“A exposição de si em diários publicados na internet evidencia mudanças claras nas noções de intimidade e privacidade que, na modernidade, estavam bem distintas nas esferas pública e privada. O fenômeno da disputa por visibilidade e pelo consumo da privacidade alheia mostra transformações subjetivas que deixam indefinidas as fronteiras entre vida íntima e espaço público. “Faz parte das regras do sucesso conseguir tornar-se visível. Na sociedade do espetáculo o anonimato não tem valor positivo. O surpreendente despudor com que se aceita exibir intimidades só indica o quanto é a própria privacidade, ou os contornos do que sejam as esferas do público e do privado que estão desmontados.”
A vida comum, no que esta tem de mais banal, transformou-se num espetáculo para grande público e tal interesse parece ter como recompensa a constatação de que se vive a mesma vida e assim tornando a mediocridade do contemporâneo mais facilmente suportável.
Cada vez mais, a mídia reconhece e explora o forte apelo implícito no fato de que aquilo que se diz e se mostra é um testemunho vivencial: a ancoragem na “vida real” torna-se irresistível, mesmo que tal vida seja absolutamente banal – ou melhor: especialmente se ela for banal; ou melhor ainda: sublinhando especialmente aquilo que toda vida tem de banal.
Esse movimento de banalização do cotidiano aponta para a queda dos valores tradicionais como a preservação da intimidade, a valorização das questões coletivas e das instituições.
Ao contrário dos antigos diários os blogs não têm como objetivo o aprofundamento em questões pessoais, estes têm a intenção explícita de alcançar visibilidade. Observamos a necessidade de reconhecimento, de despertar o interesse do outro por sua vida particular como se esse fosse um parâmetro para analisar seu valor como pessoa. Através dos comentários esta avaliação do quanto se é interessante torna-se possível. E para isso não é necessária uma história fantástica para contar, é o cotidiano, no que tem de mais banal e superficial o alvo da curiosidade do público. Se na Modernidade a autenticidade estava na parte oculta da intimidade, no contemporâneo ela está no que é exposto e acessível. “É a lente da câmera, são os holofotes e os flashes que criam e dão consistência ao real, por mais anódino que seja o referente ao qual as câmeras apontam: é toda essa parafernália que lhe concede sua “aura”.
É tentador atribuir esse fenômeno a um culto ao individualismo só que, mas do que isso, parece que a intenção é se individualizar, tornar-se diferente de alguma maneira. Podemos observar tal fato nos discursos publicitários, na expressão do desejo de ser único ou ter algo exclusivo. Esse indivíduo não mais se define pelo que ele é através de sua interioridade. Hoje é a superfície, o próprio corpo, os acessórios e as relações sociais que permitem a individualização.
Na contemporaneidade a exigência de visibilidade faz com que sejam relevantes os cuidados com o corpo, com a aparência física e com a imagem de si mesmo que cada um apresenta para os outros. As tecnologias atuais permitem escolher o que se quer ser através da manipulação corporal. Já existem recursos para modificar o rosto, por exemplo, a ponto de “tornar-se outra pessoa”. Aqui podemos pensar também alterações mais simples como tatuagens, piercings, cores e cortes de cabelo, dietas e exercícios que permitem chegar ao “ideal de corpo perfeito” vendido pela mídia juntamente com a idéia de que se é o que se parece ser. Esses recursos permitem seguir a ordem de diferenciar-se, ser único e especial. É como se o corpo trouxesse autenticidade a personalidade, aqui passível de ser esculpida.
Assim como os corpos humanos, os modos de ser se transformam em mercadorias lançadas aos nervosos vaivens do mercado global. E, como tais, também se tornam fetiches que se desejam e se veneram, que se podem comprar e vender, repentinamente valorizados quando irrompem como novidades cintilantes e depois descartados porque se tornaram obsoletos, passados de moda, out. Por isso, a ansiedade chega aos limites da exasperação: devem ser renovados constantemente.
Ser diferente é percebido como um dever e, através da espetacularização da vida pessoal, esta tarefa se faz possível. Nas palavras de Lipovetsky (1989), “é preciso ser como os outros e não inteiramente como eles, é preciso seguir a corrente e significar um gosto particular”. É uma conjugação entre o mimetismo global que impõe a reprodução de padrões de conduta e o individualismo através dos detalhes. Ter um diário virtual é a manifestação do mimetismo, da moda vigente no momento, dar uma característica única ao seu diário, torná-lo diferente entre tantos outros é uma finalidade.
O blogueiro acredita que está diferença é a expressão de sua personalidade. E o que garante seu espaço no espetáculo das intimidades é exatamente sua “personalidade”.
