça e suas diferentes implicações

“A moderna idéia de raça – que associa as diferenças culturais e morais à características biológicas, genotípicas e fenotípicas, hierarquizando os diversos grupos humanos – é uma construção do pensamento científico europeu e norte-americano, que surge apenas em meados do século XVIII e se consolida a partir da segunda metade do século XIX, justamente durante o período em que o imperialismo europeu se fortalecia. E é especialmente nos Estados Unidos, no início do século XX, que o questionamento dessa idéia de raça nos meios acadêmicos ganha força, como podemos observar na epígrafe acima. Mas esta não é a única interpretação possível para a idéia de raça. As teorias raciais consolidadas na Europa e nos EUA no final do século XIX, que inferiorizavam principalmente a raça negra, tiveram grande impacto pelo mundo afora, mas certamente não eram as únicas. Neste capítulo, além de traçar uma “genealogia” da moderna idéia de raça construída pelo pensamento científico europeu e norte-americano, tratarei também de outras interpretações sobre a idéia de raça realizadas por negros, brasileiros e na diáspora, desde o início do século XX.

Nesse sentido, é importante destacar as diferenças entre “racismo” e “racialismo”, como nos sugere Kwame Appiah (1997), que identifica muitas doutrinas distintas que competem pelo termo “racismo”, e destaca as que ele considera serem as três cruciais: o “racialismo”, o “racismo extrínseco” e o “racismo intrínseco”. Segundo Appiah, o racialismo, que me interessa particularmente neste trabalho de pesquisa, é um pressuposto de outras doutrinas chamadas de “racismo”, pois é a visão de que “existem características hereditárias, possuídas por membros de nossa espécie, que nos permitem dividi-los num pequeno conjunto de raças, de tal modo que todos os membros dessas raças compartilham entre si certos traços e tendências que eles não têm em comum com membros de nenhuma outra raça.” (APPIAH, 1997:33) Essas características específicas de uma raça, segundo a visão racialista, constituiriam “uma espécie de essência racial”, que responde por mais do que as características morfológicas visíveis. Esta “essência racial” englobaria também, portanto, aspectos culturais. O racialismo então, para Appiah, “está no cerne das tentativas do século XIX de desenvolver uma ciência da diferença racial, mas parece ter despertado também a crença de outros (...) que não tinham nenhum interesse em elaborar teorias científicas”. (Idem, ibidem) Sobre o racialismo, Appiah afirma ainda o seguinte:

Em si, o racialismo não é uma doutrina que tenha que ser perigosa, mesmo que se considere que a essência racial implica predisposições morais e intelectuais. Desde que as qualidades morais positivas distribuam-se por todas as raças, cada uma delas pode ser respeitada, pode ter seu lugar “separado mais igual”.
(APPIAH, 1997:33)

W.E.B. Du Bois, que na epígrafe que abre este capítulo questionava a moderna idéia de raça consolidada no séc. XIX na Europa e nos EUA, tinha sua própria concepção da idéia de raça. E mais, segundo Appiah, “se alguma pessoa isolada é capaz de nos fornecer uma compreensão da arquelogia da idéia de raça no pan-africanismo, é ele [Du Bois].” (Idem, ibidem: 53) Du Bois, inserindo nas discussões sobre “raça” uma noção mais sócio-histórica do que biológica, e questionando o caráter “científico” da idéia de raça ainda no final do século XIX, embora identificasse e reconhecesse as características físicas – como a cor da pele, os cabelos, o sangue etc. –, afirmava que seriam as “diferenças – por mais sutis, delicadas e elusivas que sejam – que, de maneira silenciosa mas definitiva, separaram os homens em grupos”. E seguia dizendo que:

Conquanto essas forças sutis tenham em geral seguido a clivagem natural do sangue, da ascendência e das peculiaridades físicas comuns, noutras ocasiões elas passaram por cima destes e os ignoraram. Em todas as épocas, entretanto, elas dividiram os seres humanos em raças, que, embora talvez transcendam a definição científica, são, não obstante, claramente definidas aos olhos do historiador e do sociólogo. Se isso é verdade, a história do mundo é a história, não de indivíduos, mas de grupos, não de nações, mas de raças (...) Que é uma raça, então? É uma vasta família de seres humanos, em geral de sangue e língua comuns, sempre com uma história, tradições e impulsos comuns, que lutam juntos, voluntária e involuntariamente, pela realização de alguns ideais de vida, mais ou menos vividamente concebidos. (...) Mas, embora as diferenças raciais tenham seguido principalmente linhas físicas, nenhuma simples distinção física realmente definiria ou explicaria as diferenças mais profundas – a coesão e a continuidade desses grupos. As diferenças mais profundas são espirituais e psíquicas – indubitavelmente baseadas nas físicas, mas transcendendo-as infinitamente. As várias raças lutam, cada qual à sua maneira, por desenvolver para a civilização sua mensagem particular, seu ideal particular, que hão de ajudar a guiar o mundo para cada vez mais perto da perfeição da vida humana pela qual todos ansiamos, “que está muito distante do feito divino.” (DU BOIS. The conservation of race, 1897: 75,76 e 77. Apud APPIAH, 1997:54)

Não se percebe, na concepção de raça de W.E.B. Du Bois exposta acima, uma hierarquização das raças, muito menos a inferiorização de um grupo em particular. Mesmo reconhecendo as diferenças entre as “raças” e estando, portanto, de acordo com a visão racialista, cada “raça”, para ele, estaria contribuindo com suas especificidades, ao longo do processo histórico, para o aprimoramento do que ele chama de “civilização”. Espero demonstrar neste capítulo que o movimento negro brasileiro desde o início do século XX apresentou, de diferentes formas, discursos baseados muito mais no racialismo, de maneira semelhante à concepção de raça de Du Bois e ao “separado mais igual” mencionado acima por Appiah, do que nos racismos extrínseco (ligado à inferiorização de aspectos morais e culturais dos diferentes grupos, a partir da chamada “essência racial”) e intrínseco (relacionado ao aspecto biológico mais diretamente, aos laços sanguíneos que unem e diferenciam os “grupos raciais”). Acredito que, assim como Appiah fala em relação aos pan-africanistas, os militantes do movimento negro brasileiro também “reagiram à sua experiência de discriminação racial aceitando o racialismo que ela pressupunha.” (APPIAH, 1997:38)

Mas antes de chegarmos ao movimento negro brasileiro, voltaremos às teorias raciais modernas européias e norte-americanas que se consolidaram no século XIX e alimentaram o desenvolvimento dos racismos no Brasil e no mundo. Essas teorias não eram questionadas somente por intelectuais negros como W.E.B. Du Bois. Um bom exemplo é o fato de que logo no início do século XX, falando sobre as relações raciais nos Estados Unidos e constatando a presença de muitos mulatos, durante a viagem que fez a este país em 1905, Max Weber também já afirmava que “[l]as diferencias estamentales, por lo tanto adquiridas, y especialmente diferencias de ‘educación’ (en el sentido amplio del vocábulo) constituyen um freno mucho más fuerte del connubio convencional que las diferencias del tipo antropológico.” (WEBER, 1944:316) Da mesma forma, o antropólogo Franz Boas, um dos “pais” da antropologia cultural norte-americana, também tendo a sociedade norte-americana como referência, afirmava o seguinte em 1931:

Se a antipatia racial fosse baseada em traços humanos inatos, isso se expressaria em aversão sexual inter-racial. A mistura livre de donos de escravos com suas escravas, a notável diminuição resultante de negros puro-sangue, o progressivo desenvolvimento de uma população de sangue meio-índio e a facilidade de casamento com índios quando se podiam obter assim vantagens econômicas mostram claramente que não há fundamentos biológicos para o sentimento racial.
(BOAS, 2004:84)

Ambos os autores traziam à tona, naquele momento, afirmações que davam ênfase às construções sociais como definidoras das relações raciais na sociedade norte-americana, contrariando, assim, as teorias raciais que dominavam não só o senso comum da época, como também grande parte do ambiente acadêmico. O trabalho de Boas, desde o final do século XIX, tem especial importância na medida em que ele foi um dos mais importantes acadêmicos a questionar a idéia de raça e a produzir um grande número de trabalhos colocando em xeque a associação direta entre biologia e cultura ainda no início do século XX. Segundo Celso Castro, Boas ainda “[e]m 1906 procurou convencer, sem sucesso, alguns milionários a financiar a construção de um African Institute, que teria como objetivo mostrar que a inferioridade do negro nos Estados Unidos se devia inteiramente a causas sociais, e não raciais” (CASTRO, 2004: 13), pois, segundo George Stocking Jr., conforme o mesmo Boas “sugeriu em 1906 numa carta a Booker T. Washington – o negro mais influente da sua época –, se alguém pudesse ‘convencer o povo americano’ das realizações culturais dos negros na África, isso teria ‘um grande valor prático no sentido de modificar as opiniões do nosso povo a respeito do problema do negro’.” (STOCKING Jr., 2004: 368)

