A VIOLÊNCIA: ASPECTOS HISTORIOGRÁFICOS E TEÓRICOS
"Pensar a violência é pensar a história da humanidade. Sabe-se que a civilização foi fundada sobre conflitos: num primeiro momento entre as tribos nômades; posteriormente, quando estas tribos começaram a se fixar, entre as cidades construídas por elas. Quando as nações se formaram, os conflitos então passaram a ser entre os países. Os objetivos destes conflitos são, quase sempre, os mesmos: dominar, aumentar território, escravizar o inimigo. Isto se torna evidente quando lembramos dos grandes impérios que surgiram ao longo dos séculos. Só para citar alguns: Império Macedônio; Império Romano; Império Otomano; Império Napoleônico. Todos eles expandindo-se através de guerras descritas das mais diversas formas. A Literatura, ao lado de concepções filosóficas, sociológicas e antropológicas, é uma destas formas de representar e descrever a violência humana ao longo dos séculos.
Antes, porém, vale ressaltar a importância das narrativas contidas no texto bíblico, que servem de escol para algumas teorias sobre a violência, como as de René Girard e Roger Dadoun. Tanto em um quanto em outro estudioso, aparece a figura inicial da violência como sendo a dos irmãos que disputam o prestígio perante Deus. Os filhos do casal primordial, Caim e Abel, resolvem dedicar uma oferenda ao Senhor, cada qual Lhe oferece o que possui e considera fruto de seu trabalho. Caim oferece os frutos da terra, pois era agricultor. Já Abel, sendo pastor, Lhe oferece os primogênitos de seu rebanho. Deus aceita a oferta de Abel e recusa a de Caim, acusando-o e castigando-o, sem que o texto bíblico justifique tal atitude. O resultado é fatídico: Caim mata Abel, inaugurando a violência entre os homens.
Este fratricídio original pode ser considerado como a violência matriz de tantas outras que surgem no decorrer de um processo histórico que resulta sempre em outra violência. Se tomarmos o texto bíblico do Velho Testamento como suporte para tal suposição, verificar-se-á que toda a história do homem, descrita nos mais de quarenta livros que compõem esta primeira parte, é feita de violência. Violência que pode ser de Deus como do próprio homem em nome Dele, ou não. Antes mesmo do crime primordial, percebe-se o fato de que a mulher é criada a partir de uma costela do homem, o que revela, no mínimo, um ato invasivo, agressivo. Tem-se, ainda, a expulsão do paraíso, ou seja, o homem acaba expulso do local porque adquiriu a sabedoria, a inteligência, ao comer do fruto proibido. Ainda no Gênesis, acontece o dilúvio, em que Deus extermina a raça humana e tudo o mais que está na terra, salvando apenas os seus preferidos através da Arca que manda Noé construir. Depois do dilúvio, tem-se Babel.
Ao perceber que o homem tinha a inteligência para construir uma cidade e concentrar-se num só local, Deus faz com que não falem mais a mesma língua, confundindo os homens e espalhando-os pelo mundo.
Na seqüência da história bíblica, tem-se a descendência de Abraão. Os netos deste, Esaú e Jacó, filhos de Isaac, acabam disputando o direito à primogenitura. Esaú, sendo o mais velho, tinha o direito à herança de seu pai, porém foi enganado pelo irmão que recebeu a benção em seu lugar. A partir daí, começa uma seqüência de trapaças em que Jacó é enganado por Labão, com quem foi morar para fugir do ódio do irmão, que lhe dá sua filha Lia em lugar de Raquel. Por ela trabalhou sete anos, tendo que trabalhar mais sete anos para ter Raquel. Depois Jacó engana Labão para tornar-se mais rico, separando as cabras mais saudáveis para si e as outras para Labão. Ao fugir com suas mulheres e filhos, além do rebanho que roubou de Labão, Jacó chega à cidade de Sucot, onde sua filha Dina é violentada pelo filho do príncipe local. Este, após violentá-la, apaixona-se e a pede em casamento, contudo, os irmãos de Dina enganam os homens da cidade e acabam assassinando todos, além de pilharem a cidade em vingança pela desonra da irmã.
Logo em seguida, vê-se novamente a violência entre irmãos. Os filhos de Jacó, com inveja do irmão mais novo, José, resolvem matá-lo, mas por opinião de um deles decidem poupá-lo da morte e acabam vendendo-o como escravo a uma caravana. Os homens desta caravana o vendem a Putifar, ministro e chefe da guarda do Faraó. José torna-se posteriormente o salvador do povo de Israel, quando acontece a seca de sete anos na região.
