Rediscutindo a sexualidade em Foucault

“Embora Foucault (1971) tenha tratado a sexualidade em termos de exclusão e interdição no livro A ordem do discurso, em outro momento de seus estudos, História da sexualidade I, o autor assume uma perspectiva um pouco diferenciada ao tratar do que ele denomina “hipótese repressiva”. Foucault (1976) afirma que o discurso sobre a sexualidade, ao contrário do que muitos estudiosos acreditam, não foi reduzido ao silêncio nos séculos XVII, XVIII e XIX. Segundo o autor, no início do século XVII, acreditava-se que havia certa tolerância em relação ao “ilícito”, as transgressões eram menos punidas, os códigos de conduta ligados à obscenidade, à decência, à grosseria eram frouxos. Com o advento da burguesia, a sexualidade ilegítima, não regulada pela família e pela igreja, passou a integrar cenários específicos, próprios das obscenidades, como as casas de prostituição e as casas de saúde. Ao que extrapolava esses espaços, era imposto um tríplice decreto de interdição, inexistência e mutismo, ou seja, havia uma repressão/interdição ao discurso sobre a sexualidade.

Contudo, Foucault (1976, p. 15) afirma que as coisas não eram exatamente dessa forma e questiona a ideia de repressão ao sexo e de transgressão enquanto forma de status. O autor levanta três dúvidas que, segundo ele, merecem um estudo mais cuidadoso: “a repressão do sexo seria, mesmo, uma evidência histórica?” Ou seja, de um momento para outro na história passou-se a reprimir o sexo e a estabelecer o que se situava no campo do lícito e do ilícito? A segunda dúvida diz respeito ao modo como o poder é socialmente exercido – “a interdição, a censura, a negação são mesmo as formas pelas quais o poder se exerce de maneira geral, talvez em qualquer sociedade e, infalivelmente, na nossa?”. A terceira e última dúvida diz respeito à ideia de ruptura dessa repressão: “existiria mesmo uma ruptura histórica entre a Idade da repressão e a análise crítica da repressão”, surgida a partir de um cruzamento do discurso crítico contra as ideias sustentadas por um mecanismo de poder que, até então, não havia sido contestado? Tais dúvidas, de cunho histórico-teórico-político, trazem um novo olhar sobre a história da sexualidade nos últimos três séculos.

A questão básica levantada por Foucault (1976, p. 14) não é “por que somos reprimidos, mas por que dizemos, com tanta paixão, com tanto rancor contra nosso passado mais próximo, contra nosso presente e contra nós mesmos que somos reprimidos?”.

Para o autor, a partir do século XVII, ocorreram transformações contínuas em torno do discurso sobre a sexualidade. Não houve uma interdição da sexualidade, o que parece ter havido foi uma forma diferenciada de tratar das questões que a envolvem. Mudou-se o modo de falar sobre o sexo e as circunstâncias em que se tratavam da sexualidade de uma maneira geral. Definiu-se quem, quando, onde e como poderia tratar dessa questão: não era possível falar sobre sexo em quaisquer lugares. Mas os discursos sobre a sexualidade não cessaram. Pelo contrário, ganharam mais força, embora houvesse restrições em relação às ações e aos dizeres classificados como ilícitos que fugiam às regras da decência. O efeito dessas restrições, no entanto, foi a intensificação, a promoção e a valorização do discurso “indecente”.

Por meio da confissão, nos diz Foucault (Ibid), a Igreja “controlava” as palavras, os pensamentos, os desejos carnais, o prazer e os pecados que envolvem os atos sexuais. Havia, nesse caso, uma interdição ao sexo por parte dela. Mas a burguesia produzia seus discursos e, ao contrário do que se afirmava, a partir do séc. XVII, “constituiu-se uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, susceptíveis de funcionar e de serem efeito de sua própria economia” (Foucault, 1976, p. 26). Não houve, segundo o autor, um silenciamento do sexo a partir do séc. XVII, não se passou a falar menos sobre ele, mas, como dito anteriormente, passou-se a falar dele de outra maneira, por outras pessoas, a partir de outros pontos de vista e visando a outros efeitos – efetivou-se uma relação de prazer e poder em torno do sexo.

