A discussão sócio-histórica do conceitual de violência

“Uma visão panorâmica sobre a história da sociedade brasileira mostra a constituição de práticas de violência oriundas de relações sociais, políticas, econômicas e culturais, sendo conformadas dentro de uma perspectiva de violência permeada de expressões e sentidos diversos conforme a época, o lugar, a moral, a ética, os dilemas e os interesses. A formação do povo brasileiro um povo-nação produzido pela miscigenação das matrizes culturais indígenas, negras e européias sempre foi marcada por diversas práticas de sociabilidade, inclusive as violentas, como resultado dos conflitos de natureza étnica, social, religiosa, política, econômica e racial, que continuam emergindo com as características próprias de cada época. Entretanto, entende-se que a violência não é produto da índole ou da natureza deste povo.

Historicamente, a discussão sobre a temática da violência na perspectiva cultural, adquiriu maior notoriedade do que as outras dimensões da vida social, sugerindo como inequívoca, a partir da colonização européia, a solidificação na sociedade brasileira de um tipo de comportamento social determinante que se expressa numa relação de dominação exercida por alguém que veio de fora e se colocou à força como um saber diferente, impondo aos nativos a incorporação de
uma forma cultural estranha que não era a sua. Na verdade, trata-se de essencializar uma postura culturalista para explicar a construção de concepções e discursos sobre a violência no Brasil.

Conforme observa Lobo (2003, p. 8),

Na história brasileira, de pouco mais de meio milênio, a violência
sempre existiu. (...) Uma violência institucionalizada pelos colonizadores sobre os colonizados e da elite sobre os desfavorecidos. Outras formas de violência aconteceram no coronelismo, no cangaço, nas revoluções internas, nas guerras externas e nas ditaduras. Apenas muda a forma como se mostra a violência. Por sua vez, não podemos nem devemos afirmar que a nossa violência é mais violenta (...).

No entanto, neste trabalho, não se procura uma ancoragem teórica em uma definição única, ampla e fixa do que seja a violência, já que esta não é uma
tarefa das mais simples, a começar pela dificuldade com relação aos próprios contornos semânticos do termo.

Uma das principais dificuldades de se construir uma definição referencial de violência é que o sentido dado às práticas tidas como violentas é definido e re-definido pelos grupos sociais conforme os interesses, os confrontos e os conflitos em um determinado contexto social e histórico. Geralmente, os discursos sobre violência no Brasil, que optam por uma abordagem a partir da noção de direitos humanos, têm por base o paradigma iluminista que afirma que a nossa civilização, depois de alcançar a maturidade, se decidiu por revolver de forma pacífica os seus conflitos, tendo como instrumentos para a mobilização das negociações democráticas, dos compromissos e dos acordos: o Estado, a democracia e o monopólio estatal da força.

Existem, também, aquelas interpretações que partem do princípio hobbesiano que definiria o estado de natureza do homem
a guerra de todos contra todos ou o homem é o lobo do homem para construírem uma noção do que seja violência, apontando a combinação entre o insaciável desejo dos homens por bens ou objetos capazes de satisfazê-los e a raridade ou o estoque finito destes, como o fator gerador de tantos conflitos entre os homens. De outra forma, o que o senso comum chama de violência tem uma certa aproximação com as práticas culturais que vão se estabelecendo, historicamente, através do processo de relações sociais dentro de um determinado grupo.Todavia, essa construção conceitual de violência também não deixa de ser perpassada por práticas políticas e econômicas, que vão configurando e re-configurando os contatos e as interações sociais, produzindo distintas relações de forças interpessoais e intergrupais.

No Brasil, por exemplo, ainda é comum aparecer no debate sobre a
compreensão da violência discussões que tratam sobre uma possível índole pacífica ou disposição violenta do brasileiro, cuja fundamentação vem do fato de que haveria entre nós - os brasileiros - um descaso em relação à vida humana que se expressa como um traço típico do caráter nacional, induzindo, por um lado, a opinião pública a acreditar que a atual onda de violência tem a ver com essa suposta característica inata e, por outro lado, tende a deslocar tais discussões do contexto institucional e histórico onde se realizam as manifestações de violência.

