Erich Fromm: Psicanálise e Religião

Psicanálise e Religião

Dando prosseguimento aos seus trabalhos na Fundação Psiquiátrica William Alanson White situada em Nova Iorque e no Colégio Bennington no estado de Vermont, em 1948 Fromm foi convidado para ministrar seminários de psicanálise e religião na Universidade de Yale. A partir destes seminários, em 1950, Fromm publicou a sua obra Psicanálise e Religião, onde o autor faz uma certa revisão dos pensamentos expressos na obra Análise do Homem. Porém, em Psicanálise e Religião Erich Fromm enfatiza o problema da religião.

Para Fromm o problema da religião não se resume ao problema de “Deus”, mas principalmente ao problema do homem, nas suas relações consigo mesmo e com os outros. O mais importante para o autor é reconhecer se a atitude religiosa é “honesta” e genuína, e se concorre para o seu pleno desenvolvimento e felicidade, ou se eqüivale à idolatria permanecendo o ser humano em um estado de alienação e aniquilamento da sua própria individualidade a despeito de forças externas às suas.

Fromm também aborda o problema das responsabilidades morais do homem em face das dificuldades do momento presente e procura definir a natureza do fenômeno religioso, que considera como expressão de um anseio fundamental da personalidade humana.

As discussões em torno do assunto religioso são dificultadas muitas vezes por um obstáculo terminológico. Embora o pensamento ocidental reconheça a existência de muitas religiões não monoteístas, a tendência é considerar a religião monoteísta como ponto de referência para a compreensão de todas as outras religiões.101 Deste modo torna-se duvidoso usar o termo religião para sistemas espirituais em que, como no budismo, taoísmo e confucionismo, não existem divindades. Fromm esclarece o seu entendimento por religião da seguinte forma:

Entendo por religião qualquer sistema de pensamento e ação seguido por um grupo, e capaz de conferir ao indivíduo uma linha de orientação e um objeto de devoção. Não existe, na verdade, qualquer cultura do passado, e parece-nos que não existirá no futuro, de que a religião, no sentido extenso da nossa definição, deixe de ser parte integrante.

Segundo Fromm, o estudo do homem permite reconhecer que a necessidade de um sistema comum de orientação e de um objeto de devoção está profundamente enraizada nas condições da existência humana.
Neste sentido, o ser humano não pode escolher entre ter ou não ter ideais, pois todos os homens são idealistas, mas o homem é “livre” para escolher entre os vários tipos de ideais. Pode escolher devotar-se ao culto de uma força exterior autoritária, ou pode preferir cultivar a razão e o desenvolvimento interior.

Desta forma, todos os tipos de ideais, incluindo os das ideologias seculares, precisam ser entendidos como expressões da mesma necessidade humana, e devem ser vistos em relação à verdade que encerram. Para Fromm, tanto a necessidade de ter ideais quanto a necessidade religiosa, provêm da mesma necessidade de crença, de um sistema de orientação e de um objeto de devoção. Porém, é necessário perceber se tais ideais têm levado o ser humano rumo ao seu aperfeiçoamento ou à sua estagnação.
A importante questão para Fromm não é a presença ou ausência de religião, mas sim a espécie de religião.

O homem pode adorar animais, árvores, ídolos de ouro ou pedra, um Deus invisível, um homem moralmente superior, ou líderes diabólicos; os objetos da devoção podem ser os ancestrais, a nação, a própria classe social, ou partido político, dinheiro, e até mesmo o sucesso; a religião pode conduzir no sentido da destruição ou do amor, da dominação ou da fraternidade; pode desenvolver os poderes racionais ou paralisá-los; tanto é possível que o homem reconheça o seu sistema como de natureza religiosa, embora diferente dos seculares, quanto pensar que não tem religião alguma, e interpretar sua devoção a certas forças, como por exemplo o dinheiro e o sucesso, como simples preocupação pelo aspecto pragmático da vida. O importante é saber a espécie de religião; é saber se a religião escolhida concorre realmente para o desenvolvimento das potencialidades humanas, ou ao contrário, para a sua paralisação.

