O advento do atomismo científico no século XIX



"No século XIX, uma série de áreas diferentes de pesquisa, como a espectroscopia, a eletroquímica e a química orgânica, a termodinâmica e o eletromagnetismo, se desenvolveram rapidamente contribuindo para a teoria atômica. As contribuições teóricas e experimentais são várias e não constitui o escopo deste trabalho descrevê-las em pormenores. Deste modo, faremos um recorte dos aspectos mais importantes para a consolidação da teoria atômica neste período, enfatizando as questões pertinentes ao realismo e ao aspecto reducionista do seu programamecanicista.

Lavoisier, ao mostrar a importância dos estudos gravimétricos na análise química da estrutura da matéria, iniciou um período crucial da história do atomismo científico que se desenvolverá no século XIX. Atrás do trabalho de Lavoisier, outras leis gravimétricas importantes foram estabelecidas com relação à combinação dos elementos químicos: a lei das proporções fixas de Joseph-Louis Proust (1754-1826), em 1806, e a lei das proporções múltiplas de John Dalton (1766-1844), em 1804. A primeira enuncia que dois elementos sempre se combinam em proporções constantes de peso, e a segunda especifica que quando dois elementos podem combinar de diversas maneiras, os pesos relativos das combinações resultantes formam razões simples, ou seja, números racionais. Ainda também uma terceira lei, cronologicamente mais antiga, conhecida como lei das proporções recíprocas, enunciada pelo químico alemão Jeremias Benjamin Richter (1762-1807), desempenhou um papel importante no desenvolvimento do conceito de “equivalentes químicos”. A lei enuncia que os pesos de dois elementos A e B que combinam com o mesmo peso de um terceiro elemento C formam uma razão simples com os pesos de A e B quando combinados diretamente.

O conjunto destas leis tornou possível a formulação de uma nova teoria corpuscular quantitativa da estrutura da matéria. John Dalton, que havia estudado a já mencionada derivação atômica da lei de Boyle elaborada por Newton, é considerado o “pai” da teoria atômica moderna com a sua obra A New System of Chemical Philosophy, publicada em 1808. Neste trabalho, Dalton formula o princípio de que cada elemento químico é composto de átomos idênticos de massa característica, e que os compostos são combinações de átomos de elementos diferentes em proporções numéricas simples. Ele ainda define o “peso atômico” como a massa de um átomo relativa à massa do átomo de hidrogênio, e afirma que não há criação ou destruição de matéria durante as transformações químicas. Para isto, Dalton utiliza a seguinte analogia: “É tão ridículo tentar introduzir um novo planeta no sistema solar ou aniquilar um planeta já existente quanto é tentar criar ou destruir uma partícula de hidrogênio”.
O trabalho de Dalton foi a primeira aplicação sistemática e bem sucedida do atomismo às observações quantitativas. As suas proposições foram capazes de explicar elegantemente todas as leis gravimétricas supracitadas.

Portanto, dentro de um curto período de tempo, muitos dados novos foram adicionados à teoria atômica. Contudo, uma grande dificuldade, com a qual Dalton já havia se debatido, ainda permanecia. A partir de um volume de oxigênio e um volume de nitrogênio, dois volumes de óxido de nitrogênio são formados. Na hipótese de haver um mesmo número de componentes para um mesmo volume, isto implicaria que, a partir de um átomo de oxigênio e um átomo de nitrogênio, foram formados dois óxidos de nitrogênio. Isto apenas aconteceria caso os átomos tivessem se dividido, o que é contrário à hipótese da indivisibilidade dos átomos. A indivisibilidade era um princípio fundamental da hipótese atômica, pois sem átomos indivisíveis faltaria uma base firme para toda a teoria química, como as leis de Proust e de Dalton. A solução para este dilema surgiu através das leis volumétricas de Joseph Gay-Lussac (1778-1850) e da hipótese de Amédée Avogadro (1776-1856). As leis de Gay-Lussac, formuladas em 1809, especificam que i) as combinações dos gases sempre ocorrem em proporções simples de volume, e que ii) quando o produto da reação é ela mesma um gás, seu volume também forma uma proporção simples com aquelas de seus componentes. Estas leis, junto com a observação de que os gases se comportam de acordo com as mesmas leis de expansão e compressibilidade, levaram Avogadro a propor, em 1811, sua famosa hipótese de que “iguais volumes de qualquer gás nas mesmas condições de temperatura e pressão contêm o mesmo número de moléculas”. Avogadro também mostrou que a sua hipótese estava de acordo com as observações de Gay-Lussac. A hipótese de Avogadro implica que as massa relativas das moléculas podem ser determinadas sem mesmo termos que observar um átomo ou molécula individual. Basta medirmos as massas relativas das amostras macroscópicas sob condições ideais. Quando a amostra é de um mol, o número de átomos é o chamado número de Avogadro.