Entretanto, deve-se ressaltar que a denominação de violência que hoje se
dar a algumas práticas de sociabilidade que se manifestaram durante o período da colonização, vem do fato de que, no presente, já se construiu um sentido diferenciado das relações estabelecidas entre os invasores e os povos nativos no passado, ou seja, já se sabe quem são eles, como se instalaram aqui, qual os seus interesses etc. Evidentemente, os grupos invasores, ou que se colocaram como civilizadores, para imporem a sua vontade sobre os povos nativos tiveram que usar a força, mas uma força no sentido da lógica de quem estava definindo o que era e o que não era crime, ou o que deveria ou não ser punido com castigo, que, necessariamente, não era a mesma lógica para quem estava sendo incriminado ou castigado, já que para estes não havia tais noções ou linguagens de violência.

Mas, essa imposição da vontade dos civilizadores não possibilitou apenas uma transformação civilizatória, mas, também, uma relação de dominação política e econômica que veio com a incorporação da cultura. Nos primeiros séculos, que correspondem à chegada do invasor europeu e o período colonial no Brasil, a
violência no processo de formação da sociedade brasileira caracterizou-se por “desindinizar os índios, desafricanizar os negros e deseuropizar o europeu para nos fazermos” (Ribeiro, 1999, p. 205). O problema que a historiografia brasileira construiu o mito da conquista da terra sem donos, ou de ninguém, ou do ninguém. Tal visão aprofundou-se e criou raízes no imaginário histórico nacional, perdurando até hoje. Sobre isso, diz Guimarães (1981, p. 111):

Pena que a nossa historiografia, de ordinário tão empenhada em
tornar explícitos os vários fatos econômicos, no que fazia bem, tenha cuidado tão escassamente dos fatos extra-econômicos, de tamanha importância em nossa sociedade para a elucidação dos freqüentes apelos à violência que foram à linha dominante do comportamento de nossas oligarquias rurais.

Todavia, o que pode se concluir como ponto em comum entre a maioria
das abordagens sócio-históricas da violência é, primeiro, a confirmação da impossibilidade de existência de uma teoria da violência que permita uma apreensão da totalidade de um fenômeno social tão complexo, e, segundo, a crença na idéia de pacificação como fundamentação filosófica do mito moderno da violência. De certo modo, a constante tendência à banalização do mal e a disseminação da indiferença diante da dor e da angústia entre os homens têm contribuído tanto para expor o mito quanto para revelar a improbabilidade de realização da pacificação. Além disso, a tendência em concentrar e racionalizar o monopólio legítimo da violência unicamente dentro do aparelho estatal, é produto da necessidade imperiosa do discurso dominante em assegurar a condição para a “desprivatização da violência”, objetivando a eficiência no controle social.

É um fato que, no Brasil e também no mundo, historicamente, diversas
práticas de violência foram empregadas pelo aparato estatal como uma maneira de impor o consenso a ferro ou fogo, para assegurar uma determinada ordem social e garantir a qualquer custo a unidade ou a totalidade, em detrimento das forças de resistência e das diferenças que são, simultaneamente, a base da vida social e fonte inesgotável de tensões e conflitos dentro das sociedades humanas. Na prática, a violência conservadora por parte do Estado (ou violência institucional, ou mesmo totalitária), tem servido, basicamente, como um instrumento imprescindível para assegurar a sua própria sobrevivência e reivindicar para si o monopólio legítimo da violência. O que vem a confirmar que “a violência o alicerce supremo de qualquer ordem política” (Berger, 1996, p. 82).

Conforme observa Maffesoli (2001, p. 17):

A violência mais perigosa é a das instituições e do Estado que lhes sustentação. De tanto investir na assepsia, eliminam-se as capacidades de resistência de um corpo social. Assim, as forças de vitalidade, tão repentinas quanto explosivas, podem deixar
desamparados os responsáveis e os moralistas de todos os tipos, ignorantes do que é, na efervescência em que uma comunidade fortalece o sentimento de si mesma.

Para Zaluar (2000, p. 50), no caso do Brasil, a condição social, política, econômica e cultural são fatores importantes que perpassam a sociedade, cuja análise pode possibilitar uma compreensão da violência,

(...) a hierarquia é negada pela comensalidade freqüente, pelo convívio cotidiano nos espaços públicos, pelos casamentos inter-raciais e interclasses, e afirmada pela diferença de trajes e hábitos, pelos círculos sociais fechados, pelas escolas freqüentadas por privilegiados, pelos diferentes tratamentos obtidos na polícia e na
justiça que negam a cidadania ou os direitos universais. Desde já, portanto, fica evidente que nossas ambivalências, no que diz respeito aos valores de democracia, são desvendadas quando consideramos o cultural articulado ao institucional.