Na história do Êxodo, segundo livro do texto bíblico, percebe-se uma violência exacerbada por parte de todos os lados. Primeiro vem o Faraó que manda matar todos os primogênitos dos hebreus, salvando-se apenas Moisés, que posteriormente será o guia na fuga do Egito. Depois as pragas do Egito: a água do rio Nilo se transforma em sangue e ocorrem as infestações de rãs, de mosquitos, de moscas, a peste nos rebanhos egípcios, os tumores e chagas nos homens e animais egípcios, a chuva de pedras, a infestação de gafanhotos, a escuridão completa no território egípcio, a morte de todos os primogênitos do Egito, até que o povo hebreu consegue a liberdade e vai em busca da terra prometida.
A partir do livro Deuteronômio, verifica-se que a busca da terra prometida é feita de guerras diversas em que o “povo de Deus” vai massacrando a população das cidades por onde passa, matando homens, mulheres e crianças, além de saquear as cidades. Acontece a mesma coisa após a travessia do rio Jordão com o povo já sob o comando de Josué, pois no livro que leva o nome do profeta descreve-se a conquista da terra prometida, não sem muitos atos de violência para dominar as cidades ali existentes. Vêem-se, depois, muitas guerras para a manutenção da terra conquistada, além ainda da história de Sansão, que está no livro Juízes, em que este homem, apenas por vingança, mata, segundo o texto bíblico, milhares de filisteus. Tirando os livros sapienciais, pode-se afirmar que o texto bíblico do Velho Testamento está carregado de uma violência sem fim. Ao contar a história do povo judeu, o texto traz à tona relatos de uma luta interminável para a conquista e manutenção da terra prometida, com guerras entre os povos da época e destruição de comunidades inteiras em nome de Deus. Traz, ainda, a descrição da luta pela conquista e manutenção do poder dentro dos clãs. Um exemplo disso é a atitude do rei Salomão ao mandar matar seu irmão mais velho com medo de que este tome seu trono. Casos como este são comuns nos relatos inseridos na obra bíblica, tida como verdade por aqueles que acreditam que a obra foi inspirada por Deus. Sabe-se, contudo, que muitos destes fatos são históricos e representam a formação da sociedade judaica.
Se nos voltarmos para a mitologia grega, evidencia-se que a discórdia e o ódio faziam parte da vida não só dos homens como também dos deuses. A primeira história mitológica que demonstra isso é a castração de Urano. Após o deus ter mandado seus filhos rebeldes, os ciclopes, para o Tártaro, a Mãe Terra convence os titãs a atacarem seu pai. Liderados por Cronos, o mais jovem dos sete, eles surpreendem Urano durante o sono e Cronos o castra e, segurando sua genitália com a mão esquerda, atirou-a no mar. Os Titãs então concederam a Cronos a soberania sobre a Terra. Sua mãe profetiza que ele seria destronado por um de seus filhos, como fez com o pai, por ter confinado novamente os ciclopes no Tártaro, junto com os gigantes de cem mãos, todos seus irmãos. Ao tomar conhecimento disso, Cronos devora todos os filhos que vão nascendo de sua irmã e mulher Réia. Ela, enraivecida com a atitude de Cronos, ao dar a luz Zeus, seu terceiro filho homem, o dá à Mãe Terra, que o leva a Lictos, em Creta, para que fosse criado pela ninfa Adrastéia. Quando adulto, Zeus pede ajuda de sua mãe Réia. Tornando-se copeiro de Cronos, deu-lhe a poção de Métis. Ao beber em excesso, Cronos vomitou primeiro a pedra que Réia havia lhe dado no lugar de Zeus, depois vomitou também os filhos que tinha devorado. Eles estavam intactos e, por gratidão, pediram a Zeus que os liderassem em uma guerra contra os Titãs. A guerra durou dez anos, mas ao final, após libertar os ciclopes e os gigantes de cem braços, Zeus e seus irmãos vencem os Titãs, que foram confinados no Tártaro e vigiados pelos gigantes de Cem Mãos. Apenas Atlas, por ser o líder, foi obrigado a carregar o céu nos ombros como punição.
A partir daí, verifica-se que os deuses estarão sempre em pé de guerra uns contra os outros. Exemplo disso é a tentativa dos outros deuses de destronarem Zeus, amarrando-o em sua cama. Porém, Tétis, antevendo uma guerra no Olimpo, correu em busca de Briareu, um dos gigantes de cem mãos, que libertou Zeus das amarras. O deus olímpico castigou Hera, sua esposa e irmã, que liderou o grupo, pendurando-a no céu com um bracelete de ouro em cada punho e uma bigorna amarrada em cada tornozelo. Puniu também Poseidon e Apolo, mandando-os como servos ao rei Laomedonte, para quem eles construíram a cidade de Tróia. Os outros deuses, como foram coagidos a participar da revolta, foram perdoados por Zeus.