Ainda vários outros passos importantes ocorridos na primeira metade do século XIX devem ser mencionados. Como a lei de Dulong (1785-1839) e Petit (1791-1820), que foi enunciada em 1819 e afirma que o produto do peso atômico com a capacidade calorífica de um corpo é uma constante aproximadamente igual a 6,4 calorias (independente da natureza do elemento). O aumento crescente da acuidade na determinação dos pesos atômicos de novos elementos, devido aos trabalhos de Jakob Berzelius (1779-1848), Auguste Laurent (1807-1853) e Charles Gerhardt (1816-1856), e a expansão gradual da lista de elementos, acabou por levar à tabela periódica, desenvolvida, de maneira independente, por Julius Lothar Meyer e Dmitri Ivanovitch Mendeleev. Ambos descobriram uma certa periodicidade quando os elementos eram tabelados de acordo com a ordem crescente dos pesos atômicos. Assim, devido a esta regularidade entre os pesos atômicos, foi possível prever de uma forma razoavelmente acurada várias propriedades físicas e químicas dos elementos que estavam faltando. Mendeleev, autor desta peça tão fundamental ao atomismo, nunca ousou admitir publicamente a realidade dos átomos. Para ele, a tabela periódica representava somente uma coincidência interessante, sem qualquer inferência mais fundamental sobre a natureza corpuscular última dos elementos.

Posteriormente, duas novidades foram importantes para o desenvolvimento da tabela periódica. A primeira com relação aos gases nobres, que pareceram, inicialmente, não ter um lugar na tabela periódica, mas que depois, devido ao fato de não formarem combinações químicas e graças à conexão mútua destes elementos, foram considerados um grupo especial. A segunda extensão, de grande importância para a fundação teórica da tabela periódica, foi a presença dos isótopos, que se tornaram evidentes através do estudo da radioatividade. Contudo, a razão fundamental destas observações, e da periodicidade das propriedades dos elementos, permaneceu desconhecida. Apenas meio século depois do trabalho de Mendeleev estes fenômenos receberiam um modelo explicativo através da estrutura eletrônica dos átomos.

O desenvolvimento da eletroquímica, principalmente através dos trabalhos de Alessandro Volta (1745-1827), Humphrey Davy (1778-1829) e Michael Faraday (1791-1867), sugeriu fortemente que as reações químicas poderiam resultar do fenômeno elétrico, o que inspirou Berzelius a propor, em 1819, uma teoria eletroquímica das combinações químicas, na qual cada átomo exibe dois pólos carregados com eletricidade de sinais opostos. Enquanto os outros pioneiros da eletroquímica, como Faraday, mantiveram distância da teoria atômica, ou, como Davy, a rejeitarem completamente, Berzelius aproximou sistematicamente a teoria eletroquímica da teoria atômica. O trabalho de Berzelius, portanto, foi de grande importância para desenvolvimento do atomismo no século XIX, o que pode ser percebido pela apreciação de Alan Rocke:

Se John Dalton foi o pai da teoria atômica, então Jacob Berzelius foi a parteira e o pai adotivo, cumprindo talvez o papel mais importante no desenvolvimento do atomismo tanto químico quanto físico durante as segunda, terceira e quarta décadas do século dezenove.

Proust já havia sugerido a hipótese de que todos os elementos poderiam ser arranjados a partir do hidrogênio. Os trabalhos sobre o fenômeno da radioatividade, no final do século XIX, por Becquerel (1852-1908), Marie Curie (1867-1934) e Pierre Curie (1859-1906), apoiaram, ainda mais, a idéia geral de que átomos de elementos diferentes poderiam possuir um componente básico comum. A partir destes trabalhos, notou-se que certos elementos de grande peso atômico espontaneamente se desintegram em elementos de peso atômico menor. Além disto, a desintegração é acompanhada por emissão de raios, cuja investigação revelou serem de três tipos, que foram chamados de alfa, beta e gama. Os raios alfa e beta foram identificados como feixes rápidos de partículas materiais que tinham, respectivamente, carga elétrica positiva e negativa, e que se diferenciavam consideravelmente pela massa e pela velocidade.