O discurso sobre o sexo passou a ser essencial para a sociedade ocidental e, por volta do séc. XVIII, surge uma incitação política, econômica, técnica a se falar do sexo, analisá-lo, especificá-lo e classificá-lo, não unicamente pelas regras da moralidade, mas da racionalidade, daquilo que dele seria proveitoso para a sociedade. Embora, de acordo com Foucault (1976, p. 27), a medicina tenha demorado a tratar da sexualidade e, em princípio, o tenha feito de forma contida, havia o reconhecimento da necessidade de se falar sobre sexo publicamente de uma forma analítica e ordenada, que não fosse “ordenada em função da demarcação entre o lícito e o ilícito”, independentemente de o locutor manter para si mesmo essa distinção. Era preciso falar do sexo “como uma coisa que não se deve simplesmente condenar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo” (Foucault, Ibid., p. 27). O sexo não deveria ser julgado, mas administrado, pelo fato de ele se inscrever além do alcance do poder público. Por isso, havia a necessidade de regulá-lo por meio de discursos “úteis e públicos” e não por meio da proibição, da interdição.

No séc. XVIII, houve, segundo Foucault (Ibid., p. 34), uma proliferação dos discursos sobre o sexo e as questões relacionadas a ele não cessaram de provocar uma espécie de “erotismo discursivo generalizado”. Tais discursos não ocorriam fora do alcance do poder ou mesmo contra ele, mas em meio ao exercício do poder e dos dispositivos criados por ele para observar a sexualidade, analisá-la, institucionalizá-la em múltiplos mecanismos na ordem da economia, da medicina, da pedagogia e da justiça. Esses mecanismos não visavam proibir ou reduzir a prática sexual, mas visavam o controle dos sujeitos, da população de um modo geral. Nesse século, surgiu uma nova tecnologia de controle da sexualidade por meio da pedagogia, da medicina e da economia.

Embora a ciência, nesse período, não fugia à temática do pecado, ela se esquivava da interdição eclesiástica. A sexualidade, segundo Foucault, passou a ser um negócio de Estado (controle de doenças, procriação etc). Promoveu-se uma vigilância constante das ações dos sujeitos por todo o corpo social. Todas as técnicas utilizadas em torno da sexualidade, com suas mutações, seus deslocamentos, continuidades e rupturas, não se inscreveram em uma grande fase repressiva instituída na Idade Clássica e encerrada no decorrer do século XX. O que se verificou no período que vai do século XVI, com o exame da consciência, ao século XIX, com o surgimento das tecnologias médicas foi um transformação gradativa do tratamento dado à sexualidade.

A hipótese repressiva é posta por Foucault (Ibid.) em uma economia geral dos discursos sobre o sexo a partir do séc. XVII. A interdição sobre o sexo, que se acredita ter havido e ainda haja, não é elemento fundamental e constituinte em torno do qual se pode tratar da história da sexualidade a partir do séc. XVII. A proibição e a repressão se inscrevem em um discurso que envolve uma técnica de poder, uma vontade de saber e uma depuração do vocabulário sobre o sexo, ocorrida a partir do séc. XVIII. A dispersão do discurso sobre a sexualidade, antes restrito à Igreja, ocorre ainda nesse século e no séc. XIX. Nas instituições de ensino, ocorreu uma diversificação das disciplinas. A medicina, a psiquiatria, a justiça, a política passaram a contabilizar, classificar e especificar a prática sexual por meio de pesquisar e análise do comportamento das pessoas. Produziu-se uma multiplicidade de discursos sobre o sexo em muitas instituições. Houve uma incitação a se falar de sexo, a registrar, a transcrever e a distribuir o que dele se falou em diferentes aparelhos criados especificamente para tratar dele.

Para Foucault (Ibid.), no séc. XVIII, a pastoral cristã, ao tratar o sexo como objeto de confissão, valorizou-o enquanto segredo, contribuindo para a incitação a se falar dele. Assim como o direito econômico e a lei civil, a pastoral cristã fixou, a sua maneira, a linha divisória entre o lícito e o ilícito, centrado nas relações matrimoniais monogâmicas heterossexuais. Os discursos em tornos do sexo eram carregados de regras e recomendações: os que rompiam as leis do casamento ou procuravam prazeres estranhos mereciam ser condenados. O que fugia à regra figurava nas listas de pecados graves, como o estupro, o adultério, o rapto, o incesto espiritual ou carnal e a sodomia. Tais pecados povoavam os conselhos de disciplina, as casas de correção, as penitenciárias, os tribunais e os asilos. Nos séc. XVIII e XIX, o prazer do poder era organizado pelo Estado e mantido pela família com a separação entre adultos e crianças, meninos e meninas.