Essa sede de sangue dos deuses da mitologia grega é percebida também nas duas epopéias clássicas de Homero. O autor faz questão de ressaltar o tempo todo, em suas narrativas, que os homens devem sacrifícios aos deuses. Antes de cada batalha, ou mesmo em tempos de paz, uma parte dos animais abatidos para o consumo deve ser queimada em honra aos deuses, além, ainda, do fato de que o abate do animal deve ser feito ritualisticamente. A morte do animal é oferecida aos deuses satisfazendo suas necessidades de sangue, aplacando, assim, qualquer possibilidade de castigo advindo do Olimpo.
Da mesma forma, pode-se perceber a violência entre os heróis míticos da Grécia Antiga. Além dos vários relatos e estudos sobre a mitologia grega, será ainda a Ilíada e a Odisséia, ambas de Homero, que revelam a violência entre os homens daquele tempo. Para usar apenas a primeira como exemplo, evidencia-se nas descrições das batalhas na guerra contra Tróia uma violência sem precedentes, tais como as cenas de lutas descritas no “canto V”: “Tendo se aproximado, o filho de Fileu [Meges], célebre por sua lança, acutilara-o [Pedeu] na nuca com o dardo agudo: passando através dos dentes, cortou-lhe o bronze a base da língua. Pedeu caiu no pó e mordeu o bronze frio com os dentes” (HOMERO, 1982, p. 76); ou: “Eurípilo, ilustre filho de Evemon, vendo Hipsenor fugir à sua frente, atingiu-o no ombro com o sabre e, num salto, arrancou-lhe do corpo o braço pesado. O braço, ensangüentado, caiu ao chão, e sobre os de Hipsenor abateram-se a morte purpúrea e a potente sorte” (HOMERO, 1982, p. 76); ou ainda, ao descrever as façanhas de Diomedes, a epopéia deixa clara a violência de uma batalha feita corpo a corpo quando este degola seus inimigos: “Aí venceu Astínoo e Híperon, pastores de tropas; atingiu o primeiro acima do seio com a lança de ponta de bronze, golpeou o outro com a grande espada na clavícula, e destacou-lhe o ombro do pescoço e das costas” (HOMERO, 1982, p. 77); ou: “Lá ainda, Diomedes surpreendeu dois filhos do dardânio Príamo, montados no mesmo carro, Equemon e Crônio. Assim como um leão, que entre reses se atira e quebra de um golpe o pescoço de um bezerro ou de uma vaca que pascem, assim, a ambos, fê-los descer duramente do carro o filho de Tideu” (HOMERO, 1982, p. 78).
A mesma violência aparecerá na morte de Pátroclo, no “canto XVI”, que depois de ser ferido por trás pelo deus Apolo, envolvido no meio da batalha, será ferido por Euforbo, com sua lança, também por trás. Então, aproveitando-se da situação, “Vendo retirar-se o magnânimo Pátroclo, ferido pelo bronze agudo, abeirou-se dele Heitor, atravessando as fileiras; feriu-o, com a lança, embaixo do flanco, empurrando o bronze através da carne” (HOMERO, 1982, p. 254). A morte de Pátroclo faz com que Aquiles retorne à batalha, da qual até então estava afastado por divergências com Agamêmnon. Sua volta à guerra traz consigo uma carnificina das tropas troianas que culminará na luta entre ele e Heitor e a conseqüente morte deste. Não só a morte de Heitor será violenta, como também a atitude de Aquiles em relação ao cadáver do inimigo:
Ora, em toda parte estava a pele coberta das belas armas de bronze, que Heitor arrebatara a Sua Força Pátroclo, depois de havê-lo matado; aparecia, porém, nos pontos em que as clavículas separam o pescoço dos ombros, na garganta, por onde se perde mais depressa a alma. Nesse ponto, sôfrego, contra Heitor empurrou seu pique o divino Aquiles. A ponta passou, de lado a lado, atravessando o pescoço delicado; (HOMERO, 1982, p. 330)
depois:
para o divino Heitor imaginou um tratamento medonho: furou-lhe, por trás, os tendões dos pés, do calcanhar ao tornozelo, prendeu-os com correias, atou-os ao carro deixou que se arrastasse a cabeça ao chão; em seguida, subindo ao carro, depois de haver tomado as armas gloriosas, fez estalar o chicote para instigar os cavalos, que voaram de bom grado. O cadáver, arrastado, levantava poeira; em torno, espalhavam-se-lhe os cabelos escuros, e toda a cabeça, antes tão graciosa, jazia no pó! (HOMERO, 1982, p. 331-332)
Como se vê, no primeiro texto escrito, considerado como literário, já está presente a descrição da violência do ser humano contra o seu próximo, seja ele inimigo ou não. Pois, se pensarmos na situação vivenciada por Aquiles dentro do texto épico, percebe-se que deixou de guerrear entre os gregos que atacavam Tróia porque foi violentado em seu direito de Rei dos Mirmidões, quando utilizou a palavra na assembléia narrada no início da epopéia. Agamêmnon retira inclusive o prêmio recebido por batalhas vencidas anteriormente, em um sinal claro de prepotência e arrogância de quem detém o maior poder naquele momento.