O crescimento da química orgânica foi também muito importante para a teoria atômica. O fenômeno mais notável desta contribuição é o chamado isomerismo, ou seja, a observação de compostos que, embora constituídos dos mesmos átomos, possuem propriedades diferentes, o que levou os químicos a procurarem entender o papel dos arranjos dos átomos nas estruturas moleculares. Archibald Scott Cooper (1831-1892) e Alexander Boutlerov (1828-1886), por exemplo, substituíram as antigas fórmulas dos compostos químicos, que indicavam simplesmente a razão numérica dos átomos constituintes, por fórmulas mais elaboradas que descreviam também a maneira como os átomos individuais estavam ordenados. Talvez o principal problema desta descrição fosse fazer uma representação espacial tridimensional do arranjo dos átomos. Achille Jacques Le Bel (1847-1930) e Jacobus Hendricus Van’t Hoff desenvolveram esta idéia ao propor que as quatro valências do carbono apontavam para os vértices de um tetraedro regular tendo o átomo de carbono no seu centro. No século XIX, estas transformações levantaram um série de objeções a respeito da realidade destas representações. Adolf Wilhelm Hermann Kolbe, por exemplo, um dos químicos orgânicos mais eminentes do seu tempo, escreveu no Journal für Praktische Chemie:

Eu comentei, não muito tempo atrás, que a falta de uma educação liberal em muitos professores é uma das principais causas da deterioração da pesquisa química. O resultado é uma filosofia natural que tem a aparência de profundidade e que se espalha rapidamente; mas na realidade, é trivial e oca. Esta explicação, purgada das ciências naturais exatas há cerca de cinqüenta anos, está, atualmente, sendo resgatada por uma gangue de charlatães científicos que estão recuperando os erros da humanidade. Aqueles que acham a minha crítica muito severa são incitados a ler, se agüentarem, a monografia recente de um certo Van’t Hoff, entitulada The Spatial Arrangement of Atoms, um livro repleto de infantilidades sem sentido. Este jovem mascate não tem aparentemente nenhuma apreciação pela pesquisa em química rigorosa. Ele afirma ter visto átomos arranjados no espaço. O mais sóbrio mundo da química não tem interesse em tais alucinações.

Kolbe não viveu tempo o suficiente para ver o primeiro prêmio Nobel de química, em 1901, ser entregue a ninguém menos do que Van’t Hoff! Com efeito, as maiores controvérsias a respeito da existência dos átomos ocorreram entre cientistas eminentes. Os anti-atomistas que citaremos a seguir podem ser divididos entre os equivalentistas, como Henri Sainte-Claire Deville (1818-1881) e Marcellin Berthelot (1827-1907), e os energetistas, como Ernst Mach (1838-1916) e Wilhelm Ostwald (1853-1932). Deville assim se pronunciou a respeito da teoria atômica:

Todas as vezes que alguém tenta imaginar ou retratar átomos ou grupos de moléculas, eu não acredito que isto equivalha a mais do que uma rude descrição de uma idéia pré-concebida, uma hipótese gratuita, resumindo, uma conjectura estéril. Nunca uma tal descrição inspirou um único experimento sério; tudo o que ela faz é seduzir, não provar; e estas noções, que estão tão em voga hoje em dia, são para a juventude em nossas escolas um perigo mais perigoso do que se pode imaginar. Eu não aceito nem a lei de Avogadro, nem os átomos, nem as moléculas, nem as forças, nem estados particulares da matéria; eu me recuso em absoluto a acreditar no que eu não posso ver e nem sequer imaginar.

Berthelot foi um dedicado anti-atomista militante cuja alta posição no governo o permitiu publicar um édito oficial que praticamente baniu o ensino da teoria atômica em favor da idéia de peso equivalente até 1890. Assim Berthelot defendeu o seu ponto de vista:

A definição de pesos equivalentes é clara e geralmente mais fácil de se demonstrar por experimentos precisos. Bem diferente é a definição de átomo. Ela é por vezes fundada numa noção disfarçada de peso equivalente, algumas vezes na noção de molécula de gás, o que é um argumento circular, e às vezes na noção de calor específico, que é uma quantidade variável que não poderia servir como base para uma definição rigorosa. Em resumo, o átomo é definido neste novo sistema por três noções diferentes, as quais freqüentemente levam a resultados incompatíveis e a escolhas arbitrárias. Assim, a definição de átomo é ela mesma arbitrária, e é por causa da confusão lançada na ciência por esta hipótese mal definida que nos recusamos a ver nela uma base para o ensino da química.