Do mesmo modo que o psicólogo deve preocupar-se com a questão da ética, deve também preocupar-se com o conteúdo da religião, pois é importante saber qual a atitude emocional que se exprime pela religião, e quais os efeitos positivos e negativos que determinada crença tem sobre o ser humano. Para tal análise, Erich Fromm faz a distinção entre as religiões autoritárias e as religiões humanistas.

Nas religiões autoritárias toda a ênfase encontra-se no reconhecimento de que o homem é dirigido por um poder exterior que é capaz de controlá-lo e dirigi-lo. Tal poder exige uma atitude de obediência, reverência e devoção por parte daqueles que a ele estão submetidos, sendo que a falta de respeito e obediência constituem pecado.
Portanto, o elemento essencial na religião autoritária e nas experiências de tal natureza é a submissão a um poder transcendental. Enquanto postula que a divindade é onisciente e onipresente, concebe o ser humano como insignificante e fraco. Nestes casos, o homem somente sente-se forte quando amparado pela divindade, graças à submissão, que lhe “arranca” a integridade enquanto indivíduo, mas que lhe oferece uma “proteção divina”.

Segundo Fromm, na teologia calvinista pode ser encontrada uma representação do sentimento teísta autoritário quando Calvino ressalta que o conceito de humildade é:

(...) a submissão sistemática de quem se sente dominado por uma profunda certeza da sua miséria; pois esta é a definição uniforme de humildade, nas palavras do próprio Deus.

Para Fromm a experiência que Calvino descreve, de desprezo pela personalidade humana, representa a essência de todas as religiões autoritárias, independente de usarem uma linguagem secular, ou uma linguagem teológica. Nas religiões desse tipo, Deus é símbolo de poder e força, enquanto o homem mostra-se infinitamente fraco e dependente.

A religião humanista, ao contrário, está centralizada pela idéia do homem e das suas potencialidades. O homem deve desenvolver a força da sua razão, para que possa entender a si próprio, as suas relações com os seus semelhantes e o lugar que ocupa no universo. Fromm ressalta que o homem deve reconhecer a verdade, tanto no que se refere às suas limitações, como às suas potencialidades. A experiência religiosa, nessa espécie de religião, é a experiência de união com o universo, como o homem o concebe e sente. Na religião humanista o objetivo humano consiste em atingir a máxima força. A virtude da religião humanista é a realização pessoal, e não a passividade da obediência. A fé, na religião humanista é a racional,
ela está alicerçada na convicção obtida através das experiências intelectuais e emocionais, ao passo que na religião autoritária o homem aceita proposições porque acredita em quem as formulou. Na religião autoritária, o que predomina é a tristeza e a culpa. Na religião humanista, Deus aparece como símbolo dos próprios poderes humanos, do que o homem procura realizar na vida, e não como símbolo de força e dominação. Fromm ilustra as religiões humanistas dando como exemplo o budismo, o taoísmo, os ensinamentos de Isaías, Jesus, Sócrates, Spinoza, como também o lado místico da crença judaica e cristã.

Enquanto que na religião humanista Deus constitui a imagem do Eu superior do homem, na religião autoritária Deus aparece como monopolizador do que pertencia originariamente ao homem: a sua razão. Neste sentido, quanto mais perfeito se torna Deus, mais imperfeito parece o homem. Este projeta o melhor da sua natureza na figura de Deus, e fica empobrecido.
A divindade passa a ter todo o amor, toda a sabedoria e justiça, e o homem perde essas qualidades, ficando vazio e pobre. Nesse processo de separação das suas potencialidades, ele se aliena de si mesmo. Nesta espécie de crença o homem passa a ficar tão distante de si, que a única via de acesso a ele mesmo passa a ser através da divindade. Quando adora tal divindade, o homem procura entrar em contato com uma parte de si mesmo, a parte perdida pelo mecanismo de projeção. Para ter de volta um “pedaço” de si é necessário reconhecer que somente pela graça de Deus poderá reconquistar um pouco das suas qualidades.