Só aí há exemplos suficientes de que já na Grécia Antiga, berço da civilização Ocidental, a violência sempre esteve presente, não só para manutenção como para a modificação do status quo. Se pensarmos então em outras histórias mitológicas que refletem a fundação da sociedade grega antiga, percebe-se até mesmo uma coincidência de fatos com a história bíblica. Principalmente, nas situações de brigas entre irmãos e parentes para a obtenção do poder ou do reconhecimento. Tem-se o caso de Sarpedon e Minos, tidos como filhos de Zeus, que foram criados pelo rei Astério. Eles se apaixonaram por um belo garoto, Mileto, filho de Apolo com a ninfa Areia. Como o garoto prefere Sarpedon, Minos expulsa o irmão de Creta. Após a morte do rei Astério, os irmãos disputam a sucessão do reino e Minos vence a batalha assumindo o trono.
Na realidade, vários são os exemplos de situações deste tipo dentro da mitologia grega. Outro caso que poderia ser citado é a disputa pelo reino de Tebas entre os filhos de Édipo. Como se sabe, a história de Édipo, imortalizada através das tragédias gregas, é cheia de dor e violência. A começar com o assassinato do próprio pai, sem o saber, é certo, mas não justificando tal atitude impulsiva do herói. Os gêmeos Etéocles e Polinices, após o banimento do pai, foram considerados vice-reis e concordaram em governar em anos alternados. Mas Etéocles não quis devolver o trono ao fim de seu ano, alegando a má índole mostrada por Polinices, banindo-o da cidade. Adrasto, rei de Argos, casou sua filha Egéia com Polinices devido a uma profecia do oráculo, e prometeu devolver o reino de Tebas ao genro. Após longa batalha, a qual os Argivos estavam perdendo, Polinices propõe ao irmão Etéocles que os dois decidissem a sucessão do trono num combate corpo a corpo. Neste confronto, cada um feriu o outro mortalmente, demonstrando mais uma vez que a violência pode aparecer a qualquer momento entre, até mesmo, irmãos de sangue, neste caso, irmãos gerados dentro da mesma placenta. Então, resta apenas uma alternativa para a sociedade: Creonte, seu tio, tomou o comando das tropas e desbaratou os inimigos.
Como visto, as obras tidas como as mais antigas da história da humanidade, o texto bíblico e a epopéia de Homero, ao lado dos mitos e lendas da Grécia Antiga, trazem em si a violência que assola a humanidade desde sua origem. Estes fatos demonstram que a natureza humana está fundada, não apenas pelo aspecto racional que tomou conta do ser a partir de um determinado momento, mas principalmente pelo aspecto instintivo, impulsivo, que leva o homem, em determinadas situações, a realizar atos de extrema violência e, por que não dizer, crueldade, contra o outro, seu semelhante. Não se está afirmando aqui que a violência seria fruto apenas de momentos em que o homem perde o controle de suas próprias emoções. Pois, quando o homem se torna um ser racional, passando a controlar suas emoções, suas vontades mais primitivas, não percebe que a qualquer momento isto pode vir à tona, explodindo com uma violência incontrolada. Mas, ao mesmo tempo, por ter se tornado racional, o homem passou a racionalizar até mesmo a violência.
Neste sentido, evidencia-se que, a partir da racionalização, o ser humano passou a controlar, a calcular, a projetar, a planejar, a justificar, a elaborar, até mesmo a própria violência. Isto não significa que o homem deixou de ser violento, ao contrário, a violência faz parte das características mais primitivas da humanidade, ela está ali dentro de cada um, esperando o momento para ressurgir. Entretanto, pode ressurgir tanto como forma incontrolada da natureza humana, nos acessos de loucura e descontrole do ser, quanto como forma controlada e racionalizada, nas diversas possibilidades, desde crimes premeditados até guerras entre nações. Desta maneira, não há como falar de violência sem concordar com alguns aspectos das teorias elaboradas sobre ela. Tais como, já citadas anteriormente, a de Roger Dadoun, em A Violência: ensaio acerca do homo violens, em que afirma que a violência é característica primordial e essencial do homem, sendo até constitutiva de seu ser. Assim, estaria associada a qualquer aspecto da realidade humana, sendo ela “autodestrutiva” por vocação. Ou ainda, a de René Girard, especificamente sua obra A Violência e o Sagrado, em que desenvolve idéia semelhante, quando diz que a violência é “intestina”, ou seja, ela é interna, íntima do ser humano e que se revela através das desavenças, rivalidades, ciúmes e disputas entre próximos.
