Gaston Bachelard


As diversas explicações metafísicas de um conceito científico

“Antes de entrar verdadeiramente no nosso exame filosófico geral vamos, para ser mais claros, encetar toda a polêmica em torno de um exemplo preciso. Vamos estudar um conceito científico particular que, segundo pensamos, encerra uma perspectiva filosófica completa, isto é, pode ser interpretado sob os vários pontos de vista do animismo, do realismo, do positivismo, do racionalismo, do racionalismo complexo e do racionalismo dialético. Explicaremos precisamente o exemplo escolhido sob os dois últimos pontos de vista. O racionalismo complexo e o racionalismo dialético podem aliás ser mais brevemente reunidos sob a designação do ultra-racionalismo que já tivemos ocasião de esboçar.1 Mostraremos que a evolução filosófica de um conhecimento científico particular é um movimento que atravessa todas estas doutrinas na ordem indicada.

É evidente que os conceitos científicos não atingiram todos o mesmo estádio de maturidade; muitos permanecem ainda implicados num realismo mais ou menos ingênuo; muitos são ainda definidos na orgulhosa modéstia do positivismo; o que faz com que, examinada nos seus elementos, a filosofia do espírito científico não possa ser uma filosofia homogênea. Se as discussões filosóficas acerca da ciência permanecem confusas, é porque se pretende dar uma resposta de conjunto, ao mesmo tempo que se está obnubilado por um comportamento particular. Diz-se que o cientista é realista fazendo a enumeração dos casos em que ele é ainda realista. Diz-se que é positivista escolhendo ciências que são ainda positivistas. Diz-se que o matemático é racionalista retendo os pensamentos em que ele ainda é kantiano.

Naturalmente, os são tão infiéis à verdade filosófica como os ainda. Assim, os epistemólogos dizem que o físico é racionalista fazendo a enumeração dos casos em que ele já é racionalista, em que ele deduz certas experiências de leis anteriores; outros dizem que o sociólogo é positivista escolhendo alguns exempite em que ele já é positivista, em que ele abstrai dos valores para se limitar aos fatos. Os filósofos aventurosos — um exemplo ocorrerá imediatamente ao espírito do amor — devem confessar-se da mesma maneira: para legitimar as suas doutrina ultra-racionalistas, eles dispõem apenas de casos raros em que a ciência sob as suas formas mais recentes e portanto menos confirmadas, já é dialética
do pensamento científico permanece em estádios de evolução filosoficamente primitivos; devem preparar-se para ser vítimas de uma polêmica esmagadora. Tudo está contra eles: a vida comum, o senso comum, o conhecimento imediato, a técnica industrial e também ciências inteiras, ciências incontestáveis como a biologia em que o racionalismo ainda não penetra — se bem que certos temas das ciências biológicas pudessem receber um desenvolvimento rápido desde que a causalidade formal, tão desprezada, tão levianamente rejeitada pelos realistas, pudesse ser estudada num espírito filosófico novo.

Perante tantas provas dadas pelos realistas e pelos positivistas, o ultra-racionalismo é facilmente abalado. Mas após se ter curvado assim, pode passar à contra-ofensiva: a pluralidade das explicações filosóficas da ciência é um fato, e uma ciência realista não deve levantar problemas metafísicos. A evolução das diversas epistemologias é um outro fato: o energetismo mudou totalmente de caráter no início deste século. Qualquer que seja o problema particular, o sentido da evolução epistemológica é claro e constante: a evolução de um conhecimento particular caminha no sentido de uma coerência racional. A partir do momento em que se conhecem duas propriedades de um objeto, tenta-se constantemente relacioná-las. Um conhecimento mais profundo é sempre acompanhado de uma abundância de razões coordenadas. Por muito perto do realismo que se permaneça, a menor ordenação introduz fatores racionais; quando se avança no pensamento científico, aumenta o papel das teorias. Para descobrir os aspectos desconhecidos do real pela ação enérgica da ciência, só as teorias são prospectivas.

Pode-se discutir muito acerca do progresso moral, do progresso social, do progresso poético, do progresso da felicidade; existe no entanto um progresso que é indiscutível; o progresso científico, considerado como hierarquia de conhecimentos, no seu aspecto especificamente intelectual. Vamos, pois, tomar para eixo do nosso estudo filosófico o sentido deste progresso, e se, sobre a abscissa da sua evolução, colocarmos regularmente os sistemas filosóficos numa ordem idêntica para todos os conceitos, ordem essa que vai do animismo ao ultra-racionalismo passando pelo realismo, pelo positivismo e pelo racionalismo simples, teremos o direito de falar de um progresso filosófico dos conceitos científicos.

Insistamos um pouco neste conceito de progresso filosófico. É um conceito que tem pouco significado em filosofia pura. Não caberia na cabeça de nenhum filósofo dizer que Leibniz estava adiantado em relação a Descartes, Kant adiantado em relação a Platão. Mas o sentido da evolução filosófica dos conceitos científicos é tão claro que se torna necessário concluir que o conhecimento científico ordena a própria filosofia. O pensamento científico fornece, pois, um princípio para a classificação das filosofias e para o estudo do progresso da razão.”

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É isso!


Fonte:
Gaston Bachelard: “A Filosofia do Não” / “O Novo Espírito Científico” / “A Poética do Espaço”. Traduções de: Joaquim José Moura Ramos, Remberto Francisco Kuhnen, Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. Série “Pensadores”. Abril Cultural, 1978, p. 11-12
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