Descartes e o problema da existência de Deus

A Existência de Deus

“A consciência de si mesmo como um ser pensante é a primeira certeza fundamental que fora alcançada através da aplicação das regras do método. O cogito é o princípio da evidência. Mas não basta a intuição imediata da consciência, pois ainda ela não é uma verdade objetiva, mas sim, o ponto de partida e de apoio em que se faz alavanca para construir o saber. É preciso ultrapassar os limites da consciência subjetiva para que a validade da verdade objetiva seja atingida. Logo, o que se tem é o problema das idéias inatas e de sua validade objetiva.

Descartes divide as idéias em: inatas; adventícias e factícias. As inatas são aquelas que se encontram no próprio homem, isto é, as nascidas junto com sua consciência; as adventícias são aquelas que vem de fora e remetem a coisas diferentes e não tem nenhuma garantia da verdade objetiva e as factícias são aquelas construídas pelo próprio homem. Para Reale e Antiseri (1990), o problema se restringe à objetividade das idéias inatas e das adventícias. As três classes de idéias não são diferentes do ponto de vista de sua realidade subjetiva, não são atos mentais em que se tem a percepção imediata. Entretanto, em relação a seu conteúdo, elas são totalmente diversas.

Destas idéias, umas me parecem ter nascido comigo, outras ser estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo. Pois, que eu tenha a faculdade de conceber o que é aquilo que geralmente se chama uma coisa ou uma verdade, ou um pensamento, parece-me que não obtenho em outra parte senão em minha própria natureza. (DESCARTES, 1641/1979, p. 101-102).

Para fundamentar o caráter objetivo das faculdades cognoscitivas, Descartes propõe e resolve o problema da existência e do papel de Deus. Na Terceira Meditação, ele apresenta provas da existência de Deus baseadas em princípios de causalidade. Para Pascal (1990), mesmo que a filosofia não compreenda a existência de Deus ela não está impedida de prová-la. Descartes propõe três provas: a primeira prova é pela existência da idéia do perfeito e a segunda é pela própria existência, à medida em que se tem a idéia do perfeito; e a terceira é pela essência da idéia do perfeito.

Esse argumento pretende provar a existência de Deus a partir exclusivamente da idéia de Deus, que, como ser perfeitíssimo, exigiria a afirmação de sua existência desde que se entenda a existência como perfeição que possa ser atribuída, necessariamente ou não, a uma essência. (PESSANHA, 1979, p. 20).

Com o objetivo de propor e resolver o problema da existência de Deus, Descartes se antepara com a idéia inata de Deus que é de uma substância infinita, eterna e imutável. Para Pessanha (1979), Descartes, estando atraído pelo arcabouço racional deste argumento, faz um esforço lógico para tornar explícito o significado de uma noção inata, inserindo, assim, tal argumento em sua metafísica.

Ao falar dessa idéia de Deus, Descartes se pergunta se ela deve ou não ser considerada ao mesmo tempo subjetiva e objetiva. O problema da existência de Deus não é mais proposto a partir do mundo externo ao homem e sim a partir da consciência desse homem.

É coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: Pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lha comunicar se não a tivesse em si mesma? (DESCARTES, 1641/1979, p. 103-104).

As idéias são efeitos e não causas da realidade que se apresentam, e é assim que Descartes as concebe. A partir de tal princípio, torna-se evidente que o autor da idéia que está em mim não sou eu, ou seja, um ser que é imperfeito e finito, nem outro qualquer limitado. Essa idéia que está em mim, mas não é de mim, só pode ter a sua causa em um ser infinito, ou seja, no próprio Deus. Portanto, Ele existe.

E, por conseguinte, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe; pois, ainda que a idéia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substância, eu não teria, todavia, a idéia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita. (DESCARTES, 1641/1979, p. 107-108).

A idéia de Deus, contendo um máximo de realidade objetiva, envia a uma causa que conterá, no mínimo, o máximo absoluto de realidade formal. Como o próprio eu não é esta causa, é lógico concluir que Deus existe. Para Alexandre Koyré (1963), a idéia de Deus é inata, pertencente à própria natureza do homem e é somente seu atributo. Pois, para Descartes, o homem poderia ser definido como um ser que possui uma idéia de Deus. Ao querer ter acesso ao saber, faz-se necessário afastar a hipótese do Deus enganador e do Gênio Maligno. É preciso assegurar da existência do Deus verdadeiro, enquanto causa das idéias inatas na alma do sujeito. Mais adiante, vai se ter a oportunidade de se deter nestas provas, principalmente em suas implicações no estatuto de Deus em relação ao grande Outro em Lacan.