Dadoun e Girard discordam no aspecto de ligação da violência com a religiosidade. O primeiro chega a esclarecer que não pretende fazer julgamentos que impliquem em referências religiosas, embora se utilize da gênese bíblica como figura representativa da violência. A violência fundadora seria aquela do Criador para com suas criaturas quando as expulsou do Paraíso por terem desobedecido as suas ordens e comido o fruto do conhecimento, evitando, assim, que comessem o fruto da vida eterna. Mas o castigo foi ainda maior, porque o homem estaria destinado a trabalhar pelo seu sustento e a mulher passaria a parir com dor. Outro exemplo que utiliza é a parte, já citada aqui, em que acontece a desavença entre os irmãos Caim e Abel. Caim sentindo- se preterido por Deus, que não aceita sua oferenda, mata Abel. Caim recebe como castigo o banimento do local onde se fixou sua família, todavia ele acaba por criar uma nova civilização, o que, para Dadoun, comprova a idéia de que a humanidade descende de um criminoso.
Convém deter-se novamente neste crime primordial, inaugural, para verificar o posicionamento de Dadoun sobre ele. Segundo o estudioso, aquilo que parece ser apenas violência bruta, ou pura violência, é, na verdade, perpetrado sem que se possa designar-lhe uma razão suficiente. Ater-se ao texto bíblico o qual afirma que Caim mata porque é tomado por “grande cólera” é tautológico. A Cólera, diz o teórico, é uma manifestação típica da violência, ou seja, é a vertente interna, psicológica, do ato. A origem desta violência criminal, em verdade, não é outra senão o próprio Deus, e é por isso, que pode ser qualificada de pura ou essencial. Como já dito antes, em louvação a Deus, os dois irmãos trazem os produtos selecionados de seu trabalho: Caim, agricultor, oferece os frutos colhidos da terra, enquanto Abel, pastor, oferece os primogênitos de seu rebanho de ovelhas: um quadro bíblico que deveria ter transbordado de satisfação um Deus pleno de bondade e adorado por suas criaturas. No entanto, conforme Dadoun, Deus estraga tudo, agradece a oferenda de Abel e recusa a de Caim, puro capricho do divino num gesto de soberana arbitrariedade, a não ser que Deus tenha conseguido cheirar, nos animais trazidos por Abel, os sangrentos eflúvios de sacrifícios vindouros. Assim, Deus acusa e castiga Caim, que mata seu irmão. Este fratricídio original leva a violência a um ponto culminante e extremo que servirá de matriz para uma longa e incansável posteridade de crimes.
Enquanto Dadoun se utiliza da religiosidade e do texto bíblico para expor uma das figuras da violência, a gênese, a figura originária, Girard afirma que o sagrado é tudo que domina o homem. As condutas religiosas e morais visam à não-violência na vida cotidiana, paradoxalmente por intermédio da própria violência, através do freio automático e onipotente de instituições que determinam a vida em sociedade. No caso de Caim e Abel, Girard faz uma ligação com o rito sacrificial onde a violência intestina poderia ser ludibriada através do sacrifício.