Cerca de meio século depois, Fredrik Barth (1969), mais recentemente Stuart Hall (1998) e muitos outros autores – cada qual à sua maneira – fazem coro ao esclarecer que as fronteiras entre os grupos são formalizadas através de construções sociais. Sendo assim, para Stuart Hall: “‘Raça’ é uma construção política e social. É uma categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo.” (HALL, 2003:69). E é justamente com o objetivo de combater esse racismo, construído social e historicamente, e também as suas consequências, que surgiram, em diferentes períodos da história recente, movimentos negros em diversas partes do mundo.

O sociólogo Michael Banton, na década de 1970, já alertava para a importância da questão política para a definição das relações raciais. Partindo do princípio de que seria imprudente elaborar um estudo sobre a idéia de raça sem levar em consideração outras duas idéias que se consolidaram no início do século XIX, ele diz que “[a]s idéias modernas de raça, classe e nação surgiram no mesmo meio europeu e têm muitas similaridades. Todas três foram exportadas para os pontos mais longínquos do Globo e floresceram em muitos solos estrangeiros.” (BANTON, 1977: 13)

Segundo Banton, a idéia de nação prometia que todo homem teria uma nacionalidade e teria o direito de ser governado apenas como membro de sua nação. Aí, entram em jogo em função das lutas por poder, as minorias nacionais, que frustram a referida promessa e tornam-se problemas para os Estados-Nação. A idéia de classe prometia um padrão de aliança de grupo baseada na situação comum perante a propriedade dos meios de produção. Mas os interesses econômicos e a fraca consciência de classe exposta quando existiam exíguas possibilidades de ascensão social, também ajudaram/ajudam a frustrar a segunda promessa. Quanto à idéia de raça, ele diz o seguinte:

A terceira idéia, a de raça, prometia em primeiro lugar que cada tipo racial tomaria posse do território que naturalmente lhe fosse mais adequado, mas este conceito deu lugar à crença de que os brancos tinham herdado uma superioridade que os habilitava a estabelecer o seu poder em todas as regiões do mundo. A previsão também não foi cumprida, quer numa quer noutra forma.(...) o aparecimento de uma base biológica para as teorias raciais desintegrou-se.
(Idem: 14)

Ainda segundo Banton “(...) a idéia de raça do século XIX insinuou-se na tapeçaria da história mundial e adquiriu um significado político e social que é largamente, embora não completamente, independente do significado que pode ser atribuído ao conceito de raça na ciência biológica.” (Idem, ibidem: 16)

Hannah Arendt ao analisar o pensamento racial, diz que “[t]oda ideologia que se preza é criada, mantida e aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica (...) Seu aspecto científico é secundário.” (ARENDT, 1989:189) Um dos exemplos mais fortes do uso político da idéia de raça foi o uso feito pelos países imperialistas como legitimação para suas conquistas. Arendt afirma que “[o] imperialismo teria exigido a invenção do racismo como única ‘explicação’ e justificativa de seus atos, mesmo que nunca houvesse existido uma ideologia racista no mundo civilizado. Mas, como existiu, o racismo recebeu considerável substância teórica.” (Idem: 214) Hebe Mattos, refletindo sobre as associações entre a idéia de raça, a escravidão e a cidadania nas Américas, diz também que

não apenas o conceito moderno de raça é uma construção do século XIX, mas a racialização da justificativa da escravidão americana também. Ela se tornou a contrapartida possível à generalização de uma concepção universalizante de direitos do cidadão em sociedades que não reuniam condições políticas efetivas para realizá-la, permitindo, em diversos contextos, o estabelecimento de restrições aos direitos civis de determinados grupos considerados racialmente inferiores, bem como a legitimação da própria manutenção da escravidão no Sul dos Estados Unidos, associada a um progressivo fechamento das possibilidades de alforria. A moderna noção de raça é assim, uma construção social, estreitamente ligada, no continente americano, às contradições entre os direitos civis e políticos inerentes à cidadania, estabelecida pelos novos estados liberais e o longo processo de abolição do cativeiro. [Grifos da autora] (MATTOS, 2004:98)

