"Há duas formas de se compreender a Sociedade Alternativa anunciada por Raul Seixas. Uma é a física, a que deveria se localizar no terreno cedido pela Astrum Argentum com o nome de Cidade das Estrelas, em um projeto que foi interrompido, e a da Sociedade a ser construída pelo enorme leque de movimentos jovens libertários dos anos 1960 e 1970. A outra é a metafísica, a que continua a existir independentemente das noções de tempo e espaço, como força motriz a animar novas formas de luta libertária e de expressão criativa:
“BIZZ – E a sua “Sociedade Alternativa”?
Raul – Continua vigorando o tempo todo, não importa de que maneira. São alternativas concretas mesmo, que têm de se solidificar. Mas não mais com palavras, nem com porta-estandarte. Até já fui expulso do país por isso”.
Apesar de se referir à Sociedade Alternativa como algo mais espiritual – talvez pelo susto da prisão -, estão claras as preocupações políticas de Raul Seixas na luta por levar esse projeto adiante. Quando voltou do exílio, em julho de 1974, foi lançado o LP Gita, com a música Sociedade Alternativa, exibida em todo o Brasil pelo programa Fantástico – O show da vida, no centro do poder midiático do país. Raul sempre apontou na direção dessa proposta e durante os anos em que ele se apresentou ao lado de Marcelo Nova - a partir de 18 de setembro de 1988, quando os dois subiram na concha acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador -, ele declamava os princípios da Sociedade Alternativa, pedindo para o público prestar uma atenção tal a essas palavras, como se cada um dos presentes as estivesse falando. Até falecer, a 21 de agosto de 1989, Raul lutou por este ideal, e isso o coloca, segundo Toninho Buda, na dimensão dos poetas românticos que deram ênfase ao cunho social, morrendo apaixonados pela causa, pela humanidade, como Castro Alves, em contraposição aos românticos líricos, que morriam de amor individual. Toninho Buda afirma que, como o também baiano Castro Alves, Raul lutava pela libertação dos escravos, com uma diferença: “Raul Seixas fala da libertação de todos os escravos, sejam eles negros, brancos, índios, burocratas ou donas-de-casa”.
Um dos que fazem cover de Raul Seixas, Amorim Menezes, fez uma certa comparação entre o roqueiro baiano e Che Guevara:
“Ele teve oitenta e poucas músicas censuradas, mas as que passavam, passavam como um disparo na cara dos militares do sistema planetário. O Raul tinha muito a ver com as idéias humanitárias, e ele era isso. E talvez por isso ele tenha sofrido muito; por não ter separado o homem do artista. Ele era um guerreiro, n`é? Tanto é que ele era um Che Guevara com a guitarra na mão. Che Guevara tem uma frase muito forte que é: Teremos que ser duros, porém nunca perder a ternura. Raul Seixas, quando tinha que ser duro, era duro, mas sempre com a ternura plena”.
A ênfase na contestação política aparece também nesse artigo publicado em uma outra edição da Revista Bizz:
“A volta de Raul ao palco acontece no momento em que esse se prepara para mergulhar de cabeça na divulgação do novo disco, A Pedra do Gênesis. O nome – “a pedra que deu início à humanidade” – não poderia ser mais apropriado. Ao lado da capa, há uma foto de Raul há cinco anos, segurando um livro de Magia. E com várias referências mais ou menos explícitas ao longo do vinil, ele representa a volta ao passado, mais especificamente a 74, ano do lançamento de Gita, o LP que trazia o hino “Sociedade Alternativa”. No novo álbum, ela reaparece como uma música incidental em “A Lei” – essa uma adaptação livre da carta que dita as leis da sociedade esotérica a que Raul se ligou em meados dos anos 70. “A Sociedade Alternativa sempre esteve presente em minha vida. Em todos os shows eu canto essa música e aproveito para ler os princípios da sociedade. São as leis do ser humano, pela liberdade do homem, contra as ditaduras”.
Em Raul Seixas e em muitos dos militantes contraculturais, não há essa separação entre Espiritualidade e Política, ou entre o sagrado e a sexualidade. Isso representou uma inovação diante da intransigência das ortodoxias políticas – inclusive as de esquerda - e religiosas.