A própria idéia inata de Deus, ou seja, a primeira prova da existência de Deus propicia
uma segunda reflexão, provocando o resultado da primeira argumentação, ou seja, a forma cartesiana que é denominado: argumento cosmológico. Até aqui, no ponto em que se está nas meditações, Descartes está certo de que há uma existência. O próprio homem, enquanto espírito, ainda pode perguntar qual é a origem e a causa dela. Para Pascal (1990), não haveria dificuldade se nesse espírito não se encontrasse a idéia de perfeito, supondo que ele mesmo fosse a causa da sua existência. Mas um espírito que tem a idéia do perfeito não pode ter-se criado sem dar a si mesmo as perfeições de que tem a idéia.

Se eu fosse dependente de todo outro ser, e fosse eu próprio o autor de meu ser, certamente não duvidaria de coisa alguma, não mais conceberia desejos e, enfim, não me faltaria perfeição alguma; pois eu me teria dado todas aquelas de que tenho alguma idéia e assim seria Deus. (DESCARTES, 1641/1979, p.109).

O fato de haver tanta realidade na causa quanto em seu efeito implica uma proibição de invocar outra causa que seja menos perfeita que Deus, por exemplo, os pais. Pois essa causa levaria a remontar uma outra, depois mais outra, até chegar a uma que tivesse todas as perfeições das quais tem, em si, as idéias, ou seja, todas as que se concebe existirem em Deus.

A prova da existência de Deus, extraída da existência de um ser imperfeito que possui a idéia da perfeição, acha-se fortalecida de certo modo pela teoria cartesiana, tirada dos escolásticos, da criação contínua. De fato, é um tema constante em Descartes que, como cada instante da duração é independente do instante anterior. (PASCAL, 1990, p.66).

Para Descartes, um ser que pensa e duvida é um ser imperfeito e finito, é um ser que se
sabe imperfeito e finito. A questão para Koyré (1963), em relação a Descartes é a seguinte: como poderia ele saber claramente a sua própria finitude essencial e a sua imperfeição, se antes não tivesse uma idéia de alguma coisa infinita e perfeita e como poderia compreender-se sem ter, ao mesmo tempo uma idéia de Deus? O mesmo autor vai dizer, ainda, que a lógica cartesiana ensina que a idéia concebida em si mesmo pelo espírito é de infinito, ao contrário de como julga a escolástica e o vulgo, tomando-a no campo do finito. O espírito não chega a noção de não finitude, negando a limitação do finito. A razão cartesiana concebe o perfeito antes do imperfeito, o infinito antes do finito, a extensão antes da figura. A idéia clara do finito engloba e implica a de infinitude.

Quanto a nós, que passamos pela ascesse catártica da dúvida, sabemos que somos e também o que somos: um ser imperfeito e finito; um ser que pensa; e mesmo: um pensamento existente, um ser cuja natureza inteira é pensar; um ser que tem uma idéia clara de si próprio e de Deus. (KOYRÉ, 1963, p.87).

O real da prova da existência de Deus e o seu sentido profundo é simples como quer Descartes, pois a consciência de si implica a consciência de Deus. O “eu penso” leva ao “eu penso Deus”. Tem-se de Deus uma idéia, uma idéia inata, sem a qual se é impensável. Para Descartes, o homem é o ser que tem uma idéia de Deus. Ela é simples e clara de tal modo que envolve a própria existência de Deus. Essa, depreendida de sua noção, é mais certa do que a existência do próprio corpo e do mundo exterior. Conceber dessa maneira a idéia de Deus é, talvez para Descartes, o momento do assujeitamento do cogito no campo do Outro (Deus).

A terceira argumentação é conhecida como a prova ontológica, pois a existência é parte integrante da essência, de modo que não é possível ter a idéia da essência de Deus, sem
admitir ao mesmo tempo a sua existência.

Considerando que os ateus contestam a existência de Deus mas não a de sua idéia, Santo Anselmo propunha uma definição de Deus que julgava aceitável por todos: ‘Alguma-coisa-tal-que-não-se-pode-pensar-nada-de-maior’. Ora, uma coisa assim não poderia existir somente na inteligência, pois então haveria alguma coisa maior que ela, isto é, o que existiria ao mesmo tempo na inteligência e na realidade. (PASCAL, 1990, p. 67).