De acordo com Erich Fromm, as religiões autoritárias estimulam a dependência humana. É fato que o homem está sujeito à morte, ao envelhecimento e à doença, mas uma coisa é reconhecer a dependência do homem e suas limitações, e outra é estimular essa dependência e cultuar as forças que escapam ao seu controle. Compreender realisticamente, e nas justas proporções, as limitações humanas faz parte essencial da sabedoria adulta, mas adorar essas limitações constitui atitude masoquista e autodestrutiva.

O desenvolvimento completo da razão depende da obtenção de plena liberdade e independência. Até que esse fato seja conseguido, o homem terá a tendência a aceitar como verdade o que a maioria do seu grupo deseja postular como tal. Para Fromm o julgamento do homem é determinado pela necessidade de contato com o grupo e pelo medo de ver-se isolado. Poucos indivíduos podem suportar o isolamento e afirmar a verdade, ante o perigo do ostracismo.
Porém, se os ensinamentos religiosos estimulam o crescimento, a força, a liberdade, a razão e a felicidade de seus crentes não há motivos para não considerar válida uma crença baseada na produtividade. Mas se contribuem para a constrição das potencialidades humanas, para a infelicidade, alienação e paralisação, não há como considerar tal crença produtiva para o homem, mesmo que algum dogma assim o afirme.

Erich Fromm faz uma comparação entre a religião humanista e a psicanálise humanista ressaltando que ambas buscam e acreditam no desenvolvimento das potencialidades humanas. Enquanto a psicanálise trabalha de forma terapêutica para “libertar” o sujeito das suas próprias mazelas inconscientes rumo à sua liberdade, a religião humanista trabalha promovendo a reflexão, a independência e a liberdade. Ambas, psicanálise e religião humanista, visam estimular que o homem por si mesmo seja capaz de distinguir a voz madura e sábia da sua própria consciência. Tanto no pensamento religioso humanista como na psicanálise humanista, a habilidade humana de procurar a verdade
é considerada como inseparavelmente ligada à concepção de liberdade e independência. A função do analista é ajudar o indivíduo a obter um conhecimento profundo sobre si mesmo e sobre o ambiente que o cerca. Procurar torná-lo forte e apto a ver a verdade, a amar, a tornar-se livre e responsável, e a viver de acordo com a sua consciência. Nesse sentido, Fromm pontua que a psicanálise tem uma função religiosa humanista e vice-versa.

Vale ressaltar que Erich Fromm cresceu num ambiente familiar rodeado pelos ritos e regras do judaísmo ortodoxo que não lhe permitia ir além do que lhe era ensinado. Já na adolescência, descontente com o clima religioso autoritário que o cercava, Fromm passou a estudar outras religiões. Sua primeira busca por pensamentos religiosos diferentes dos até então aprendidos aconteceu em 1920, através do Dr. Salman Baruch Rabinkou
, um professor de Talmude que lhe passou as idéias messiânicas dos profetas. A partir do contato com tais idéias Fromm passou a refletir sobre a razão e o amor ; sentiu-se também impulsionado a pesquisar outras religiões, observando quais eram capazes de estimular a produtividade e quais paralisavam as forças internas do homem."

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Fonte:
FABIANA TOLOMELLI: "A RELIGIÃO NA OBRA E NA VIDA DE ERICH FROMM". (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, do Instituto de Ciências Humanas e de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora). Juiz de Fora, 2005.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

2 comentários:

  1. A leitura que mais me impressionou de tudo que eu li até hoje, foi a análise que Erich Fromm fez sobre religião no seu livro Psicanálise e Religião. Gostaria muito de reler.
    Mário Monjardim Filho

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  2. A leitura que mais me impressionou de tudo que eu li até hoje, foi a análise que Erich Fromm fez sobre religião no seu livro Psicanálise e Religião. Gostaria muito de reler.
    Mário Monjardim Filho

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