A Contracultura nos ensinou que a ação diz muito mais do que as palavras. Um dos maiores desafios para os contestadores do século XXI é lutar contra a tendência, muito bem construída pelos setores conservadores da sociedade, de minar o que foram as conquistas da Revolução Contracultural em nome de uma Contrarevolução Cultural que se apresenta como a “Verdade Absoluta”, da qual Raul Seixas tanto desconfiava.
Encerrarei este capítulo com o Manifesto 11 da Sociedade Alternativa, outro dos textos essenciais a evocar a atmosfera daquele movimento juvenil, que foi escrito em 1985 por Raul Seixas, Sylvio Passos, Toninho Buda, Christina Oiticica, Paulo Coelho e Ed Cavalcanti, no apartamento do Paulo, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Segundo o que me foi dito por Sylvio Passos, o número 11 é uma referência à numerologia cabalística. De fato, são 11 as Sephirot da Cabala, incluindo entre elas a Sephira oculta Daath, a sabedoria que pode modificar toda a existência. No Tarot, XI é o Arcano A Força. Se para o roqueiro baiano a Lei do Forte é a nossa Lei e a alegria do mundo, faz sentido traçar essa analogia. Segue o texto:
1- O espaço é livre. Todos têm direito de ocupar seu espaço.
2- O tempo é livre. Todos têm que viver em seu tempo, e fazer jus às promessas, esperanças e armadilhas.3- A colheita é livre. Todos têm direito de colher e se alimentar do trigo da criação.
4- A semente é livre. Todos têm o direito de semear suas idéias sem qualquer coerção da INTELEGENZIA ou da BURRICIA.
5- Não existe mais a classe dos artistas. Todos nós somos capazes de plantar e de colher. Todos nós vamos mostrar ao mundo e ao Mundo a nossa capacidade de criação. 6- "Todos nós" somos escritores, donas-de-casa, patrões e empregados, clandestinos e careta, sábios e loucos.
7- E o grande milagre não será mais ser capaz de andar nas nuvens ou caminhar sobre as águas. O grande milagre será o fato de que todo dia, de manhã até a noite, seremos capazes de caminhar sobre a Terra.
Sucesso a quem ler e guardar este manifesto. Porque nós somos capazes. Todos nós, todos nós somos capazes.”
---
Fonte:
Luiz Alberto de Lima Boscato: “VIVENDO A SOCIEDADE ALTERNATIVA: Raul Seixas no Panorama da Contracultura Jovem”. (Tese de Doutorado em História Social, apresentada à FFLCH/USP, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva). Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
“BIZZ – E a sua “Sociedade Alternativa”?
Raul – Continua vigorando o tempo todo, não importa de que maneira. São alternativas concretas mesmo, que têm de se solidificar. Mas não mais com palavras, nem com porta-estandarte. Até já fui expulso do país por isso”.
Apesar de se referir à Sociedade Alternativa como algo mais espiritual – talvez pelo susto da prisão -, estão claras as preocupações políticas de Raul Seixas na luta por levar esse projeto adiante. Quando voltou do exílio, em julho de 1974, foi lançado o LP Gita, com a música Sociedade Alternativa, exibida em todo o Brasil pelo programa Fantástico – O show da vida, no centro do poder midiático do país. Raul sempre apontou na direção dessa proposta e durante os anos em que ele se apresentou ao lado de Marcelo Nova - a partir de 18 de setembro de 1988, quando os dois subiram na concha acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador -, ele declamava os princípios da Sociedade Alternativa, pedindo para o público prestar uma atenção tal a essas palavras, como se cada um dos presentes as estivesse falando. Até falecer, a 21 de agosto de 1989, Raul lutou por este ideal, e isso o coloca, segundo Toninho Buda, na dimensão dos poetas românticos que deram ênfase ao cunho social, morrendo apaixonados pela causa, pela humanidade, como Castro Alves, em contraposição aos românticos líricos, que morriam de amor individual. Toninho Buda afirma que, como o também baiano Castro Alves, Raul lutava pela libertação dos escravos, com uma diferença: “Raul Seixas fala da libertação de todos os escravos, sejam eles negros, brancos, índios, burocratas ou donas-de-casa”.