O energetismo é a outra escola de pensamento oposta ao atomismo que cresceu na segunda metade do século XIX. O energetismo é uma variante do positivismo que defende o estudo da natureza numa base puramente fenomenológica, rejeitando qualquer hipótese sobre a realidade objetiva da natureza e dispensando qualquer tentativa de explicar a sua essência. Para Ernst Mach, por exemplo,

A teoria atômica tem na ciência física uma função que é similar àquela de certas representações matemáticas auxiliares. Ela é um modelo matemático usado para a representação dos fatos. Embora a vibração seja representada por curvas de seno, o processo de esfriamento por exponenciais, e o comprimento de queda por quadrados do tempo, ninguém admitiria que a vibração, ela mesma, tem qualquer coisa a ver com funções circulares ou angulares, ou a queda com quadrados.

Ostwald, o mais distinto energetista na sua forma mais pura, esperava de alguma maneira derivar todas as leis conhecidas da física a partir de algumas regras governando a transformação da energia. Não haveria átomos. Segundo ele, a sua posição oferecia várias vantagens sobre a abordagem mecanicista:

Primeiro, a ciência física estaria liberta de qualquer hipótese. Depois, não haveria mais qualquer necessidade de nos preocuparmos com forças, das quais a existência não pode ser demonstrada, agindo sobre átomos que não podem ser vistos. Somente quantidades de energia envolvidas no fenômeno relevante importaria.

Outra contribuição importante à teoria atômica no século XIX que devemos citar é a teoria cinética dos gases. O seu propósito, realizado através dos trabalhos de Clausius, Maxwell e Boltzmann, era derivar as leis dos gases a partir do movimento das moléculas hipotéticas. Boltzmann, que manteve um contato amigável com Ostwald desde que o conheceu em 1887, travou um debate contra os energetistas num encontro em Lübeck, em 1895, que está bem descrito no livro de David Lindley, Boltzmann’s Atom:

Ostwald e Helm tomaram partido do energetismo, e Boltzmann, apoiado pelo jovem matemático Felix Klein, argumentou a favor dos átomos. (...)
Em Lübeck, Boltzmann e Klein tinham que defender a essência da teoria cinética contra os oponentes que simplesmente não acreditavam na existência dos átomos, que viam o trabalho de Boltzmann como uma especulação matemática elaborada e fundada em pura suposição, e que nem sequer permitiam Boltzmann o privilégio de pensar que as suas teorias constituíam um tipo respeitável de investigação científica. Ostwald e Helm não estavam lá para debater os méritos da teoria cinética, mas para negá-la por inteiro. (...)
Helm e Ostwald então esboçaram as suas visões do energetismo, argumentando que embora ainda longe de estar completo, ele prometia um poder explanatório poderoso e abrangente baseado em princípios elementares. Eles estavam, eles disseram, oferecendo um programa de pesquisa, não um corpo de conhecimento acabado. (...)
Boltzmann começou a sua resposta amigavelmente, fazendo algumas observações gerais a respeito da necessidade de se explorar uma grande variedade de hipóteses científicas a fim de avançar a ciência. Ele se declarou ávido por evitar hostilidade. (...)
Tendo feito a sua declaração de neutralidade, Boltzmann passou a criticar deliberadamente as pretensões teóricas de seus oponentes. O que foi seguido de uma análise comprida e bastante técnica, mas cujo ponto essencial era simples. Ele explicou o que qualquer físico sabia ser verdade. A mecânica newtoniana estava baseada em mais do que somente a conservação da energia. A segunda lei da termodinâmica era distinta da primeira e não, como muitos físicos tinham originalmente pensado, derivável dela. Estas não eram questões de preferência filosófica, mas de raciocínio físico e prova matemática. (...)
Vários anos depois, num encontro na época da guerra, que aconteceu em Viena para marcar o centenário do nascimento de Boltzmann, outro físico lembrou do debate. Arnold Sommerfeld, que sucedeu Boltzmann em Munique e se tornou, no início do século XX, um defensor da nova teoria quântica, havia participado do encontro em Lübeck quando jovem. Ele comparou o debate entre o obstinado Boltzmann e o ágil Ostwald “à luta do touro com o ligeiro esgrimista. Porém, desta vez, apesar de toda sua habilidade na esgrima, o toureador foi abatido pelo touro. Os argumentos de Boltzmann venceram. Naquele dia, nós matemáticos ficamos todos do lado de Boltzmann.”