O ponto comum que se pode perceber sobre esta figura da violência do homem contra o homem, na teoria dos dois estudiosos, é que ambos a consideram originária, primordial. Através disto, deixam transparecer que a civilização foi fundamentalmente construída sobre o sangue derramado, desde os primórdios da presença do homem na terra. Neste sentido, Dadoun defende seu posicionamento seguindo o percurso da violência humana para demonstrar que esta é uma característica intrínseca do ser e não pode ser modificada em hipótese alguma, já que defende a existência do homo violens. Diz ele na introdução de seu ensaio:
Nosso propósito agora é o de introduzir uma outra característica do homem, que consideramos primordial, essencial, e até mesmo constitutiva de seu ser, a saber: a violência. Homo violens, tal como o apresentamos e analisamos aqui, é o ser humano definido, estruturado, intrínseca e fundamentalmente pela violência. (DADOUN, 1998, p. 8)
Já René Girard vê esta imagem transcrita no texto bíblico como a possibilidade de desviar a violência da vítima humana. Ele analisa a situação no sentido de que parece existir um desejo interno de violência de irmão contra irmão, demonstrando que, fundamentalmente no princípio das sociedades, os irmãos estão destinados a lutar entre si. Para exemplificar este posicionamento é só lembrar das histórias bíblicas e mitológicas já transcritas aqui. Desta forma, Girard entende como um ensinamento a postura de Deus ao recusar a oferta de Caim, ou seja, somente através de uma vítima sacrificial é possível desviar o desejo de violência que Abel também sentia contra seu irmão Caim. Veja-se o que o autor fala sobre esta história no seu ensaio:
Só é possível ludibriar a violência fornecendo-lhe uma válvula de escape, algo para devorar. Talvez seja este, entre outros, o significado da história de Caim e Abel. O texto bíblico oferece uma única precisão sobre os dois irmãos. Caim cultiva a terra e oferece os frutos de sua colheita. Abel é um pastor e sacrifica os primogênitos de seu rebanho. Um dos irmãos mata o outro, justamente o que não dispõe deste artifício contra a violência, o sacrifício animal. Esta diferença entre o culto sacrificial e o culto não- sacrificial é na verdade inseparável do julgamento de Deus em favor de Abel. Dizer que Deus acolhe favoravelmente os sacrifícios de Abel, o que não ocorre com as oferendas de Caim, é redizer em outra linguagem, a do divino, que Caim mata seu irmão, ao passo que Abel não o mata. (GIRARD, 1998, p. 15)
Como se vê, embora os dois pensadores sigam caminhos distintos ao falar de violência, há um ponto comum entre os dois: a violência faz parte das características do ser humano; ela é de todos e está em todos, é intrínseca, é intestina. A mesma situação encontra-se claramente na obra de Sigmund Freud. Em Além do princípio de prazer, na Teoria dos instintos, ou ainda em As duas classes de instintos, ele defende a tese de que a natureza do homem se estabelece através de duas classes de instintos que visam à autopreservação: “instinto sexual”, ou de vida, também cognominado de Eros; e “instinto destrutivo”, ou de morte, também cognominado de Tanatos. O instinto destrutivo seria responsável pela violência, a partir do fato de que deve ser desviado para fora de si mesmo, evitando desta forma a autodestruição. Neste sentido, infere-se na teoria de Freud de que o homem seria violento por natureza, não só para se autopreservar, como também para evitar a ameaça que o outro representa para sua vida. Tem-se, assim, um sentido de que a violência seria sempre uma resposta a outra violência. Idéia esta refutada tanto por Dadoun quanto por Girard, que se dedicam exclusivamente, nas obras já citadas, a discorrer sobre a violência humana e suas conseqüências para o ser humano.
Dadoun, discordando claramente, expõe que a violência é sempre vista como uma resposta a outra violência. Segundo ele, na vida cotidiana as coisas são percebidas mais ou menos desta maneira, tendo em vista que a vida diária se desenvolve sob uma grande quantidade de pequenas alteridades violentas. É a partir do outro, portanto, que ameaças, agressões, hostilidades e duros golpes atingem o homem fundamentando-se nele. De acordo com o autor, ao declarar o outro como detentor da violência, chega-se a uma medida identificadora em que só é possível descobrir a identidade pessoal quando se evacua no outro o mal, ou seja, o violento que cada um traz em si. Desta maneira, conforme ele, traça-se uma definição fraca e evidentemente não violenta da violência, donde ela é aquilo que não se faz outra coisa senão replicar. Se assim fosse, só existiriam contra-violências jamais uma verdadeira violência. Entretanto, conclui, todas as pretensas contra-violências apenas esclarecem melhor a estrutura do homo violens, iluminando a sua face de agressão e o revelando fundamentalmente como um ser de violência.
Para explicar seu posicionamento, Roger Dadoun expõe os percursos da violência da alteridade e da identidade. As alteridades violentas estão em torno de um “eu” que se sente vitimado, atacado. Assim, diz o estudioso, para dar coerência e consistência ao próprio “eu”, faz-se necessário que o outro seja o detentor da violência. Diante disso, nada se pode afirmar quanto à origem de determinado ato violento, porque, negando a própria estrutura psíquica, o ser humano considera que não só a violência é violência do outro, como é o outro, como tal, que carrega em si a violência. Neste sentido, afirma que o “outro” inflige uma dupla violência, violência da alteridade como tal e violência de alteridade porque tenta identificar, porque corrói a identidade do “eu”. Conseqüentemente, para resistir às alteridades violentas é necessário um “eu” forte, uma identidade segura, que implica uma violência singular. Colocar o “eu” em posição de força consiste em enfrentar pressões de um superego que o atormenta com interdições e ordens e afrontar os assaltos de um inconsciente fortalecido por toda energia pulsional. Dessa forma, o “eu”, para resistir, para tentar manter- se, inevitavelmente, deve ser uma estrutura violenta, uma espécie de força permanente no ser do indivíduo, deixando evidente que a violência não seria apenas a resposta a um ato do outro.