Zaluar (1998, p. 42) definiu a violência como
o não reconhecimento do outro; a anulação ou a cisão do outro (1998, 1989, 1993a, 1994d); a ausência de compaixão (1994). Essas definições e as que se aproximam delas, direta ou indiretamente, buscam chamar a atenção para o constante apelo à exibição da força física entre os humanos em detrimento de um maior espaço para o diálogo e o contorno dos conflitos de forma democrática. De certo modo, as práticas violentas, em suas mais variadas modulações, podem se manifestar de forma ocasional, ou espontânea, ou planejada, ou instrumental, ou passional, e são, freqüentemente, imprevisíveis e desproporcionais àquilo que lhe deu origem. A autora, com base no paradigma da filósofa alemã Hannah Arendt (1985) - segundo o qual os instrumentos da violência são mudos -, afirma que a violência tem a ver com aquelas ações humanas que podem ser exercidas mediante o excesso ou descontrole no uso da força física (ou dos seus inúmeros instrumentos) para manifestar uma força vital nas interações sociais, passíveis de controle democrático (1998, p. 35).

Entretanto, se para Zaluar (1999), a violência é, de certo modo, produto de
uma prática cultural, para Michel Maffesoli (1987)11, a violência que vai se estruturando na sociedade é vista através de uma perspectiva totalitária, isto é, não existiria um só lugar nas sociedades atuais sem manifestações de violência, já que esta seria onipresente e teria uma forma envolvente com suas modulações perpassadas por especificidades. Nessa concepção, é como se respirássemos, ininterruptamente, violência em todas as sociedades, funcionando como “uma estrutura constante do fenômeno humano que, em última análise, não deixa de representar um certo papel na vida em sociedade” (Maffesoli, 1987, p. 13).

O sentido da teoria maffesoliana ajuda a pensar que nas sociedades atuais existem, de fato, algumas relações sociais que se expressam por meio de práticas violentas, na medida em que essas práticas sociais vão contribuindo para estruturar no pensamento social as relações de força de dominação distintas de um grupo sobre outro mais fragilizado, como forma de justificar a ordem do discurso estatal que, simultaneamente, fomentam as práticas de violência e criminalizam
determinados setores da sociedade por exemplo, os pobres da Vila Irmã Dulce - que utilizam a luta social ou de classe como uma forma de resistência. A mítica desse tipo de violência emana do Direito e do próprio Estado, na medida em que qualquer movimento de resistência vindo da sociedade que se constitua numa ameaça ao monopólio legítimo da violência estatal, será sempre combatido por ser considerado pelo Estado como uma prática de violência ilegítima.

Para Arendt (1985, p. 3), o progresso técnico dos instrumentos da
violência atingiu um estágio onde nenhum objetivo político poderia corresponder ao seu potencial de destruição ou justificar o seu emprego real em conflitos armados. Isto é, experimenta-se um momento histórico cujos instrumentos e estratégias para exercer a violência estão sendo cada vez mais aperfeiçoados, a ponto do Estado e as suas instituições encarregadas de garantirem a segurança para a sociedade não conseguirem estabelecer meios e mecanismos de controle social, minimamente, democráticos e capazes de frear o crescimento da violência sob as suas mais diversas formas de manifestação, instaurando o medo social que é, midiaticamente, coletivizado e espetacularizado para a opinião pública.

Na verdade, essas concepções são importantes porque mostram o quanto à apreensão do fenômeno social da violência é complexa pois, sendo um produto de
diversas dimensões estruturais e conjunturais de uma sociedade, a sua dinamicidade segue o ritmo das mudanças na vida social. Por isso que, para conhecer e interpretar a complexidade de um fenômeno social dessa magnitude, é inevitável depender de critérios e pontos de vista.

O caráter de violência de uma ação, mesmo da mais explícita, como o assassinato de pessoas depende dos sentidos culturalmente
atribuídos. Matar em defesa da honra pode converter-se num ato normal, senão moral, de preservação de valores julgados acima da vida humana. Desse modo, atos violentos são encobertos em face do horizonte cultural onde se inserem enquanto outros são descortinados (Mül er Costa, 2003, p. 74).