A idéia de intimidade encontra no contemporâneo sentidos e definições inteiramente originais. O íntimo não é mais o recôndito, mas “ao contrário, essa esfera “íntima” se converte em um palco onde cada um pode (e deve) encenar o show de sua própria personalidade”. Diferentemente da Modernidade onde a valorização da intimidade implicava em preservá-la, em protegê-la da curiosidade pública, na Pós-modernidade a exposição dessa intimidade e o quanto a mesma atrai o interesse do outro é a medida de valor. Isso não significa que a intimidade passou a ser de domínio público, ela continua sendo considerada privada, mas com a permissão do conhecimento público.
O desenvolvimento tecnológico contribui para essa lógica da visibilidade. Atualmente é simples, barato e acessível à maioria das pessoas os recursos para gravar, fotografar e divulgar fragmentos de sua vida. “De Prozac a weblogs e realitty shows, tais dispositivos constituem uma subjetividade tecnicamente assistida, lançada na extremidade da ação, na superficialidade da performance”. Os recursos produzidos hoje têm a função de permitir o autocontrole e autoprodução. Atendem às demandas sociais individualizantes onde cada um é responsável pelo que é e por suas ações. São tecnologias de manipulação do corpo, medicamentos que alteram o psiquismo e transformam a imagem.
O individualismo no contemporâneo é expresso através da preocupação exacerbada com a estética corporal e com o próprio psiquismo que deve ser levado ao conhecimento público para reconhecimento. É uma visibilidade que busca mais que o externo, que o corpo, busca tornar público o interior. Tal fato fica bastante claro nos discursos de participantes dos realitty shows quando descrevem como objetivo principal mostrar quem são.
Essas vidas passam a ser estampadas numa superfície lisa, como nos fotologs onde as imagens divulgadas não convidam ao aprofundamento. São imagens chapadas na tela que nada querem dizer, são recortes de uma vida que busca se espetacularizar. Essa luta por tornar-se celebridade faz com que os modos de existir tornem-se também estereotipados, como se o tempo todo representassem personagens sob os holofotes do espetáculo.
O recorte que segue abaixo é o post de um fotolog apresentado aqui na tentativa de mostrar a superficialidade das fotografias divulgadas. O foco principal é o “eu” e suas manifestações na aparência. Nada é dito sobre as impressões da autora nem é motivado nenhum questionamento ou pensamento. É uma montagem de fotos pessoais, que não se diferem significativamente, com a intenção de mostrar uma mudança no visual da autora acompanhada por um detalhamento do cotidiano sem objetivo aparente a não ser o de se dar a conhecer.
A procura incessante por visibilidade pode ser pensada como um modo de lidar com a solidão desse momento onde todos queixam-se das relações descartáveis e da falta de tempo. Os personagens de blogs ou fotologs nunca estão sozinhos, há sempre a garantia do olhar do outro como companhia. É o fato de alguém observar que dá realidade ao vivido.
É possível, então, que a ambição de fazer do próprio eu um show não seja mais do que uma tentativa de satisfazer um velho desejo humano, demasiadamente humano: afugentar os fantasmas da solidão. Uma meta especialmente complicada em uma sociedade como a nossa, atomizada pelo individualismo mais feroz de que se tenha notícia, que contribuiu para cortar todos os laços sociais capazes de ultrapassar as “tiranias da intimidade” e de enxergar, no horizonte, algum projeto coletivo – uma transcendência, um futuro diferente, algo que se projete para além das mesquinhas contrições do eu presente; talvez, enfim (por quê não?), até mesmo uma obra.
Parece que a sociabilidade desenvolvida nos diários virtuais afugenta a solidão do cotidiano. Saber que outros vivem a mesma vida sem grandes aventuras ou atos heróicos dá tranqüilidade, e o olhar do outro, o interesse sobre a sua intimidade, confere autenticidade e sentido a própria vida.
Certamente o que conhecemos como intimidade hoje não é a intimidade Moderna, na qual o sentido, a autenticidade, estavam no oculto, no que não pode ser revelado. Mas nem por isso devemos afirmar que não há mais intimidade. O que observamos é uma outra forma de intimidade que depende do olhar do outro para alcançar sentido. Resta saber de que modo essa intimidade “visível” é produzida a partir dos blogs e dos flogs.”
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Fonte:
Cristiane Moreira da Silva: "Intimidade on line: outras faces do diário íntimo na contemporaneidade". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia, na área de concentração Subjetividade e Clínica sob a orientação da Prof. Márcia Moraes). Niterói, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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