“No Brasil, com a entrada das agências profissionais de publicidade no mercado, em meados da década de 1930, em apoio às empresas de comunicação e às indústrias, uma nova organização da economia de mercado refletiu culturalmente no consumo. Esse sistema, ao transformar lugares sociais antes exclusivamente masculinos em uma mescla ambígua de lugares masculinos e femininos (MORIN, 1997), torna-os modelos identificadores para o grande público consumidor apoiando-se no próprio público: cover girls de um universo onde reina não só um determinado valor de vida social, mas uma rede direcionada a uma mútua singularidade. Construiu também biografias culturais para as próprias produções gráficas no formato de revistas e anúncios enquanto produtos de consumo destinados a públicos específicos, segmentados, porém massificadores. Essa é a contradição, pois embora estejam ligados a produtos industrializados e ao oferecimento de serviços (através de artigos e reportagens), acabam por enriquecer o sentido do “eu”, do estilo de vida, ao mesmo tempo ultrapassando o âmbito do privado. Canevacci (2001, p. 239) argumenta que
[...] Da sociedade de consumo [...] passamos à cultura do consumo (FEATHERSTONE, 1982, 1990), que se vai difundindo na vida quotidiana e que transformou a ordem simbólica, em parte prescindindo e em parte condicionando a expansão das mercadorias a serem vendidas no mercado. [...] A cultura do consumo é fundada na constante produção e reprodução de sinais bem reconhecíveis por seus donos e por seu público; ela não encoraja um conformismo passivo na escolha das mercadorias, mas, pelo contrário, procura educar os indivíduos a ler as diferenças dos sinais, a decodificar facilmente as infinitas minúcias que diferenciam as roupas, os livros, os alimentos, os automóveis, os ambientes.
Desse modo, vemos o campo “vida de saúde” da década de 1940, migrar para o campo “vida de beleza” da década de 1950, e nele se dissolvendo em “vida de cuidado de si”; assim como o campo “vida eletrodoméstica” dos anos 1940 migra, na década seguinte, para o de suporte tecnológico de última geração, que se divide com amigas mais ou menos ociosas. Ao analisarmos essas categorias socioculturais presentificadas em alguns anúncios, percebemos que a construção de um vir-a-ser passa, antes, por um vir-a-ter.
Trata-se de não se fixar apenas em uma análise que se faz do interior do próprio anúncio, desvendando suas características formais e os diferentes tipos de produção, mas de considerar também seus elementos externos, ou seja, os temas expressos pelo anúncio que servem de categorias de análise para a interpretação das representações sociais nele presentes enquanto contextos móveis e dinâmicos, participantes ativos dos processos de construção dos conteúdos simbólicos. Essa abordagem busca compreender as representações “não somente como produzidas pelo social, mas também como produtoras de realidade” (BLÁSQUEZ, 2000, p. 192) e, principalmente, as práticas culturais que irão expressar os valores e muitos dos significados construídos na relação entre as mídias e as instituições sociais urbanas da nossa sociedade, através do emprego direto de técnicas visuais para documentar e/ou interpretar as realidades. A análise das imagens das mulheres nos anúncios tem o fim de buscar os valores, os estilos de vida e as inovações dos códigos veiculados para a elaboração de modelos que irão atuar no convencimento público (CANEVACCI, 2001).
Nas décadas de 1940 e 1950, as agências de publicidade e as editoras possuíam, em seu staff, pessoas de origem variada, regidas por uma ideologia comum. E é de bom tom frisar que, nessa época, a maioria dos seus funcionários era composta por homens. Em minha pesquisa, somente encontrei informações sobre umas poucas colaboradoras — externas ao ambiente redacional e de estúdio e, outras trabalhando diretamente com as instituições —, como é o caso de Eugenia Brandão nos idos da década de 1910, em datas anteriores à época do levantamento dos anúncios:
[...] nossa primeira “reportisa”, qualificação que se dava às autoras de reportagens. Eugenia, moça avançada para o seu tempo, ganhara notoriedade ao relatar, no jornal carioca A Rua, em 1914, as agruras de jovens enclausuradas pela família em um convento do Rio. Para obter as entrevistas, a “reportisa”, que tinha dezesseis anos de idade, não hesitou em se internar na instituição, movida, segundo Fon Fon!, por uma “curiosidade nervosa”. (A REVISTA..., 2000, p. 44)
Quando, em 1914, encontramos na apresentação da matéria de Eugenia sobre as meninas enclausuradas a menção de que a “reportisa” encontrava-se movida por uma “curiosidade nervosa”, essa implicava um tipo de envolvimento pleno por adquirir informações, porém o envolvimento era considerado “histérico” quando tratado pelos homens da redação, que “viam”, no seu fazer jornalístico, exagero desnecessário, conforme subtendido na citação. Temos uma leitura desse fazer jornalístico no sentido de um envolvimento do fazer à americana, diferentemente da forma como era feito por aqui e, portanto, inadequado para a mulher daquela época. Essa “leitura” acaba se fixando como um código social, estabelecendo limites às ações das mulheres em vários campos durante gerações (ELIAS, 1995), incorporada como um “valor agregado” ao comportamento das mulheres de atitude da próxima geração, constante nos anúncios veiculados nas páginas das revistas vindouras. Esse valor sofre tentativas, várias, de rachaduras através dos movimentos de mulheres em fazer valer o direito ao voto e ao trabalho extradoméstico só alcançado na era varguista e sob intensa propaganda do Estado. Propaganda que Sevcenko (1998b, p. 38) ilustra, quando nos anos 1930 e 1940,
[...] vividos predominantemente sob a tutela varguista (1930-45), a orientação autoritária do governo pretendeu compor doses complementares de repressão e doutrinação a fim de construir sua base social de sustentação política. Haurindo ensinamentos dos regimes repressivos que se multiplicam na Europa nesse período, as autoridades federais procurariam tirar o máximo proveito das técnicas de propaganda e dos meios de comunicação social, muito especialmente do rádio. [...] Ademais, o envolvimento da imagem do presidente com o cinema, o teatro, o disco, o humor gráfico, o Carnaval e a gravura popular revelava que a prática inédita de produzir o consenso por meio de apelos sensoriais e conotações afetivas, se mostrava muito mais eficiente que a racionalidade dos discursos. Ao amestrar os potenciais desestabilizadores das novas tecnologias, o regime expunha a inclinação conformista de suas formas de consumo e sua particular adequação como recursos de gestão social. Interferindo na dinâmica dos instintos e dos afetos mais íntimos de cada um, o regime consolidava a ordem política coletiva.