Em outras palavras, as classes de homens diferentes observam as práticas sociais e as registram de modos, também, bastante diferentes; de acordo com os seus interesses e motivações; conforme aquilo que julgam pertinente para assimilação do seu grupo social. Contudo, vale ressaltar que a violência, historicamente, não se constituiu no único meio de comunicação e de negociação dos conflitos nas sociedades humanas.

Então, nem sempre o que a nossa razão identifica como sendo violência,
pode ser, indistintamente, generalizada para toda a sociedade, ou para uma comunidade específica, ou para uma determinada classe social. Pois, segundo Zaluar (1998, p. 28),

Além de polifônica no significado, ela é também múltipla nas suas
manifestações. Do mesmo modo, o mal a ela associado, que delimita o que há de ser combatido, tampouco tem definição unívoca e clara. Não é possível, portanto, de antemão, definir substancialmente a violência como positiva e boa, ou como destrutiva e má.

É bem verdade que o medo social causado pelas ações tidas como
violentas tem relação com as multidimensões estruturais e conjunturais que perpassam as suas manifestações, provocando, dentre outros problemas, um desarranjo social nas redes de solidariedade, de reciprocidade e de alteridade em qualquer sociedade por maior ou menor que seja a sua organização. O medo em si não é uma mera reação natural no homem, mas, socioculturalmente, apreendido e condicionado. Nesse sentido, o medo social da forma como é coletivizado pelos meios de comunicação, através da comoção pública, na tentativa de moldarem a informação para o receptor e amortizar a sua perplexidade diante das dores, das angústias e do trágico, termina por estimular na população constantes apelos às ações preventivas e repressivas por parte do Estado em nome de um totalitarismo do Direito, da Ordem Social e do Progresso da Nação.

Por outro lado, na contramão de uma tendência determinista ou do
hobbesianismo social, entende-se que, do ponto de vista biossocial, todo homem, enquanto uma espécie animal da natureza, é portador de um fator de agressividade do qual pode lançar mão diante das circunstâncias desfavoráveis, para garantir a sua sobrevivência material e a defesa de sua própria vida. Na vida social urbana, em função da complexidade inerente às relações sociais, os homens estão cada vez mais expostos a experimentarem uma atmosfera social constituída de confrontos e conflitos produzidos nas interações sociais como parte da lógica competitiva capitalista vigente.

As sociedades capitalistas apresentam atualmente o aspecto de uma sociedade disciplinar na qual as atividades humanas são programadas no tempo e no espaço, incidindo as relações de dominação até mesmo sobre o corpo do homem. O modo de produção da exclusão reproduz-se pelas altas taxas de desemprego, pelo aumento da pobreza, expressa no denominado “quarto mundo”, e na proliferação de comportamentos racistas. As sociedades capitalistas periféricas na América Latina ou na África mostram um quadro no qual a violência difusa, presente nas cidades e nos campos, expressa uma tecnologia de poder para a reprodução da desigualdade social e da exclusão (Tavares dos Santos, 1999, p.14-15).

Portanto, sob essas condições sociais todo homem em sociedade poderá ser submetido a estímulos externos favoráveis, independentemente de sua vontade e motivação, ao desencadeamento da sua potência agressiva contra outrem numa associação estímulo-resposta, cujos seus atos poderão ser objetos de uma representação que os caracterize como expressões de violência.

O objeto de uma representação faz parte de um contexto ativo e
concebido, pelo menos parcialmente, pela pessoa ou pelo grupo, enquanto prolongamento do seu comportamento. O estímulo e a resposta são, nessa ótica, indissociáveis: eles se formam ao mesmo tempo. Uma resposta não é estritamente uma reação a um estímulo. De certa forma, a resposta está na origem do estímulo, o que significa que este último é determinado em grande parte pela própria resposta. (...) O objeto é constituído de tal forma que seja consistente com o sistema de avaliação utilizado pelo indivíduo (Domingos nSobrinho, 1998, p. 118).

Desse modo, a interpretação que se faz de uma ação social
, em uma determinada época e lugar, que, comumente, denominamos de violência e lhes damos um sentido próprio conforme o contexto sócio-histórico no qual estamos inseridos, é uma representação social. Com isso, descarta-se que haja a possibilidade de qualquer reconhecimento científico de um gene determinante da violência no homem. Do contrário, todas as análises sobre a temática, obrigatoriamente, já partiriam de uma fundamentação com base no determinismobiológico. Ou seja, a violência, enquanto um objeto de representação de uma pessoa ou grupo de pessoas, é um fenômeno complexo que perpassa todo e qualquer convívio social e é apreendido e elaborado conforme as dimensões contextuais de cada sociedade.