Em Girard, encontra-se também a afirmação de que a violência humana é sempre considerada como exterior ao homem. Ela se funde e se confunde no sagrado, com forças externas que pesam sobre o homem, tal como a morte, as doenças, os fenômenos naturais. Segundo o estudioso, os homens não conseguem enfrentar a nudez insensata de sua própria violência sem correrem o risco de se entregarem a ela. Cria-se um jogo no qual os homens querem e conseguem se acreditar completamente ausentes, o jogo de sua própria violência. Assim sendo, é possível perceber o aparecimento unânime de uma violência recíproca. Uma violência que afeta toda a comunidade, uma violência maléfica e contagiosa, que deve ser transformada em benéfica e fundadora, gerando ordem e segurança. É compreensível, diz o autor, que todas as atividades humanas estejam subordinadas a esta metamorfose da violência no seio da comunidade. Quando os homens deixam de se entender e de colaborar, todas as atividades ficam prejudicadas. Os benefícios atribuídos à violência fundadora vão, portanto, exceder de maneira prodigiosa o quadro das relações humanas. Assim, o jogo da violência, ora recíproco e maléfico, ora unânime e benéfico, torna-se o jogo de todo o universo.
Girard afirma que, quer a violência seja física quer verbal, um certo intervalo de tempo decorre entre cada um dos golpes. A violência recíproca torna-se irresistível e oscila de um combatente a outro, durante todo conflito, sem conseguir se fixar, espalhando-se por toda coletividade. Somente a expulsão coletiva, segundo ele, conseguirá fixá-la definitivamente fora da comunidade através da vítima sacrificial. A vítima carrega consigo, na morte, esta violência recíproca. A partir deste momento, considera-se que ela encarna a violência, tanto na sua forma benévola quanto malévola. Por conseguinte, o desejo liga-se à violência triunfante porque os homens possuem tendências agressivas mais ou menos latentes, eles se esforçam desesperadamente para dominar este ímpeto irresistível. O ritual, conclui, só tem sucesso na sua tarefa de apaziguar e enganar as forças maléficas, se deixar que a violência se libere um pouco, mas não demais, num contexto e sobre objetos rigorosamente fixados e determinados. A violência unânime, ou seja, aquela que elimina a si própria, é considerada fundadora, pois todas as diferenças que estabiliza, todas as significações que fixa, já estão aglutinadas a ela e oscilam de um combatente a outro. Mas, Girard afirma, por fim, que enquanto a violência permanece presente entre os homens e enquanto constitui um objeto de disputa, ao mesmo tempo total e nulo, nada poderá imobilizá-la.
Evidencia-se que o pensamento, tanto de Dadoun quanto de Girard, leva ao entendimento da violência como parte integrante do ser humano, isto é, não há como eliminá- la do seio da coletividade porque os homens são seres violentos por natureza. Neste mesmo percurso, segue o pensamento de Mauro Pergaminik Meiches, em A Travessia do Trágico em Análise. Ele argumenta que o homem, para viver em qualquer forma de organização humana, deve se submeter a regras e proibições que possibilitem a convivência com o outro. Nesse sentido, o impulso interior tem de ser controlado para não deixar os desejos individuais sobreporem-se aos desejos da coletividade. Na vida organizada socialmente, ou seja, na vida civilizada, o homem deve aprender a conviver com o seu instinto, pois lhe é imposto um limite, através do qual ele fica sujeito a uma composição de forças que fortalecem o racional. Caso isso não ocorra, uma vez que existe a fraqueza humana a qual aparece na vida emocional e volitiva do homem, diz o psicanalista, o homem fica sujeito à aparição repentina do irracional que o conduz ao erro, visto ser a necessidade que sobrecarrega e sobredetermina o ato. Desta forma, ficaria subentendido que existe um reinado absoluto da racionalidade e que aquilo que não se encaixa na vida civilizada passa a ser deixado de lado, gerando um conflito entre a possível existência de um inamovível do homem e as formas de vida em sociedade.
Sobre o comportamento do ser humano nas relações com o outro, Meiches argumenta que o homem lida com o sentimento de mal-estar, próprio de quem sabe que, para viver sob qualquer forma de vida civilizada, torna-se necessário o conhecimento que possibilite a convivência com o outro homem. Isso implica regras e proibições para aquilo que todos sabem ser próprio do ser humano. Para tanto, afirma ele, esse conhecimento passa pelo caminho da dor e com uma força de grande potência. A experiência dolorosa forja a transformação das relações com os outros seres humanos, mas não sem uma convivência turbulenta entre partes diferentes. Surge, então, o confronto do homem com sua vida civilizada, os assujeitamentos que ele teve e tem de fazer e tematizar para posicionar-se diante das leis que codificam uma situação e uma condição.
