Inquisição: O processo padronizado: a busca da culpa

O processo padronizado: a busca da culpa

“O Tribunal se baseava na denúncia e no segredo; qualquer suposição poderia dar início a um processo. Não havia a menor possibilidade de qualquer indivíduo
questionar os métodos da Inquisição, pois eles eram considerados “divinos”.

Com métodos infalíveis de investigação da alma (espionagem,
delação, censura, acusações secretas, prisões preventivas, interrogatórios capciosos e sessões de tortura), a Inquisição Ibérica afirmou-se como uma instância privilegiada de inspiração divina para apanhar suspeitos, arrancar confissões, julgar e condenar judaizantes. Detendo o que hoje chamaríamos de “conhecimento científico” do Mal e que, naquela época, se entendia ser seu “conhecimento teológico”, os inquisidores propunham identificar os agentes do Diabo. (NAZARIO, 2005, p. 33).

O processo iniciava-se com as informações gerais do réu, assim como as
denúncias que havia contra ele, seguidas de um mandado de prisão e outro de entrega, onde constava a data e o lugar em que foi preso. O sequestro de bens já era encaminhado pelo agente inquisitorial que havia feito a prisão na colônia. A partir do momento em que o acusado chega aos cárceres da Inquisição, temos as sessões, compreendendo basicamente: o inventário, momento em que o réu relata detalhadamente todos os seus bens, assim como créditos e dívidas; a genealogia, onde o prisioneiro faz uma descrição de toda a sua família e a situação em que todos se encontram (idade, locais de nascimento e moradia, se foram presos, se são casados e têm filhos, se estão mortos enfim, todas as lembranças que o réu puder ter sobre os mesmos), além da “qualidade de seu sangue” e por que via eram cristãos-novos (materna ou paterna); a crença, que delimitava as práticas religiosas, buscando informações sobre a do réu; os interrogatórios (que poderiam ser in genere onde eram feitas perguntas sobre a prática de heresia de forma generalizada ou in specie compreendendo as acusações específicas, conseguidas através de denúncias); e finalmente a confissão, que era a finalidade buscada durante todo o processo, onde o prisioneiro declarava todas as suas “culpas” e pedia perdão pelos seus pecados.

A abertura de processos pode ser feita de três formas: por acusação, delação ou investigação. A primeira ocorre quando uma pessoa acusa alguém de heresia, assumindo o papel de acusador; o segundo é o mais usual: ocorre uma denúncia e um inquisidor abre o processo contra o denunciado
. O processo por investigação ocorre quando têm-se notícias de heresias através de boatos, e o inquisidor deve procurar testemunhas para comprovarem ou não os atos heréticos de alguma localidade.

Nas duas primeiras existe o exame das testemunhas e vários interrogatórios
ao acusado: “De acordo com as respostas obtidas, o inquisidor ver como cercar cada vez mais a verdade.” (EYMERICH, 1993, p. 114). Essa passagem nos mostra claramente que, no momento em que alguém foi denunciado, ele já está sumariamente culpado; a verdade é que a Inquisição não erra, pois ela é a representante da Igreja Católica, que, por sua vez, é representante da própria palavra divina. Se o Tribunal diz que duas testemunhas são o suficiente para a abertura de processo, ou que boatos são suficientes para suspeita de heresia, então este não pode estar errado. Essa é a lógica do sistema; por isso que a confissão é tão procurada “Diante do Tribunal da Inquisição, basta a confissão do réu para condená-lo” (EYMERICH, 1993, p. 138) pois ela significa que a Inquisição estava certa: esta deve ser a única procura de um inquisidor durante todo o processo, sendo que, para atingir esse objetivo, possui um poder praticamente ilimitado.

Toda essa parte judicial do processo é tratada no Livro II do
Regimento, iniciando-se com a questão das visitações; a Inquisição deixa claro que as pessoas que se apresentam tem a total consideração do Tribunal, inclusive os relapsos.

Toda a pessoa de qualquer qualidade, estado e condição, que seja, que tendo cometido culpas de heresia formal contra nossa S. Católica, e reconhecendo seus erros, se apresentar, e os confessar voluntariamente na mesa do S. Ofício, com mostras, e sinais de verdadeiro arrependimento, assim no tempo de graça, como fora dele, será tratado benignamente, para que mais se anime a procurar
o remédio de sua alma [...] (REGIMENTO, 1996, p. 764).