A forma como se experimenta, se discute e se interpreta a violência depende, portanto, da classe social a que se pertence, das fontes de informações que se recorre, da imagem que se faz de si mesmo e dos outros, bem como se ver e como vêem o lugar onde se mora, já que tais percepções influem diretamente na maneira de se conceber e se apreender os sentidos ou representações das práticas violentas. Quando se representa uma determinada prática social como violenta,
trata-se, na verdade, de uma percepção de mundo elaborada dentro de uma lógica racional coletivizada, cuja realidade empírica experimentada e apreendida em um determinado contexto serve de suporte interpretativo para a construção do sentido da violência.

Nesse sentido, pensar em um conceito totalizante ou globalizante de violência, que seja capaz de dar conta de qualquer contexto social no qual se circunscreva, é uma tarefa intelectualmente inatingível, na medida em que são os sentidos ou representações de violência que assumem freqüentemente a forma inquietante de uma comoção pública, ou de uma guerra (in)justificada, ou ainda de um discurso de ordem estatal, ou de uma forma de resistência. Além disso, os sentidos ou representações de violência são, simultaneamente, perpassados por vários fatores estruturais e conjunturais que servem para estimular o medo social e justificar a utilização de instrumentos e mecanismos de controle social por parte do aparelho estatal, no intuito de assegurar-lhe o monopólio legítimo da violência.

Sem dúvidas, nos dias atuais, a sociedade brasileira tem experimentado
uma sensação amedrontadora de que a violência teria se instaurado, simultaneamente, em tudo e em todos ao nosso redor uma espécie degeneralização da violência produzindo, invariavelmente, um medo social que acompanha cada indivíduo em qualquer lugar. A questão é que a publicização de percepções e discursos diferenciados sobre a violência para a opinião pública, sem a preocupação em contextualizar crítica e historicamente a análise, de certo modo, tem contribuído mais para aumentar a disseminação do temor interpessoal no tecido social do que para atenuar a atmosfera de insegurança na sociedade, cuja suspeita ou desconfiança passou a ser o elemento básico para olhar o outro nas interações sociais no nosso cotidiano.

Nesse sentido, “o
s medos de ontem parecem abrigar, embrionariamente, os progressos de amanhã...” (Duby, 1998, p. 46), dando a entender que, de algum modo, experimenta-se um momento de banalização da violência, ou que, supostamente, estaríamos retornando a selvageria ou barbárie, numa espécie de involução culturalproduzida no presente.

A questão de fundo no debate atual sobre a temática não é saber se existe uma forma elementar de violência a ser descoberta entre os humanos, ou se a violência é uma questão de polícia ou de classe social, ou se efetivamente é possível falar de uma índole violenta inata aos homens, ou se a condição social é
motivação para a violência, ou se o culto ao medo “mesmo” uma ideologia, ou se existe a possibilidade de comprovação de uma determinação biológica da violência. Trata-se, isto sim, de saber até que ponto, entre os homens, os aspectos da violência foram sistematizados, ou ainda, até que ponto os sentidos ou as representações de violência apresentam marcas claras de vizinhanças nas diversas sociedades em determinadas épocas e circunstâncias.

Portanto, buscar a compreensão dos sentidos ou representações da violência que vão surgindo nos diferentes discursos e disseminados na opinião pública como produto das diversas formas de relações sociais, estabelecidas nas interações interpessoais e intergrupais, é uma tentativa mais promissora do que construir uma definição essencialista ou culturalista para explicar a violência e depois investigar se esta existe nas interações humanas em sociedade. Invariavelmente, é fato que, todo conceito de violência sempre trará consigo ambigüidades e contradições de seus autores, relacionando-a quase sempre, sinonimicamente falando, a agressividade ou a criminalidade; ou unicamente ao uso da força física, cuja origem é, em geral, vinculada a conflitos de interesses, ou a frustração, ou a coação exercida sobre outrem.

Mas a violência em si não é a expressão essencial das relações sociais,
isto é, não são as práticas de sociabilidade violenta ou a genética humana que determinam o sentido de violência, e sim, a maneira como cada grupo social experimenta e apreende a realidade social em que se expressam as suas próprias práticas de sociabilidade.

