Os riscos da ciência

“Como visto, a ciência pode receber de outros sistemas problemas de risco, como quando o sistema político comissiona especialistas para decidir sobre a segurança de um produto. Por seu turno, a ciência opera de uma forma que é tanto arriscada quanto perigosa, de acordo com a forma de atribuição: ela corre riscos para si mesma e gera perigos para outros sistemas. Essa tendência a produção de riscos e perigos é intensificada pelo código binário do sistema verdadeiro/falso.

A pesquisa científica, segundo Luhmann, corre riscos porque decisões sobre pesquisas devem ser tomadas antes de se conhecerem seus resultados – que podem ser negativos e não gerar novos conhecimentos. Do ponto de vista interno do sistema, a ciência precisa gerar continuamente novas verdades e a pesquisa corre sempre o risco de fracassar.

Por outro lado, ela gera perigos porque o conhecimento gerado pela ciência não pode ser ignorado por outros sistemas funcionais quando se torna relevante para eles. Por exemplo, a economia incorpora novos conhecimentos na oferta de produtos e serviços devido à concorrência; o sistema político incorpora conhecimentos científicos para a área militar e nas políticas de intervenção e proteção. Assim, do ponto de vista da relação entre sistemas, o perigo da ciência surge do acontecimento oposto: do seu êxito em gerar novas verdades.

“Só a verdade pode ser perigosa, devido à obrigação inerente de reconhecê-la e por sua validade. Tão logo o conhecimento é explorado, ele pode levar a danos ou perdas, os quais fazem parecer, retrospectivamente, que foi errôneo ter explorado o conhecimento desde o início.”
(Luhmann, 2008: 204).

Mas isto só pode ser considerado como risco no contexto da exploração, ou seja, da perspectiva de outros sistemas. A produção de conhecimento deve ser considerada da perspectiva do conhecimento científico, cujo objetivo é obter conhecimento.

Na ciência, a verdade só pode ter conotações positivas. Qualquer outro atributo deformaria a operação a tal ponto que a ciência não mais a reconheceria como científica. Até experimentos potencialmente perigosos (...) não podem ser proibidos apenas pela ciência. Entretanto, a ciência – alguns afirmam, felizmente – não é a única autoridade envolvida
(Luhmann, 2008: 205, grifo meu).

Assim, a ciência opera de uma maneira que é tanto arriscada quanto perigosa. Nenhum dos dois valores permite furtar-se ao problema de danos ou perdas incertas; apenas a forma de atribuição difere: se uma verdade pode ser estabelecida é uma questão de risco; se ela é estabelecida, ela é uma questão de perigo para aqueles afetados. A unidade verdadeiro/falso garante, desta forma, uma co-produção de riscos e perigos praticamente inevitável.

Tais riscos e perigos disparam no que tange às conseqüências ecológicas e tecnológicas. A ciência é levada para territórios que não são os seus, para tratar de problemas não gerados no sistema científico; muitas vezes, são os efeitos colaterais indesejados de tecnologias incorporadas em produtos, isto é riscos gerados pelo sistema econômico, cuja regulação normalmente se encontra sob responsabilidade do sistema político. A ciência se depara com problemas ‘transcientíficos’
que não pode resolver.

E se ela não consegue responder quando demandada – a questão do tempo novamente se coloca - , é acusada de fracasso.

“Isto apenas confirma indiretamente que a ciência é um sistema autopoiético que só pode proceder na base de seu próprio estado e só pode usar aquelas estruturas (teorias, métodos) que ela produziu por suas próprias operações.Por esta razão, questões endereçadas à ciência vindas de fora devem – se for para serem feitas – ser disciplinadas ou desencorajadas pela sociedade
(Luhmann, 2008: 205-206, grifo meu).

Problemas de risco endereçados à ciência por outros sistemas podem ser perigosos tanto para a ciência quanto para o próprio sistema que fez a demanda. Sendo um problema transcientífico, a ciência não tem garantias de que, ao aplicar suas operações, produzirá novos conhecimentos, atingindo seu objetivo específico, pois está fora de sua agenda própria na busca de novas verdades. Por outro lado, “não se pode esperar que os cálculos de risco feitos pela própria ciência – com o objetivo de aumentar a probabilidade de a pesquisa obter resultados e evitar esforços em vão – possam contar qual racionalidade social como um todo.” (Luhmann, 2008: 207). Isto porque uma demanda do sistema político será traduzida nas operações especificamente científicas – e a ciência é cega para os perigos que ela cria, especialmente a ciência do risco.

Entre os riscos da ciência, está o de pessoas ou afirmações abusarem da reputação científica. Devido à reputação científica, recorre-se à ciência para buscar argumentos, “como uma fábrica de munições suprindo ambos os lados em confrontos políticos e ideológicos. Correspondentemente, uma perda de autoridade tem sido há tempos observada e lamentada” (Luhmann, 2008: 213, grifo meu). Assim, devido à especificidade funcional da ciência, ela recebe demandas de outros sistemas, mas estas mesmas demandas ameaçam aquilo pelo qual a ciência é, em primeiro lugar, demandada.