O movimento do energetismo apagou-se no início do século XX. A partir da teoria cinética dos gases, o calor foi identificado como a energia do movimento aleatório das moléculas e, por conseguinte, incorporado à teoria atômica por meio da mecânica. A lei de Dulong-Petit, por exemplo, que afirma que o produto do peso atômico com a capacidade calorífica de um corpo é uma constante aproximadamente igual a 6,4 calorias, recebeu uma explicação teórica através do teorema de eqüipartição da energia. As questões epistemológicas levantadas por pensadores ilustres como Kolbe, Deville, Berthelot, Mach e Ostwald diziam respeito ao realismo da teoria atômica, ou seja, à relação entre os meios de representação e a coisa representada. A crise que se operava girava em torno do caráter semântico da teoria atômica, que foi expressa por questões como: Seria realmente necessário admitirmos átomos e moléculas devido às fórmulas matemáticas expressando os fenômenos dos gases? Não seria o suficiente apenas admitirmos as fórmulas matemáticas que a teoria cinética dos gases tinham estabelecido? Seria absolutamente necessário admitirmos a existência real de moléculas em movimento que nunca tinham sido observadas? Não seriam estes átomos e moléculas que nunca foram observados somente um último vestígio do período metafísico? A ciência física não devia seu enorme progresso no último século ao fato de se basear inteiramente em dados empíricos?

Finalmente, a fim de estabelecermos a exata posição da teoria atômica no final do século XIX, devemos mencionar a evolução da nossa visão dos fenômenos elétrico e magnético. Duas teorias são especialmente importantes para o nosso estudo. A primeira é a teoria eletromagnética, a qual será de nosso interesse devido ao seu papel de rival do programa reducionista mecanicista. A segunda é a teoria eletrônica, pois esta está conectada diretamente com a teoria atômica.

A teoria eletromagnética estabeleceu a carga como uma propriedade da matéria, assim como o arcabouço conceitual da mecânica newtoniana havia feito com a massa. Além disto, da mesma forma que o desenvolvimento da termodinâmica, enquanto um edifício maduro de conceitos e princípios dentro da ciência física, permitiu que cientistas, como Ostwald e os energetistas, buscassem uma redução da mecânica aos princípios termodinâmicos, algo parecido também ocorreu com o eletromagnetismo. A idéia de que a inércia é ultimamente um fenômeno eletromagnético e que a massa inercial é basicamente um efeito indutivo teve sua origem no estudo da eletrodinâmica das cargas em movimento. J. J. Thomson, no seu artigo On the Electric and Magnetic Effects Produced by the Motion of Electrified Bodies, de 1881, sugeriu a possibilidade de que a inércia poderia ser reduzida ao eletromagnetismo.
Oliver Heaviside aprimorou o trabalho de Thomson num artigo de 1889 chamado On the Electromagnetic Effects due to the Motion of Electrification through a Dielectric. A publicação do artigo de Heaviside marcou o início de uma animada competição entre a mecânica e o eletromagnetismo pela supremacia da física. Wilhelm Wien foi um destes entusiastas do conceito eletromagnético de massa. No seu artigo, On the Possibility of an Electromagnetic Foundation of Mechanics, Wien propõe que seria mais promissor para o desenvolvimento da física se considerarmos as equações do eletromagnetismo como a base para derivarmos as leis da mecânica. Contudo,

o entusiasmo inicial que a teoria tinha logo diminui, assim que se tornou cada vez mais claro que a teoria eletromagnética da massa era incapaz de realizar com sucesso as generalizações necessárias para os outros constituintes da matéria além do elétron. Além do mais, a verificação experimental da dependência da velocidade da massa eletrônica, que era a principal evidência do conceito eletromagnético, encontrou uma nova interpretação na revolucionária teoria da relatividade.

Assim, o programa de reduzir a mecânica ao eletromagnetismo não logrou. “De fato, a possibilidade de uma física completamente eletromagnética, abrangendo todos aspectos da realidade física, nunca foi invalidada, mas apenas perdeu gradualmente o seu apelo original.”