Segundo o ensaísta, existe, portanto, um caráter irrevogável da influência de outrem, gerando o sofrimento advindo do mundo exterior, capaz de se encravar no espírito com forças destruidoras onipotentes e implacáveis, desencadeando nas relações com outros seres humanos um sentimento mais doloroso que qualquer outro, pois o que está em jogo é o conflito entre duas ordens de coisas. Assim, o homem se situa em um solo totalmente movediço de valores e práticas que instaura a formação do homem interior, ou seja, do homem como sujeito responsável e que determina sua maneira de proceder na vida em sociedade, instaurando o processo de conscientização daquilo que se faz. O homem, portanto, deve estabelecer um uso adequado para a vontade ou intenção, que não firam os valores sociais preestabelecidos, adquirindo virtudes necessárias para agir conseqüentemente.
Neste mesmo sentido, Meiches argumenta que o terrível e a morte são lugares obrigatórios do ser humano que o levam de encontro com a alteridade, cujas principais figuras são o inimigo e o amigo. A alteridade faz o homem entrar em contato com o sentimento de efemeridade e com as destituições necessárias de certas identificações e idealizações. Contanto, a situação de conflito jamais terá uma solução definitiva, pois o jogo de forças contraditórias a que o homem está submetido implica, segundo o teórico, numa dinâmica geradora de mal-estar. Ele cita Freud, para comprovar sua idéia, pois este diz que a repressão da sexualidade e da agressividade incrementam o superego, que se torna imbativelmente poderoso. Devido a isso, quanto maior a repressão, mais evidente fica, segundo Meiches, que toda sociedade e toda cultura originam tensões e conflitos que demonstram a condição humana, seus limites e sua finitude necessária.
Tal idéia freudiana está em Totem e Tabu. Neste texto, Freud narra uma dupla violência originária: a primeira, uma violência bruta exercida por um macho sobre os membros da horda primitiva, apropriando-se de todas as mulheres, caçando, castrando ou matando os filhos tornados rivais; a segunda, uma violência conciliada, em que os irmãos unidos se livram do déspota e instauram uma sociedade verdadeiramente humana com duas instituições primitivas: o totemismo, culto do ancestral assassinado, e a exogamia ou tabu, recaindo sobre as mulheres do grupo, pela posse das quais originalmente cometeu-se o crime. Freud fala, ainda, de um mecanismo de interiorização, constitutivo do próprio tecido psíquico, que trabalha transformando a violência criminal em sentimento de culpabilidade, em angústia ligada à falta, ao pecado, ao remorso, assim como ao desejo de reparação.
Tais teorias culminam na idéia de que o homem civilizado tornou-se o ser da racionalidade por excelência. Para viver em sociedade, não podendo explicar ou resolver aquilo que é próprio do ser humano, seus instintos mais primitivos, a solução foi recalcar os desejos e as vontades no sentido de manter o controle e diminuir os conflitos da convivência social. Assim, pensou-se que, através da razão, os problemas da humanidade estariam resolvidos. Acontece, entretanto, que a cada vez que a racionalidade falhou, a humanidade conheceu convulsões de graves conseqüências. Pensa-se aqui, por exemplo, na queda da Bastilha, durante a Revolução Francesa, momento em que o povo descontente deixa-se levar pelo desejo de vingança contra a nobreza destruindo e saqueando Paris. Um outro exemplo, não tão extensivo como este, mas que pode ser encarado como idêntico, é a atitude de soldados quando participam das guerras. Sua função racional é destruir o inimigo, representado pelo exército, não pela população, do país atacado. Porém, os relatos de violência contra civis durante as guerras são reveladores deste lado do homem que devia estar escondido dentro de si e que, em momentos como este, aparecem de maneira a pôr às claras a verdadeira natureza do ser. Vários são os relatos de estupros, torturas, dizimação completa de vilas e cidades. Só a título de exemplo, vale a pena ter em mente a Guerra do Vietnã, tão bem retratada em filmes como Platon, Nascido em 4 de Julho e Apocalipse Now, que embora obras de ficção, não deixam de escancarar a violência dos soldados americanos contra a população vietnamita.”
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Fonte:
MOACIR DALLA PALMA: “A VIOLÊNCIA NOS CONTOS E CRÔNICAS DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação, em Letras – Estudos Literários da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras. Area de concentração: Estudos Literários. Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon). Universidade Estadual de Londrina – UEL. Londrina, 2008.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Um pouco da história da VIOLÊNCIA
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