Levando em consideração a discussão acima, é interessante perceber como a idéia de raça foi utilizada politicamente na construção do Estado-Nação brasileiro: de um lado, nas primeiras décadas da República, pelos que buscavam construir uma nação moderna e embranquecida, como as nações européias, já que acreditavam na superioridade racial dos brancos; e de outro, posteriormente, pelos que passaram a utilizar a idéia de raça de outra maneira, completamente re-significada, como um instrumento de luta por direitos, para afirmação de valores étnicos e para a construção de identidades, como é o caso do movimento negro brasileiro.

Até o início do século XX, em muitos países, predominavam teorias raciais que afirmavam que a raça era determinada biologicamente, e que esta também determinava a cultura, o que fazia com que as diferenças, tanto raciais como culturais, fossem entendidas como desigualdades entre superiores e inferiores, sendo a raça negra o principal alvo de discriminação em diversas sociedades. Mas nem sempre foi assim. Embora sempre tenha existido diversas formas de diferenciação entre os povos no mundo todo, ao longo de toda a história, é interessante observar como durante a antiguidade, em duas das mais importantes matrizes sócio-culturais ocidentais, a grega e a hebraica, populações negras não eram percebidas como inferiores pelo simples fato de terem a pele negra. Para a matriz grega, a diferenciação entre os homens se daria, primordialmente, em função do aspecto cultural: quem não era cidadão da pólis grega, e portanto civilizado, era considerado “bárbaro”. A idéia do ethos grego, opondo civilizados a bárbaros, está nas raízes do etnocentrismo, que é anterior ao racismo. Para Edson Borges, Carlos Alberto Medeiros e Jacques d’Adesky, autores do livro Racismo, Preconceito e Intolerância, embora tivessem uma opinião negativa sobre a maioria das culturas não gregas – chamavam os estrangeiros de “bárbaros”, isto é, selvagens, incultos –, os gregos respeitavam muito os indivíduos de aparência diferente (em particular quanto à cor da pele) e admitiam, por exemplo, que a cultura grega adquirira muitos conhecimentos da cultura egípcia e do seu povo, de pele mais escura. Os romanos herdariam essa visão ao assumir o controle do mundo mediterrâneo: podemos encontrá-la em diversos autores, tanto no período de apogeu do Império Romano quanto em seu declíneo. (BORGES; MEDEIROS e D’ADESKY, 2002: 13)

Já para a matriz hebraica, a ligação com o “divino”, a linhagem direta de descendência de Deus, definiria as diferenças entre os povos. A idéia de um “povo escolhido” por Deus, tem aí suas origens. Assim, para os mesmo autores, no Velho Testamento, sírios, filisteus, cananeus, persas, hititas, medas e outros povos são classificados, inicialmente, de acordo com o ancestral de que originam. Todos descendem, em primeira instância, de Adão e Eva, e, em segunda instância, dos três filhos de Noé: Sem, Cam e Jafé. Os israelitas são “filhos de Sem” – “os abençoados” –, e os filhos de Cam e Jafé formam o restante da “família” humana – isto é, os “amaldiçoados”. Nesse mundo teocêntrico é o “pacto com Deus” que define a diferença entre os povos, e não as diferenças biológicas e culturais. (Idem: 14)

Sendo assim, em ambas as matrizes citadas acima, não era a cor da pele ou a “natureza” dos africanos que determinavam seus comportamentos morais ou a sua capacidade intelectual, ou era algo que tornasse outros povos inferiores. É o que podemos verificar, por exemplo, nos dois trechos citados abaixo, de dois importantes representantes dessas duas matrizes, o livro Histórias, do grego Heródoto e o Livro de Isaías, contido no Velho Testamento, que é importante tanto para os judeus quanto para os cristãos:

“Dizem que os Etíopes são, de todos os homens, os de maior estatura e os de mais bela compleição física, tendo também costumes diferentes dos dos outros povos. Entre eles, o mais digno de usar a coroa é o que apresenta maior altura e força proporcional ao seu porte.
(Heródoto, História III, 20)

“Oh! Terra em que reserva o ruído de asas, além dos rios da Etiópia, tu enviaste mensageiros por mar, em barcos de papiro, sobre a face das águas. Ide mensageiros velozes, a um povo de alta estatura e pele reluzente, a uma nação temida ao longe, a uma nação poderosa e dominadora
(...)” (Isaías 18, 1-3)

