A reforma do saber médico no século XVIII

A reforma do saber médico no século XVIII e sua extensão ao Brasil do século XIX

As propriedades medicinais não são
virtudes ocultas, mas conseqüências que
resultam das suas propriedades. Estatutos
da Universidade de Coimbra, 1772.

Até o século XVII, quando ocorreram na Europa alguns importantes avanços científicos, entre os quais a aprimorada descrição do sistema circulatório elaborada pelo médico inglês Willian Harvey (1578-1657), a medicina pouco havia evoluído em relação à Antiguidade, devido, principalmente, ao controle exercido pela Igreja Católica à produção intelectual. A partir de então, esse campo de conhecimento começou a progredir, graças ao impulso ao estudo de anatomia em cadáveres, decorrente do referido aprimoramento e, ao mesmo tempo, da paulatina diminuição da influência eclesiástica sobre a ciência após a Reforma, ao ponto de converter-se em um dos principais e mais estratégicos saberes do mundo moderno.

Isso porque, junto com esses eventos históricos, a vida humana passou a ser cada vez
mais valorizada, tanto do ponto de vista social, à medida que o humanismo e o antropocentrismo se consolidaram como base da preocupação filosófica, quanto do ponto de vista econômico, à medida que o aumento demográfico tornou-se um pré-requisito para o crescimento das atividades mercantis. Com efeito, por um lado, o Estado teve que transformar a melhora das condições da saúde da população em uma das suas mais fundamentais obrigações políticas, por outro, os médicos tiveram que se organizar para promover esforço permanente destinado a ampliar os recursos contra as enfermidades.

Um dos primeiros passos que eles precisaram dar para atingir esse objetivo foi a superação de determinadas características que durante centenas de anos marcaram profundamente no Ocidente a arte de curar (como se referiam à medicina antes dela alcançar
certo rigor científico no final do século XIX).

Características da arte de curar combatidas pelos médicos ilustrados

Em uma época em que “quase toda a Europa se encontrava nas trevas da superstição”, era comum ocorrerem agressões contra pessoas consideradas responsáveis pela proliferação de moléstias assustadoras, como em Milão no início da década de 1630, quando um velho, ao sentar-se no banco da Igreja de Santo Antônio, passou o seu manto nele para limpá-lo. Essa cena foi interpretada pelo povo como tentativa de disseminar a peste que assolava toda a cidade, “uma das mais impiedosas de que há lembrança na história”, sendo por isso agarrado “na própria Casa de Deus” e espancado “com socos, pontapés e todos os gêneros de
pancadas”, até ser transformado “em cadáver”.

Isso acontecia porque, antes dos avanços da medicina na geração de Pasteur (1822-
1895), a concepção sobre as doenças e os seus meios de cura era marcada por uma forte visão mística, pois pouco se podia fazer com eficácia para, de um modo geral, confrontá-las, uma vez que quase nada se sabia a respeito das suas causas. Por esse motivo, até o final do século XIX elas eram interpretadas (sobretudo as que se manifestavam de forma epidêmica e provocavam extremo abalo social) como castigo divino motivado pelo comportamento transgressivo dos indivíduos, ou das sociedades, em relação às regras de conduta religiosa.

Assim, tomando como exemplo as sociedades cristãs, observa-se que nelas vigorou
durante séculos a crença, sustentada principalmente pela Igreja, como está expresso nas Constituições Sinodais do Arcebispado de Lisboa editadas em 1737, de que “muitas vezes as enfermidades corporais procedem dos pecados e das enfermidades espirituais, como Cristo Nosso Senhor ensinou no Evangelho”, de modo que “cessando a causa dos mesmos pecados quererá ele por sua divina misericórdia que cesse o efeito da doença”. Essa crença exerceu tão profunda repercussão nas práticas de cura da época, que levou um dos maiores expoentes do saber médico português, Francisco de Melo Franco, a argumentar, sintonizado com o que predominava na mentalidade dos seus pares em pleno auge da Ilustração, o seguinte:

“O fim da medicina corporal é recuperar a saúde perdida e conservar a que se há recuperado; este é o mesmo ofício do confessor; mas assim como o médico corporal para satisfazer este fim deve procurar junto com a do corpo a saúde da alma, assim também o médico espiritual deve junto com a saúde da alma procurar a do corpo”.

A relação entre a saúde física e a espiritual exposta nessa passagem deriva do pensamento renascentista, que preservou a premissa, já bastante difundida desde a Antiguidade e confirmada pelo cristianismo, da “estreita ligação entre a alma e o corpo, através da qual a experiência de uma é comunicada ao outro”.
Tal era a força dessa premissa que nem mesmo alguns dos maiores filósofos escaparam da sua influência, o que permitiu disseminá-la, como René Descartes, em cuja obra intitulada Meditações (1641) afirmou “que a alma do homem é de fato diversa do corpo e que apesar disso, ela lhe é tão estreitamente conjugada que forma praticamente uma mesma coisa com ele”.

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Fonte:
Alisson Eugênio: "REFORMA DOS COSTUMES: Elite médica, progresso e o combate às más condições de saúde NO BRASIL DO SÉCULO XIX". (Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Econômica do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP. Orientador: Prof. Dr. Antonio Penalves Rocha). São Paulo, 2008.

Nota
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