Deste modo, passamos ao segundo ponto da nossa abordagem, ou seja, à teoria eletrônica. A aceitação da teoria corpuscular de J. J. Thomson, a partir das suas experiências no Laboratório Cavendish em 1897, conhecida pela historiografia realista como a “descoberta do elétron”, completa o nosso percurso pelas contribuições à teoria atômica do século XIX. Thomson, diferentemente do que era pensado na época, sugeriu que os raios catódicos seriam partículas subatômicas carregadas negativamente. Ele chamou esta partícula de corpúsculo, mas depois ela se tornaria conhecida como elétron. O problema com a palavra “descoberta” é que ela pressupõe uma perspectiva realista sobre entidades não observáveis, o que demanda uma teoria da descoberta científica que, como deve ter ficado claro no primeiro capítulo, fugiria da nossa diretriz historiográfica. O próprio Thomson recordou mais tarde que a sua teoria corpuscular não foi em geral aceita até dois anos depois, quando, num encontro da British Association, em 1899, ele a explicou novamente. O processo de apropriação do elétron pela física e pela química está relacionado com a práxis dos seus praticantes com respeito aos instrumentos de pesquisa e aos modelos teóricos. Thomson, por exemplo, precisou pressupor a lei de força de Lorentz para derivar a razão massa/carga das partículas dos raios catódicos que eram desviadas pelo campo magnético. Assim, a história inicial do elétron foi caracterizada pelos diferentes papéis que a partícula desempenhou nos fenômenos físicos e químicos conhecidos. Por isto, podemos falar de um elétron eletroquímico (Stoney e Helmholtz), um elétron eletrodinâmico (Larmor e Lorentz), um elétron dos raios catódicos (Thomson e Wiechert), e um elétron magneto-óptico (Zeeman e Lorentz). Como nos mostra Isobel Falconer, no seu ensaio Corpuscles to Electrons,
diferentes tradições levaram a diferentes conceitos do elétron, e experimentos idênticos significaram coisas diferentes dentro destas tradições. A aceitação do elétron como um constituinte subatômico universal da matéria foi um processo longo e complexo que envolveu debates em espectroscopia, raios catódicos, raios X, telegrafia sem fio, radioatividade e condução metálica, além de ter coexistido com a longa discussão sobre a constituição da eletricidade. Apenas por volta de 1900 em diante, quando um número significante de praticantes passaram a usar efetivamente a noção um tanto heterogênea de “elétron” numa vasta variedade de contextos teóricos, que os resultados de Thomson foram amplamente assimilados. Não obstante,

o elétron de Thompson de 1897 era um corpúsculo massivo e carregado – uma partícula eletrificada – obedecendo à dinâmica newtoniana que foi rapidamente substituído por uma visão de mundo eletromagnética onde a massa surge como um artefato do seu campo eletromagnético [como vimos acima]. O elétron de Einstein de 1905 mais uma vez sustentou uma massa intrínseca, mas agora obedecia à dinâmica relativista. O elétron da antiga teoria quântica de Bohr da década de 10 e início da década de 20 mostrava uma mistura precária e crescente de propriedades clássicas e discretas. De Broglie propôs em 1923 que os elétrons são um fenômeno ondulatório afinal, e sua proposta foi logo multiplamente justificada, até pela detecção de difração de ondas de elétron. O elétron de Pauli de 1925 obedecia a um bizarro “princípio de exclusão” não clássico segundo o qual dois elétrons não poderiam ocupar o mesmo estado de energia num átomo. O elétron da nova teoria quântica do final da década de 20 podia ser aparentemente representada
igualmente bem pelas matrizes de Heisenberg, as ondas de Schrödinger, e os números de Dirac.

Apesar desta multiplicidade de usos do conceito de elétron, todos eles possuem uma semelhança de significado, o que lhe confere o que Lillian Hoddeson e Michael Riordan chamam de uma “realidade operacional”. O discurso sobre a realidade do elétron adquire sentido quando colocado sob perspectiva. Real para quem? Real com qual efeito? Real comparado com o quê?.
Assim, o elétron foi a última contribuição do século XIX à consolidação da nossa imagem atômica do mundo.

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Fonte:
Gustavo Rodrigues Rocha: "A história do atomismo A construção e a desconstrução de uma imagem sintático-semântica do conhecimento científico". (Dissertação apresentada na linha de pesquisa ciência e cultura na história como quesito parcial para a obtenção do título de mestre em história, pela Universidade Federal de Minas Gerais). Belo Horizonte, 2006.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Um comentário:

  1. Bom dia
    Sou formado em elétrica (eng.Eletrotêcnica) e acho uma infantilidade toda a teoria elétrica baseada
    na suposta teria dos elétrons, coisa que já deveria ter sido superado há muito tempo. Acho tudo isto muito
    simplório, pois o que lidamos na verdade são com o efeitos da "eletricidade" e nada sabemos do real.
    Lamentável.

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