Bourdieu (2004) vê nestas demandas externas riscos à autonomia da ciência. Sem cair na armadilha da alternativa da “ciência pura”, livre das necessidades da sociedade e da “ciência escrava”, sujeita a todas as pressões dos campos político e econômico, o autor usa o conceito de poder de refração para analisar este problema. Como campo social diferenciado, a ciência mediatiza as pressões externas, traduzindo-as para sua lógica e aplicando-lhes suas regras. Quanto mais problemas exteriores incidem sobre um campo, quando princípios heterônimos e pessoas pouco competentes de acordo com suas leis podem intervir em seu funcionamento, menor sua autonomia.

Conforme acima mencionado, o autor usa o modelo da economia para as relações dentro do campo. Assim, a heteronomia no campo implica a concorrência imperfeita entre seus agentes, permitindo-lhes trazer armas não-científicas nas lutas científicas, como argumentos de autoridade, sanções de carreira. Ao contrário, a autonomia o aproxima de uma concorrência pura e perfeita, na qual as armas válidas e eficazes para a vitória são as da lógica, dos argumentos, demonstrações e refutações (: 32). O melhor dos mundos para a ciência é o da concorrência puramente científica. Entretanto, ressalva o autor, sua autonomia com relação aos poderes externos jamais é total. Como a atividade científica implica um custo econômico, o grau de autonomia de uma ciência depende, entre outros fatores, do grau de necessidade de recursos econômicos para a condução das pesquisas, o qual varia segundo as disciplinas.

Um outro fator é o tipo de financiamento, público ou privado. No primeiro caso, o autor destaca a relação entre a pesquisa básica e a aplicada, sendo a primeira pautada pela invenção e a segunda por dois momentos, a invenção e a inovação, que envolve a aplicação do conhecimento gerado em produtos a fim de obter novos lucros. Neste caso, se acoplam as lógicas científica e a econômica. No tipo de financiamento público, o Estado garante uma independência do campo científico vis-à-vis o mercado, ao mesmo tempo em que cria uma outra dependência, desta vez com relação ao Estado.

Um dos grandes paradoxos dos campos científicos é que eles devem, em grande parte, sua autonomia ao fato de que são financiados pelo Estado, logo colocados numa relação de dependência de um tipo particular, com respeito a uma instância capaz de sustentar e de tornar possível uma produção que não está submetida à sanção imediata do mercado” (: 55).

Embora o Estado também possa “impor constrangimentos geradores de heteronomia e de se fazer de expressão ou de transmissor das pressões de forças econômicas (...) das quais supostamente ele libera” (op.cit.), Bourdieu considera esta uma falsa antinomia, na medida em que a ciência pode servir-se do Estado para liberar-se dele, quando age de uma forma pró-ativa e lhe antecipa ao propor uma agenda de pesquisa própria, para a qual pede financiamento estatal. O avanço da cientificização, isto é, da diferenciação do campo científico, está diretamente ligado ao seu processo de autonomização, o qual encontra menos impedimentos na lógica e vocação universal das instituições estatais que financiam a pesquisa do que nos interesses categoriais dos investimentos privados, segundo o autor.

Bourdieu (2004: 68; 2001: 5-6) considera como uma regressão da autonomia da ciência quando ela é usada para legitimar ações políticas inspiradas em razões não científicas ou quando se notam pressões econômicas, especialmente em domínios nos quais os produtos da ciência são altamente lucrativos, entre os quais cita a biotecnologia. Um índice do aumento da heteronomia da ciência seriam os relatos constantes sobre casos de conflitos de interesse entre pesquisadores e interesses comerciais, por exemplo.

Em suma, a questão da autonomia tem papel central na teoria da diferenciação de Luhmann e de Bourdieu, pois “quanto mais se é autônomo, mais se tem chance de dispor da autoridade específica, isto é, científica ou literária, que autoriza a falar fora do campo com uma certa eficácia simbólica” (:74). É em virtude da especificidade do campo científico que ele é chamado pelo Estado para subsidiar suas políticas sanitárias e é em virtude da sua autoridade específica que ele é eleito pelo mercado como árbitro em disputas comerciais, o que será objeto do capítulo seguinte.

Para finalizar, cumpre reter deste primeiro capítulo e das perspectivas de Luhmann e de Bourdieu que a existência de autonomia não implica a inexistência de relações, pois a própria diferenciação concomitante à autonomização gera demandas recíprocas entre as esferas sociais. O próximo capítulo analisará algumas destas demandas nas relações entre a política, a ciência e a economia no âmbito das regras da Organização Mundial do Comércio. Estas foram criadas para minimizar efeitos negativos ao comércio que as políticas para lidar com o risco sanitário podem ter. Assim, pretende-se explorar o tema do risco à saúde como um problema das fronteiras entre as três esferas. As disputas que surgem na construção dessas fronteiras serão o objeto do último capítulo, que analisa uma controvérsia comercial sobre alimentos geneticamente modificados na Organização Mundial do Comércio.”


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Fonte:
Renata Campos Motta: “O RISCO NAS FRONTEIRAS ENTRE POLÍTICA, ECONOMIA E CIÊNCIA: A CONTROVÉRSIA ACERCA DA POLÍTICA SANITÁRIA PARA ALIMENTOS GENETICAMENTE MODIFICADOS”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Fernanda Antônia da Fonseca Sobral). Universidade de Brasília – UnB. Brasília, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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