No séc. XIX, de acordo com Foucault (Ibid.), promoveu-se uma verdadeira caçada às sexualidades periféricas e o poder sensualizado manifesto pela observação insistente da sexualidade ganha impulso por seu próprio exercício, funcionando como um mecanismo de apelação que atrai para si e extrai aquilo que desvela. Ele se transforma em prazer: prazer de exercer o poder que questiona, espia, que exerce controle sobre os corpos e as relações afetivas. Mas o prazer também se inscreve na fuga, no engano ao poder: “prazer por ter que escapar a esse poder, fugir-lhe, enganálo ou travesti-lo” (cf. Foucault, 1976, p. 45). Tais prazeres se inscreviam no que Foucault (Ibid, p. 45) chamou de “dispositivos de saturação sexual” e envolviam, na captação e sedução e no confronto e reforço recíprocos, pais e filhos, adultos e adolescentes, educadores e alunos, médicos e doentes, e o psiquiatra “com seus histéricos e seus perversos”.

Para Foucault (Ibid, p. 46-7), a sociedade burguesa do séc. XIX e XX constituiuse como “uma sociedade de perversão explosiva e fragmentada”. Isso, segundo ele, não se deu de uma maneira hipócrita, “pois nada foi mais manifesto e prolixo, nem mais abertamente assumido pelos discursos e instituições”. Nem também porque, “ao querer erguer uma barreira demasiado rigorosa ou geral contra a sexualidade tivesse, a contragosto, possibilitado toda uma germinação perversa e uma séria patologia do instinto sexual”. Deu-se por meio de um poder que não tem a forma da lei nem os efeitos da interdição, que não fixa fronteiras para a sexualidade, mas trata das sexualidades singulares e as reduz; que provoca suas diversas formas, sem esquivá-la, sem excluí-la. A sociedade moderna ocidental, segundo Foucault (1976, p. 47), talvez tenha proposto uma nova configuração, perversa e real, para as sexualidades múltiplas, inscrevendo-as em determinadas formas de prazer e rotulando-as segundo uma idade, um lugar próprio, um gosto específico e um tipo de prática, mas “não a despeito de seu puritanismo ou como reação à sua hipocrisia”. Tais rotulações geram lucro por intermédio da medicina, da psiquiatria, da prostituição e da pornografia, vinculadas à concentração analítica do prazer e à majoração do poder que controla as ações dos sujeitos. O prazer e poder em torno da sexualidade, de acordo com Foucault (1976, p. 48), não se excluem e não se voltam um contra o outro, caminham juntos, entrelaçamse, “encadeiam-se através de mecanismos complexos e positivos, de excitação e de incitação”.

A sociedade moderna industrial, para o autor, não reprimiu o sexo ou o excluiu das relações de poder e prazer, pelo contrário, promoveu uma verdadeira disseminação dos discursos sobre as sexualidades heréticas por meio de um dispositivo de lei que, se por um lado apoiava localmente determinados procedimentos de interdição, por outro lado assegurava a proliferação e estimulava a intensidade de prazeres múltiplos. Mas o discurso científico, de certa forma, esquivou-se do sexo, barrou-lhe o acesso ou mesmo mascarou-o em nome do saber, construindo em torno dele e a propósito dele um imenso aparelho para produzir a verdade e dela se apoderar.

A vontade de saber sobre o sexo, vontade de verdade, também se consolidou nas ações promovidas pela sociedade em torno dele, esquivando-se dele, barrando-lhe o acesso ou mesmo mascarando-o. O que de importante ocorreu, no século XIX, segundo Foucault (1976, p. 56), não reside no fato de se ter tapado os olhos ou os ouvidos para o que se dizia e se fazia, ou mesmo no engano, mas de ter sido construído em torno do sexo e a propósito dele “um imenso aparelho para produzir a verdade, mesmo que para mascará-la no último momento”. Para Foucault (Idem),

O importante é que o sexo não tenha sido somente objeto de sensação e de prazer, de lei ou de interdição, mas também de verdade e de falsidade, que a verdade do sexo tenha-se tornado coisa essencial, útil ou perigosa, preciosa ou temida; em suma, que o sexo tenha sido constituído em objeto de verdade.

Essa busca constante do domínio da verdade e do poder e prazer que esse domínio encerra movimentou a ciência, a religião e a política nos últimos séculos. Cada instância procurava regular, a sua maneira, a sexualidade de homens, mulheres e crianças.

Para Foucault (Ibid.), a ars erotica encontrada em muitas sociedades orientais considera que a verdade é extraída do prazer como prática, segundo sua intensidade, sua qualidade, sua duração e suas reverberações no corpo e na alma e não enquanto lei absoluta do proibido e do liberal. O saber constitutivo dessa relação deve permanecer secreto, manifestar-se de forma discreta de modo a preservar suas virtudes.