Mesmo nas cidades onde não existe um Tribunal Inquisitorial, as visitações
que se faziam periodicamente davam conta de criar no cotidiano da sociedade o medo de ser pego pelo Santo Ofício. Essa mentalidade forjada em todos os indivíduos da época é que mantém a Inquisição fortalecida, pois é através das denúncias “um dos meios principais que para se poder em juízo proceder contra os culpados” (REGIMENTO, 1996, p. 768) – que a organização do Tribunal se fundamenta.

Realmente, trata-se com mais boa vontade os que se apresentam do que os que foram denunciados, mas essa diferença é facilmente compreensível dentro da ótica do sistema: a proposta era encontrar culpados de heresia, então era natural que se tratasse com menos rigor aqueles que facilitassem o trabalho do Tribunal ou, enxergando através da mentalidade religiosa da época, ser benigno com os que
enxergavam a “verdade”. Era por meio da manipulação social (discutida no capítulo anterior), que se buscava uma população alienada que não pensasse de fato, mas agisse segundo as regras estabelecidas.

De qualquer forma, o caminho percorrido pelo processo não deixava espaço para questionamentos. Percebemos o poder que o inquisidor possuía; se ele entendesse que a prisão de alguém era válida, a legislação abria brechas suficientes
para que pudesse agir.

Declaramos, que para os inquisidores decretarem que alguma
pessoa seja presa, é necessário proceder tal prova, que razoavelmente pareça bastante para se proceder por ela a alguma condenação, e não bastará uma só testemunha para ser presa a pessoa denunciada; salvo se for marido, ou mulher, ou sua parente dentro do primeiro grau de consanguinidade contado por direito canônico. Mas se a testemunha for maior de toda a exceção, ou ajudada com alguma outra presunção de direito, ou de tão bom crédito, e o denunciado de tão ordinária condição, que pareça aos Inquisidores, que deve ser preso, farão disso assento, em que se declarem as razões, porque se moverão, a qualidade da testemunha, e do culpado, e se há entre eles algum parentesco, o qual enviarão com as culpas ao conselho para nele determinar o que se deve fazer; porém isso não haverá lugar, sendo a culpa de solicitar na confissão, porque nessa em nenhum caso se procederá a prisão por uma só testemunha. (REGIMENTO, 1996, p. 772).

Todo o
Regimento é feito com o intuito de organizar a instituição, fator que resultaria numa apreensão pela sociedade da época de que a forma como as coisas eram executadas significavam a garantia de um julgamento sem erros. O processo que é dividido em duas partes (a primeira contendo o mandato de prisão, o mandato de entrega do preso, a planta do cárcere e as culpas, e a segunda iniciando-se com o inventário, seguido pelas demais sessões) é marcado pela procura incessante da confissão, como mencionado. Exemplo disso é a regra bastante clara com relação às admoestações feitas pela mesa para que o réu negativo confesse seus “pecados”. A sessão de genealogia, que é feita no prazo de dez dias a partir da entrada do preso no cárcere, “na qual fará primeira admoestação na forma de estilo do S. Ofício, na qual lhe não será declarada a qualidade das culpas, porque foi preso” (REGIMENTO, 1996, p. 777). Depois de um mês preso, ocorrerá a sessão in genere, onde se “multiplicarão as perguntas, segundo a qualidade das culpas” (REGIMENTO, 1996, p. 777), e nada declarando, será admoestado pela segunda vez. Logo que possível deverá ser feita a sessão in specie, onde são feitas perguntas de acordo com o relato das testemunhas; é a última admoestação feitas aos réus antes do libelo da justiça, quando são publicadas as provas contra os acusados.

Todos esses conselhos são para que os réus
se arrependam de seus “erros” e os confessem à mesa. A importância das confissões é percebida não apenas através de informações implícitas sobre o funcionamento do processo, mas também em citações diretas sobre o assunto:

Por enquanto as confissões dos culpados no crime de heresia são o único meio, com que podem merecer, que com eles se use de misericórdia, e o principal fundamento, que tem o S. Ofício, para
proceder contra as pessoas, de que nelas se denuncia [...] Tanto que algum preso disser, que quer confessar suas culpas os Inquisidores o admoestarão particularmente [...] Tratarão os Inquisidores com grande cuidado, de examinar, e inquirir o ânimo do confidente, se é verdadeiro, ou fingido, se faz sua confissão com intento de escapar da pena, que merecia por suas culpas, ou com zelo de livrar delas sua consciência, e de se converter a fé de Cristo [...]