O primeiro trecho, retirado do livro de Heródoto, o “pai da História”, que viveu no século V a.C, ao mesmo tempo em que apresenta os Etíopes como os mais altos e belos “de todos os homens”, mostra como, para os gregos, a questão cultural, ou os costumes, era fundamental para demarcar as diferenças entre os povos, e não a cor da pele. Já o segundo trecho, uma citação do livro de Isaías (740 a 681 a.C), demonstra como os etíopes podiam então ser considerados também como “poderosos e dominadores”, por exemplo, e não simplesmente inferiores.

O historiador James Sweet sinaliza alguns marcos importantes para a compreensão das origens do racismo anti-negro, e vai ao final do século VII da era cristã, no início da expansão do Islã pelo mundo árabe, da escravização de povos africanos subsaarianos e do extensivo comércio desses escravos por todo o “mundo islâmico”, realizados durante essa expansão, para afirmar que este seria o primeiro marco de origem do racismo anti-negro no mundo. Ele afirma que “pelos 700 anos de domínio muçulmano no cenário mundial, árabes cultivaram um número de idéias racistas que ainda hoje são familiares para muitos.” (SWEET, 2005:1) E continua sua reflexão dizendo que “Muçulmanos justificavam a escravização de africanos de uma infinidade de formas que só podem ser classificadas como racistas.” (Idem, ibidem:2) O segundo marco, por ele destacado, se dá em meados do século XV, quando, segundo ele, teria havido “uma mudança no pensamento racial”:

Esse segundo marco divisor de águas é exemplificado pelo início do tráfico transatlântico de escravos, um evento que desencadeou o envolvimento final de quase todas as nações européias na subjugação racial de negros africanos. Este período marca também o início do pensamento racial “moderno”, a ligação das aptidões humanas com fatores biológicos imutáveis como linhagem e “pureza de sangue
”. (Idem:2)

O terceiro marco, destacado por Sweet, seria o final do século XVIII, “quando estudiosos e filósofos começaram a usar a ‘ciência’ para explicar as capacidades biológicas de povos de diversas ‘raças’.” Ele diz que para muitos estudiosos contemporâneos, “este racismo pseudo-científico representa a primeira ‘verdadeira’ articulação de racismo; entretanto, outros vêem grande continuidade entre formas anteriores de racismo e aquelas ligadas à ‘ciência’ biológica.” (Idem:2) Voltemos então a algumas “formas anteriores de racismo”, a alguns aspectos que estavam nas raízes do processo de construção dessa “considerável substância teórica” de que falou acima Hannah Arendt, e que fortaleceu e alimentou o pensamento racista moderno.

Uma forma de diferenciação transformada em desigualdade entre superiores e inferiores, surgida no período das Grandes Navegações, é a antítese: pagão x cristão. A partir do século XVI surge o sinônimo de pagão: selvagem, ou os não-cristãos. O impacto da chegada dos europeus na América produz uma associação entre selvagem e canibal, entre barbarismo e canibalismo. As questões da linguagem e do fenótipo passam a ser fundamentais para demarcar a diferenciação. A Espanha foi o lugar principal do debate (a respeito da natureza dos indígenas da América) que opunha a antropologia cristã a uma antropologia inspirada nos Antigos. Para os humanistas imbuídos de Aristóteles, como João Sepúlveda, os índios eram bárbaros, logo, de acordo com a doutrina do mestre, nascidos para ser escravos; para o dominicano Bartolomeu Las Casas, faziam parte da posteridade de Adão, e portanto deviam ser evangelizados e tratados como homens livres. (POLIAKOV, 1974:109)

Leon Poliakov em O mito ariano, através de um trabalho de pesquisa muito interessante, vai até as raízes mais remotas do mito ariano e procura estabelecer as relações entre estas e as teorias pseudo-científicas de um passado próximo, “(...) tentando assim ligar as convulsões européias do século XX aos mitos pré-cristãos desconhecidos e conhecidos(...)”, para tentar entender as razões que levaram até os males gerados pelo racismo – principalmente seu subproduto mais forte: o nazismo. (Idem: XIX) Neste trabalho, Poliakov, assim como Banton em A idéia de raça, afirma que há, desde sempre, uma busca pela genealogia, “(...) cada sociedade invoca uma genealogia, uma origem.” (Idem: XVII) E que durante vários séculos e até o início do séc. XIX a genealogia aceita por vários pensadores da Europa Ocidental era baseada na Bíblia. Como diz Banton, “(...) as noções dos ingleses sobre si mesmos e sobre todos os outros homens estavam dominadas pela antropologia da Bíblia” (BANTON, 1977: 27).