No ocidente, desde o século XIII, de acordo com o autor, assistiu-se a scientia sexualis manifestada por meio da confissão, seja no âmbito judicial, religioso, amoroso, médico, familiar. As confissões se tornaram rotineiras na vida das pessoas. Confessavam-se os pecados, os crimes cometidos e até mesmo os pensamentos e desejos cotidianos. O sexo constituiu-se matéria privilegiada das confidências por envolver relações de poder e prazer. Contudo, a ars erótica mantinha-se viva na confissão cristã, por meio de procedimentos que se aproximavam de uma arte erótica, em que o exame da consciência e a busca constante pelo amor divino eram orientados por mestres ao longo de um processo de iniciação.

No século XIX, ao constituir uma scientia sexualis, a sociedade ocidental passou a produzir discursos científicos sobre o sexo, por meio da junção entre confissão e métodos de escuta clínica, isto é, ajustando os processos de confissão às regras do discurso científico. Tal ajuste não foi simples e imediato, pelo contrário, foi difícil e caracterizou-se em um longo processo de constituição da sexualidade enquanto prática discursiva da scientia sexualis e enquanto discurso verdadeiro do sexo e de seus prazeres. A sexualidade, no século XIX, foi definida, segundo Foucault (1976, p. 67), como sendo, em sua natureza,

um domínio penetrável por processos patológicos, solicitando, portanto, intervenções terapêuticas ou de normalização; um campo de significações a decifrar; um lugar de processo ocultos por mecanismos específicos; um foco de relações causais infinitas, uma palavra obscura que é preciso, ao mesmo tempo, desencavar e escutar.

Portanto, para Foucault (Ibid., p. 68), ao contrário do que se acreditava, não só se tratou do sexo por meio de um dispositivo elaborado para produzir discursos verdadeiros sobre ele, como também se “empreendeu a formulação de sua verdade regulada”. O autor conclui seu pensamento, afirmando que:

através de círculos cada vez mais fechados, o projeto de uma ciência do sujeito começou a gravitar em torno da questão do sexo. A causalidade no sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito no outro que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio ignora, tudo isso foi possível desenrolar-se no discurso do sexo. Contudo, não devido a alguma propriedade natural inerente ao próprio sexo, mas em função das táticas de poder que são imanentes a tal discurso. (FOUCAULT, 1976, p. 67-8)

O autor também questiona se, desde o século XIX , a scientia sexualis não tem funcionado como uma ars erótica pelo menos em algumas de suas dimensões na produção da verdade sobre o sexo, mesmo que intimidada pelo discurso científico. Nota-se que a ars erótica não desapareceu completamente das sociedades ocidentais, embora se mantivesse distante da ciência do sexo.

Mais que uma repressão, exclusão ou rejeição ao sexo, assistiu-se, nos últimos séculos, segundo Foucault, à proliferação de discursos a partir e em torno dele, à incitação dos corpos a promovê-lo, mesmo que em instâncias distintas da sociedade. Falou-se e ainda se fala muito sobre sexo, quer em instâncias de cunho religioso, jurídico, medicinal ou pedagógico. Fala-se também de sexo nas conversas cotidianas, nas relações familiares. Busca-se constantemente a verdade e o poder e prazer que essa verdade proporciona. Segundo Foucault (Ibid., p. 87), nas sociedades modernas, o poder, de fato, não regeu a sexualidade ao modo da lei e da soberania, mas no prazer que esse poder, esse “saber sobre”, proporcionava.

Se quisermos centrar a história da sexualidade nos mecanismos de repressão, podemos, de acordo com Foucault, supor duas rupturas: uma que ocorreu no século XVII e outra no século XX. A primeira seria marcada pelo nascimento das grandes proibições, das relações matrimoniais, dos imperativos da decência, do controle da linguagem e das ações corporais. A segunda seria menos ruptura, mas um momento em que os mecanismos da repressão se encontrariam em processo de afrouxamento. No lugar das interdições sexuais impostas, teríamos uma relativa tolerância no que diz respeito às relações pré-nupciais e extraconjugais. Nessa última fase, teria ocorrido uma atenuação às chamadas perversões sexuais, eliminando, em parte, sua condenação pelos mecanismos da lei.”

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Fonte:
Márcia Fonseca de Amorim: “O discurso da e sobre a mulher no funk brasileiro de cunho erótico: uma proposta de análise do universo sexual feminino”. (Tese apresentada ao curso de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas – IEL/UNICAMP – como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Linguística). Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Campinas/SP, 2009.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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