Um dos que fazem cover de Raul Seixas, Amorim Menezes, fez uma certa comparação entre o roqueiro baiano e Che Guevara:
“Ele teve oitenta e poucas músicas censuradas, mas as que passavam, passavam como um disparo na cara dos militares do sistema planetário. O Raul tinha muito a ver com as idéias humanitárias, e ele era isso. E talvez por isso ele tenha sofrido muito; por não ter separado o homem do artista. Ele era um guerreiro, n`é? Tanto é que ele era um Che Guevara com a guitarra na mão. Che Guevara tem uma frase muito forte que é: Teremos que ser duros, porém nunca perder a ternura. Raul Seixas, quando tinha que ser duro, era duro, mas sempre com a ternura plena”.
A ênfase na contestação política aparece também nesse artigo publicado em uma outra edição da Revista Bizz:
“A volta de Raul ao palco acontece no momento em que esse se prepara para mergulhar de cabeça na divulgação do novo disco, A Pedra do Gênesis. O nome – “a pedra que deu início à humanidade” – não poderia ser mais apropriado. Ao lado da capa, há uma foto de Raul há cinco anos, segurando um livro de Magia. E com várias referências mais ou menos explícitas ao longo do vinil, ele representa a volta ao passado, mais especificamente a 74, ano do lançamento de Gita, o LP que trazia o hino “Sociedade Alternativa”. No novo álbum, ela reaparece como uma música incidental em “A Lei” – essa uma adaptação livre da carta que dita as leis da sociedade esotérica a que Raul se ligou em meados dos anos 70. “A Sociedade Alternativa sempre esteve presente em minha vida. Em todos os shows eu canto essa música e aproveito para ler os princípios da sociedade. São as leis do ser humano, pela liberdade do homem, contra as ditaduras”.
Em Raul Seixas e em muitos dos militantes contraculturais, não há essa separação entre Espiritualidade e Política, ou entre o sagrado e a sexualidade. Isso representou uma inovação diante da intransigência das ortodoxias políticas – inclusive as de esquerda - e religiosas.
A Contracultura nos ensinou que a ação diz muito mais do que as palavras. Um dos maiores desafios para os contestadores do século XXI é lutar contra a tendência, muito bem construída pelos setores conservadores da sociedade, de minar o que foram as conquistas da Revolução Contracultural em nome de uma Contrarevolução Cultural que se apresenta como a “Verdade Absoluta”, da qual Raul Seixas tanto desconfiava.
Encerrarei este capítulo com o Manifesto 11 da Sociedade Alternativa, outro dos textos essenciais a evocar a atmosfera daquele movimento juvenil, que foi escrito em 1985 por Raul Seixas, Sylvio Passos, Toninho Buda, Christina Oiticica, Paulo Coelho e Ed Cavalcanti, no apartamento do Paulo, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Segundo o que me foi dito por Sylvio Passos, o número 11 é uma referência à numerologia cabalística. De fato, são 11 as Sephirot da Cabala, incluindo entre elas a Sephira oculta Daath, a sabedoria que pode modificar toda a existência. No Tarot, XI é o Arcano A Força. Se para o roqueiro baiano a Lei do Forte é a nossa Lei e a alegria do mundo, faz sentido traçar essa analogia. Segue o texto:
1- O espaço é livre. Todos têm direito de ocupar seu espaço.
2- O tempo é livre. Todos têm que viver em seu tempo, e fazer jus às promessas, esperanças e armadilhas.3- A colheita é livre. Todos têm direito de colher e se alimentar do trigo da criação.
4- A semente é livre. Todos têm o direito de semear suas idéias sem qualquer coerção da INTELEGENZIA ou da BURRICIA.
5- Não existe mais a classe dos artistas. Todos nós somos capazes de plantar e de colher. Todos nós vamos mostrar ao mundo e ao Mundo a nossa capacidade de criação. 6- "Todos nós" somos escritores, donas-de-casa, patrões e empregados, clandestinos e careta, sábios e loucos.
7- E o grande milagre não será mais ser capaz de andar nas nuvens ou caminhar sobre as águas. O grande milagre será o fato de que todo dia, de manhã até a noite, seremos capazes de caminhar sobre a Terra.
Sucesso a quem ler e guardar este manifesto. Porque nós somos capazes. Todos nós, todos nós somos capazes.”
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Fonte:
Luiz Alberto de Lima Boscato: “VIVENDO A SOCIEDADE ALTERNATIVA: Raul Seixas no Panorama da Contracultura Jovem”. (Tese de Doutorado em História Social, apresentada à FFLCH/USP, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva). Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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