Sendo assim, todos seríamos descendentes de Adão e depois de Noé. A derivação genealógica para baixo se fazia a partir de Jafé, Sem ou Cam, aos quais às vezes se acrescentava um quarto irmão, Jonitão ou Manitão. A fantasia dos autores tinha livre curso, e as variações propostas eram inumeráveis, mas a tendência dominante, de acordo aliás com as sugestões etimológicas já contidas na Bíblia, era a de reservar a Europa aos filhos de Jafé, a Ásia aos de Sem e a África aos de Cam. Deve-se notar que estes últimos constituem o objeto de uma misteriosa maldição, já que estavam condenados a servir de escravos a seus primos (‘E que Canaã seja seu escravo...’, Gen., IX 27). (Idem: XXII)

É interessante notar que, como nos lembra James Sweet, antes mesmo dos europeus, árabes já haviam utilizado essa passagem bíblica, envolvendo Noé e a “maldição” que ele teria lançado sobre seu filho Cam (ou Ham, na versão em inglês) e seus descendentes para demarcar diferenças entre os povos: Algumas das mais antigas expressões da negritude como uma “maldição” emanaram da estória bíblica de Cam. No início do século VIII, Wahb Ibn Munnabih, um árabe de origem persa, escreveu, “Cam, o filho de Noé, era um homem branco, de rosto claro. Deus – Poderoso e Exaltado – mudou sua cor e a cor de seus descendentes por causa da maldição de seu pai.” Lá pelo século XI, a maldição da negritude estava amarrada à permanentes e perniciosas suposições sobre habilidades inatas. (SWEET, 2005:2)

Leon Poliakov também contempla os teóricos poligenistas, mas considera este quadro genealógico, baseado na Bíblia cristã, fundamental para a compreensão de sua análise e, conseqüentemente, das afirmações contidas em seu trabalho. Ele diz ainda que [d]a maldição de Cam a quem a exegese rabínica e, depois dela, a exegese protestante, censuravam os crimes de castração e de incesto até à classificação de Lineu e às descrições de muitos filósofos das Luzes, os homens negros serviam de alvo às impiedosas censuras dos homens brancos, a negrura, e com ela a vasta gama de suas associações maléficas, opondo-se à brancura, como o crime à inocência, ou vício à virtude, ou ainda a bestialidade à humanidade. (POLIAKOV, 1974: 110)

A diferença pela cor da pele passa a ganhar maior expressão nos trabalhos dos “cientistas” ainda antes da consolidação do conceito de raça. O próprio termo “raça” começa a surgir em meados do séc. XVIII. O naturalista e médico sueco Carlos Lineu (1707-1778), a quem Poliakov chama de “o homem que domina as ciências da natureza no séc. XVIII” (Idem: 137), integrou, em seu Sistema da natureza, o homem no reino animal. Todavia, segundo Poliakov, o Homo sapiens não entrava completamente nu neste reino: “Lineu vestia-o ridiculamente com os trapos de que o haviam dotado gerações de viajantes e de sábios brancos.” (Idem: 137) Veja-se a diferenciação das variedades efetuada por Lineu:

Europaeus albus
: (...) engenhoso, inventivo(...) branco, sanguíneo(...) É governado por leis.
Americanus rubesceus: contente com sua sorte, amante da liberdade(...) moreno irascível (...) É governado pelos costumes.
Asiaticus luridus: (...)orgulhoso, avaro (...) amarelado, melancólico (...) É governado pela opinião.
Afer niger: (...) astuto, preguiçoso, negligente (...) negro, fleumático (...) É governado pela vontade arbitrária de seus senhores.” (Idem: 137) ...

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Fonte:
Amilcar Araujo Pereira: “O Mundo Negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil - 1970-1995.” (Tese apresentada no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, sob a orientação da Profª Dra. Hebe Maria Mattos, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor). Universidade Federal Fluminense – UFF. Niterói/RJ, 2010 .

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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