Conceitualmente, as
práticas de sociabilidade violenta são aquelas ações ou atos de agressividade humana que se constituem em uma modalidade particular do comportamento social uma espécie de habitus de um determinado grupo na sociedade, que se manifestam na multiplicidade de dimensões da violência social e política da contemporaneidade, cujas formas mais visíveis estão presentes no uso deliberado de uma ação física ou moral com força desproporcional e destruidora de um indivíduo ou grupos de indivíduos contra outrem, provocando a ruptura de possíveis limites de sociabilidade estabelecidos e o aparecimento de estímulos de negação da alteridade e das redes de solidariedade e de reciprocidade produzidos nas relações interpessoais ou intergrupais.

Porém, as
práticas de sociabilidade violenta não são ações ou atos naturais dos homens e generalizados na sociedade pois, de fato, são produtos da mutabilidade dos “processos simultâneos de integração comunitária e de fragmentação social, de massificação e de individualização, de ocidentalização e de desterritorialização” (Tavares dos Santos, 1999, p. 18) que constituem as novas relações de sociabilidade, cuja exclusão social e econômica é uma marca identitária das sociedades contemporâneas.

A multidimensionalidade, a imprevisibilidade e a pluricausalidade que perpassam o fenômeno da violência, associados à conotação negativa dada ao termo, têm, de certo modo, contribuído para a construção de reflexões e sentidos de
violência que, geralmente, enfatizam “a preocupa ão excessiva como os limites reconhecíveis, as identidades claras e as lógicas fechadas”, redundando quase sempre em apontar males a serem combatidos; ou em reificações e essencializações de diferenças; ou em dicotomização de mundos o civilizado e o incivilizado, o marginal (ilegal) e o legal, o excluído e o incluído (Zaluar, 1998, p.21).

Conforme observa Müller Costa (2003, p. 69):

(...) todas as sociedades humanas sustentam, em conformidade com a época e as circunstâncias, modalidades de agressividade, as quais
são recompensadas e legalizadas consagradas em leis ou banidas e depreciadas de acordo com as vantagens e desvantagens atribuídas e os hábitos sociais prevalecentes.

Com base na discussão sócio-histórica do conceito de violência exposto até aqui, conclui-se que o que se denomina comumente de violência pode ser caracterizada como sendo um fenômeno social complexo e universal que, perpassa, historicamente, todas as sociedades humanas, na medida em que sempre se fez presente na vida cotidiana dos homens, representado pela capacidade de agressão e de destruição da espécie Homo sapiens sapiens nas relações de sociabilidade com seus semelhantes.

A complexidade desse fenômeno social, portanto, relaciona-se tanto com
os seus contornos polissêmicos ou seja, o sentido que as práticas de sociabilidade violenta assumem em determinada época e lugar - quanto com as suas modulações isto é, as formas de manifestações, que são difundidas, histórica e culturalmente, nas sociedades humanas em função das ressingnificações e/ou as extinções dos mecanismos de controle rituais, informais e pessoais para o bem ou para o mal - que exerciam o impedimento à prática de uma sociabilidade violenta entre os homens.

Em síntese, o sentido que se dá ao fenômeno da violência tem a ver com a dinamicidade própria dos interesses, os valores, os hábitos, os costumes, as crenças, a ética, a moral, os confrontos e os conflitos de um determinado grupo social em sua época. Além disso, o sentido de violência pode ser institucionalizado
ou elaborado e difundido na sociedade como forma de negar a alteridade, a ruptura de redes de solidariedade e a afirmação da opressão, a exclusão, a segregação e a dominação através da força corporal, ou armada, ou simbólica em detrimento de um espaço público para a negociação democrática dos conflitos interpessoais e/ou intergrupais, não implicando tão somente em um caráter instrumental mas, também, uma racionalidade política específica."

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Fonte:
ARNALDO EUGÊNIO NETO DA SILVA: "A BRUXA MÁ DE TERESINA: Um estudo do estigma sobre a Vila Irmã Dulce como um “lugar violento” - 1998 - 2005". (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí para a obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas. Orientadora: Profª Drª Maria D‟Alva Ferreira de Macedo Co-Orientador: Profº Dr. Fabiano de Souza Gontijo)Teresina, 2005.

Nota:
A imagem (Revista "O Malho", edição de 1952) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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