E tendo o preso com sua confissão satisfeito à informação, que contra ela há, lhe será dito somente, que trate de examinar sua consciência, e achando-a carregada de alguma coisa mais, a venha manifestar, estando certo, que se usará com ele de muita
misericórdia
. (REGIMENTO, 1996, p. 779-781).

Mesmo que o preso confesse algo de que está realmente sendo acusado, ele não vai saber, pois não é informado pela
mesa. Essa é uma demonstração clara da forma como a culpa era erigida, pois, mesmo que o preso “acertasse” algum nome, ainda existia uma vida inteira de denúncias pela frente porque barrar tão promissor percurso para outros futuros processos?

Aos diminutos
44 também são feitas admoestações para que confessem (assim como todos os processados). A primeira é na sessão genealogia, a segunda na crença e a terceira na sessão in specie (quando dado o tempo certo dos “erros” nas perguntas). Após esse período temos o libelo da justiça com as acusações, apresentado pelo promotor; na mesma audiência é perguntado ao réu se este quer um procurador que o defenda.

Depois que os inquisidores tiverem deferido à defesa, e ratificadas as testemunhas, que contra ele houver, requererá o Promotor, que lhe façam publicação delas, e tomado seu requerimento por termo nos autos, lhe responderão, que no que pode se proverá com justiça; e logo tirarão por si a publicação dos ditos das testemunhas, na mesma forma, em que houver, deposto, calando os nomes delas, e o dia, mês e ano em que testemunharam, fazendo computação do
tempo, em que a testemunha diz, que o réu cometeu o delito até aquele, em que se faz a publicação, não declarando o lugar, onde o delito se cometeu, mas dizendo, que foi em certa parte. Havendo no testemunho cúmplices, se dirá na publicação que o réu se achou com companhia de certas pessoas de sua nação; e não havendo cúmplices, se dirá, que se achou com certa companhia, referindo por extenso o teor do testemunho, calando porém as circunstâncias, por que se possa vir em conhecimento da testemunha [...] (REGIMENTO, 1996, p. 787).

É visível que, omitindo os detalhes dos testemunhos, o Tribunal conta com o desespero do réu em se livrar das sentenças graves, denunciando todos que conhece. Com a falta de informações é praticamente impossível utilizar as
contraditas testemunhas que poderiam inocentá-lo.

Juntas as contraditas do processo, será o Réu chamado à mesa, e
lhe mandarão os Inquisidores, que nomeie testemunhas para prova delas, e logo lhe irão lendo os artigos, cada um por si, e a cada um deles poderá nomear até seis testemunhas; e será o Réu advertido, que faça nomeação em Cristãos-velhos, e que não sejam seus parentes dentro do quarto grau, nem seus familiares, ou pessoas infames, e que fossem presas pelo S. Ofício, nem ausentes em lugares remotos, que não possam ser perguntadas sem grande dilação [...] (REGIMENTO, 1996, p. 790).

Com tantas limitações
não saber quem o denunciou, nem o tempo certo, não poder chamar pessoas próximas (lembrando que toda sociedade da época temia o Santo Ofício, situação que tinha como consequência o fato de que praticamente ninguém se envolvia deliberadamente com o Tribunal) a defesa realmente era algo posto na legislação para atender a um padrão estabelecido de “justiça”, e não para funcionar de forma eficaz. Entretanto, existem citações que denotam uma preocupa ão do Tribunal em corrigir “falhas” no sistema de defesa:

[...] porém sendo a matéria da contradita de qualidade, que se não possa provar por outras pessoas, e afirmando o Réu com juramento que não tem outra que dar por prova dela; neste caso se lhe admitirão quaisquer que nomear; e no despacho final se lhe dará o
credito que merecem [...] (p. 790) Se a defesa do réu for tão limitada, ou na prova dela, considerada a qualidade do réu, e das testemunhas da justiça, houver tais circunstâncias, que pareça aos Inquisidores, que não está bastantemente defendido, antes de se proporem em mês seu processo afinal poderão mandar fazer na prova às defesas [...] e o Inquisidor que os houver de propor (os despachos), verá se falta neles alguma diligência; e se achar, que está mandada fazer, parará no despacho, até que venha [...] (REGIMENTO, 1996, p. 794-795).