Como é nas décadas de 1940 e 1950 que suponho encontrar a gênese de um momento histórico que inaugura a modernidade brasileira, pois o país migra “de uma população majoritariamente analfabeta, num salto para uma ordem cultural centrada em estímulos sensoriais de imagens e dos sons tecnicamente ampliados” (SEVCENKO, 1998b, p. 38), torna-se imprescindível compreendê-las para entender nossas formas de comunicação contemporâneas. Os significados dos enredos assumidos pelo discurso publicitário não são estáticos e não podem ser interpretados de maneira definitiva; devem ser interpretados nas suas variantes geográficas e biográficas ao assumirem a negociação entre a subjetividade dos autores, de suas peças/personagens e a subjetividade de seus espectadores (CANEVACCI, 2001), a quem os anúncios são direcionados: vivemos imersos na cultura do consumo como uma cultura de comunicação visual do tipo de repetição eletrônica industrial.
É a nova história e, nesse sentido, a publicidade tem marcado aqueles lugares da diferença: a apropriação social das peças publicitárias como fator cultural faz com que a publicidade concentre em seu interior poderes e conflitos que suplantam em muito a tradição e a mudança, a experimentação e o hábito, expandindo-se do local para o global e homologando o sincrético (CANEVACCI, 2001). O público-alvo/receptor não é um consumidor passivo; em geral, é um decodificador ativo das narrativas presentes nos discursos da comunicação visual, o que faz de acordo com seus códigos culturais, que se ativam a partir de seu próprio local, expandindo-se. Por esses discursos, impregnados de valores móveis, plurais e descentralizados, os observadores e os observados, queiram ou não, assumem papéis variados, que se encontram nas dobras do ser, suscitados pela publicidade. Essa pode, então, ser compreendida como um campo privilegiado de produção e reprodução de representações socioculturais. Entende-se, assim, o potencial ideológico que possui a linguagem publicitária como produtora e reprodutora de aspectos da realidade e do imaginário. Nesse caso, ser mulher, a partir da década de 1940, é um indicativo sociocultural e politico-econômico, antes de se tornar um indicativo de identidade psicossocial.
Como já coloquei anteriormente, não é a mulher como um ser biológico, dotado de uma anatomia e socialmente construído ao longo dos séculos que é representada nos anúncios, mas um ícone/imagem que “vende” bem qualquer produto no mercado global; ao contrário do ícone/imagem homem, que encontra rejeição quando colocado junto a algum produto e posto a venda nesse mesmo mercado. Hoje, diferentemente da mulher apresentada nos anúncios da mídia impressa das décadas de 1940 e 1950, a mulher entra em cena política, social e economicamente como uma realidade multiplicada, viva e ativa — porém, continua sendo apresentada sob formas ideais de consumo a partir da visão de um mundo de homens, mas não necessariamente masculino. Esse consumo não se dá em um modo passivo de absorção e apropriação, que se opõe ao modo ativo da produção dos objetos anunciados; trata-se de uma atividade sistemática e de resposta global, que influencia todo o nosso sistema cultural, apesar do fato de que “as linhas divisórias entre informação e entretenimento tornaram-se cada vez mais embaçadas durante as décadas de 1950 e 1960, tanto na imprensa escrita quando na mídia eletrônica — mais tarde viriam a ser cada vez mais indistintas” (BRIGGS; BURKE, 2004, p. 196), como que abreviadas em sinais de fácil reconhecimento no mercado.
A linguagem publicitária vai além dessa representação de realidades, agindo de forma particular ao evidenciar a ambigüidade do jogo que dissolve as representações reais e imaginárias (BALANDIER, 1987), produzindo e reproduzindo representações sobre os indivíduos e suas imagens, sobre os grupos e a sociedade. Contribui, assim, para a construção de novos significados e na produção de uma cultura como instância universal não-duradoura, referência ideal de um modo de produção que traz em seu bojo o conceito de “obsolescência programada”, da coisa que já não é produzida para durar. Os produtos e sua comunicação confundem-se em sua volatilidade no mercado, juntamente com seus consumidores: ambos não são feitos para durar e têm consumo rápido. Não há tempo para nostalgia ou memória, pois Cronos foi substituido e seu tempo é tomado como o novo capital da modernidade.”
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Fonte:
LÁUDIO FRANCISCO DA COSTA: “A imagem das mulheres na publicidade no Brasil nas décadas de 1940 e 1950”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profª Dra. Maria Regina Clivati Capelo). Universidade Estadual de Londrina – UEL. Londrina, 2005.
Nota:
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Ser ou ter, eis a questão: o consumo como definidor de posições sociais
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