Descartes conhecia o raciocínio de Santo Anselmo, mas fez dele e desse contexto um argumento completamente diferente, pois não se trata mais de uma invocação à grandeza de Deus, como uma noção ambígua, mas a sua perfeição. A idéia de Deus é inata e ela se impõe com a sua imutável natureza. Descartes encontra em si a idéia de Deus, que é a de um ser perfeito, assim como encontra as idéias de figuras e de números. E se encontra na que tem de Deus alguma propriedade que se concebe como clara e distintamente, logo sabe que essa propriedade pertence verdadeiramente à sua essência. A existência é uma propriedade concebida como clara e distintamente, pertencente à idéia de um ser perfeito, sendo então, de sua essência.

Verifico claramente que a existência não pode ser separada da essência de Deus, tanto quanto da essência de um triângulo retilíneo não pode ser separada a grandeza de seus três ângulos iguais a dois retos ou, da idéia de uma montanha, a idéia de uma vale; de sorte que não sinto menos repugnância em conceber um Deus (isto é, um ser soberanamente perfeito) ao qual falte existência (isto é, ao qual falte alguma perfeição), do que conceber uma montanha que não tenha vale. (DESCARTES, 1641/1979, p. 125).

A insistência ao problema da existência de Deus, em Descartes, busca evidenciar a riqueza da consciência, pois, ao analisá-la Descartes se depara com uma idéia que está em si, mas não é sua, mas em si ela permeia profundamente, como o selo do artífice sobre o seu manufaturado. A idéia de Deus em si, como a marca do artesão na sua obra, é utilizada para defender a positividade da realização humana. Do ponto de vista do poder cognoscitivo, é utilizada para a sua capacidade de conhecer o verdadeiro. É derrotada a idéia do Gênio Maligno ou de uma força corrosiva que pode enganar ou burlar o homem. Pois, estando sob a força protetora de Deus, as faculdades cognoscitivas não enganam o homem, uma vez que o Deus que é o seu criador seria o responsável pelo engano, e sendo Ele perfeito, não é mentiroso. Deus é, para Descartes, o suposto saber. A dúvida também é derrotada, e o critério da evidência é justificado conclusivamente.

Para Pessanha (1979), a sustentação da hipótese do Gênio Maligno é impedida pela bondade de Deus e esta justifica o otimismo científico e a própria crença na razão. O malin gênie é substituído pelo bon Dieu. A partir de então, Descartes pode afirmar, com toda a segurança, que a evidência é o critério da verdade.

O Deus cartesiano, assim, é a garantia da objetividade do conhecimento científico. Enquanto bon Dieu, torna-se a expressão do otimismo racionalista e pressupõe que, ao
máximo de clareza subjetiva, corresponde o cerne da objetividade. Para Pessanha (1979), o bon Dieu é na verdade uma deusa: a Deusa-Razão, que Descartes cultua e que será exaltada pelo Iluminismo do século XVIII.

Descartes defende ainda o sentido da finitude da razão e o sentido de sua objetividade. Pois a razão do homem é humana, não divina, mas é garantida em sua atividade por Deus que a criou. O homem, em sua razão, erra, e esse erro não é provindo de Deus, mas sim ao próprio homem, pois, este nem sempre se demonstra fiel à clareza e à distinção. Para Reale e Antiseri (1990), cabe ao homem fazer bom uso de suas faculdades e não confundir como sendo claras e distintas as idéias que são aproximativas e confusas. O erro é dado pelo juízo. Pensar não é julgar, uma vez que o juízo intervêm tanto no intelecto quanto na vontade. Para Descartes, o intelecto não erra, o erro vem da pressão indevida da vontade sobre o intelecto.

O erro deriva, portanto, da minha operação e não do meu ser: eu sou o único responsável pelo erro e posso evita-lo. Pode-se ver como essa concepção está distante de uma natureza decaída ou de um pecado original. É agora, com ato presente, que eu me engano ou que eu peco. (ALQUIÉ apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 375).

Para Koyré (1963), em Descartes, a confiança racional que se tem na própria razão se
baseia de forma igualmente racional, na confiança que se tem em Deus. O sujeito, certo de Deus e de sua própria razão e apoiado na veracidade divina, reordena as idéias e encontra o valor relativo, mesmo daquelas idéias que não são muito claras. As que são indistintas e confusas vindas do sensível, pode compreendê-las e colocá-las em seu devido lugar.”

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Fonte:
Claudio Rosa Bastos: "O sujeito no primeiro ensino de Lacan: Lacan e o descentramento do cogito cartesiano". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Área de concentração: Processos de Subjetivação). Belo Horizonte, 2006.

Nota
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