Apesar de defendermos a ideia que a culpa do réu já estava definida a partir
do momento em que foi denunciado e que ela somente era construída no decorrer do processo, tal fato não significa que as pessoas envolvidas neste processo hist rico tivessem “pleno entendimento” dos fatos que apresentamos neste trabalho. Como já mencionado anteriormente, é preciso considerar a alta religiosidade que envolvia a sociedade da época, assim como o próprio ordenamento jurídico das sociedades modernas europeias. Porém, é devido à própria mentalidade da época (marcada pelo absolutismo político e religioso) o teor divino que a Inquisição possuía, assim como seus oficiais, principalmente os inquisidores, que eram visualizados como figuras superiores, cujo alto cargo hierárquico era escolha de Deus. Seus julgamentos eram revestidos por uma aura de divindade, fácil de ser compreendida se levarmos em consideração seu cenário histórico.

O processo era longo, sua legislação detalhada: tudo para dar a impressão de que os fatos ali descritos eram baseados na busca incessante da verdade; o fato é que as regras delimitadas ali estão para confundir a mente, não apenas dos presos, mas também de toda a sociedade, inclusive os próprios funcionários do Tribunal. É importante considerar também que muitas das ressal
vas “benignas” que o Regimento faz em alguns parágrafos pode ser uma forma de pessoas importantes da época, (que por ventura fossem acusadas pelo Tribunal) escapassem, evitando situações “diplomáticas” complicadas.

Acompanhando essa discussão sobre os casos em que a Inquisição se torna
“misericordiosa”, temos também os apresentados.

Posto que todas as pessoas de qualquer estado, e condição que sejam, pelo crime de heresia, e apostasia, apartando-se por obras,
ou por palavras, com contumácia, de nossa santa fé católica, conforme o direito, encoram nas sobreditas penas de excomunhão maior, irregularidade, infâmia privação de honras, ofícios, e benefícios, confiscação de bens, e relaxação na justiça secular: com tudo se vierem a apresentar se na mesa do santo Ofício, assim dentro do tempo de graça, como fora dela, e confessarem nela culpas de judaísmo, ou de qualquer outra heresia, ou apostasia, e declararem os cúmplices, com que as cometerão, se ao tempo de sua apresentação não estavam delatas (ainda que depois dela lhe sobrevenham testemunhas) e suas confissões parecerem verdadeiras, serão recebidas ao grêmio, e união da santa Madre Igreja; e na mesa abjuram em fora, sem hábito penitencial, diante dos Inquisidores, um notário, e duas testemunhas, as quais serão oficiais do S. Ofício, e assinarão juntamente com os Réus os termos da abjuração. (REGIMENTO, 1996, p. 829).

Para esses casos, existe quase que uma regra matemática: os apresentados no tempo de graça não eram excomungados, mas tinham sequestro de bens; os que se apresentavam fora do tempo de graça, sem excomunhão e sem seqüestro; se o indivíduo se apresentava já tendo sido denunciado, ele abjurava em público com
hábito penitencial46; sem testemunhas a abjuração era secreta; culpas públicas (como os heresiarcas) requeriam abjurações públicas; relapsos apresentados sem testemunhas tinham penas espirituais, enquanto os que apresentavam testemunhas formavam processo.

Em casos de questionamento sobre o andamento inadequado do processo, o Tribunal previa suspeições de funcionários do Santo Ofício e apelações, mas que praticamente não tinham efetividade; como eram votadas pelos próprios participantes do processo, não temos notícia de que alguma delas resultou em
qualquer mudança a favor dos presos.”


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Fonte:
Maria Carolina Scudeler Silva: "Inocentes & Culpados: repensando o julgamento inquisitorial". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profª. Drª. Anita Waingort Novinsky). São Paulo, 2009.

Nota
:
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O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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