“Verba testamentária”: um Brás Cubas sob o olhar médico



“O conto “Verba testamentária” foi publicado originalmente em 1882, no jornal Gazeta de Notícias e reunido no volume Papéis avulsos, no mesmo ano. A história de Nicolau é narrada por um “narrador onisciente neutro”, pois ele narra os fatos da vida da personagem sem intromissões diretas, deixando que prevaleça a situação vivida pelas personagens, embora o ponto de vista seja sempre o seu e não o delas. Partindo do tempo da escrita, narra os fatos que vão da morte da personagem a seu nascimento. Nicolau é um homem de posses que decide deixar em testamento a condição de ter seu caixão fabricado por um profissional tido como de má qualidade. O narrador parte desta cláusula excêntrica para explicar que, para além da magnanimidade de um defunto que vem do além “abençoar” aquele simples operário, está uma doença, uma patologia que conformou toda a vida da personagem e explicaria aquela disposição. Nicolau, desde muito cedo, demonstraria certa debilidade orgânica, que se manifesta por um sintoma não menos inusitado. Ele destrói os brinquedos que julga melhores que os seus e ainda agride os meninos que considera ou são considerados os mais bonitos e melhores alunos. Com a idade adulta, sua doença não o leva a agredir os que considera superiores, mas a dor e os embaraços físicos que sofre são uma constante. Seus pais morrem quando tinha por volta de 20 anos e sua irmã casa-se com um médico holandês, de modo que ela e o marido passam a ser os únicos parentes próximos que se propunham a amenizar a doença do rapaz. O narrador apresenta algumas situações da vida de Nicolau; profissionais, amorosas, domésticas, e até de entretenimento, que expõem claramente as diversas manifestações de sua “patologia” constitutiva, até culminar com a verba testamentária e o pasmo do cunhado por ver a escolha por um fabricante reles.

John Gledson (2006) assinala em Papéis avulsos o interesse de Machado de Assis em lidar com a identidade nacional. Passando por “Sereníssima república”, que representa as nossas práticas eleitorais corruptas, o autor mostra como os contos “O espelho”, “Verba testamentária” e “D. Benedita” tratam da identidade nacional através de identidades pessoais. Nesse sentido, Gledson centra sua análise, sobretudo, em “Verba testamentária” e em “O espelho”, procurando, inclusive, pontos de contato entre os dois contos. Para o autor, “Verba testamentária” é ainda mais significativo, pois possui demasiadas referências históricas para serem negligenciadas. O conto de fato abrange um período bem definido da história brasileira, ao passo que “O espelho” centra-se num único acontecimento da vida da personagem. Assim, “Verba testamentária” narra fatos que vão do final do século XVIII, Nicolau nasce em 1787, e vão até 1855, quando a personagem morre. “O que Machado faz aqui, bastante claramente, é dar-nos uma interpretação satírica da história dos primeiros anos da independência.” (GLEDSON, 2006, p. 77).

Por outro lado, “Verba testamentária” permite leituras distintas e nos dá pistas do posicionamento crítico de Machado de Assis em relação às concepções científicas da época. Não há dúvida da visão crítica do escritor sobre sua sociedade e os trabalhos de Roberto Schwarz (1977, 1990) e de muitos outros nos dão provas disso. Através da estilização da realidade social, Machado de Assis expõe a violência que perpassa a estrutura social. Publicado originalmente com o subtítulo “caso pathológico dedicado à escola de medicina”, a sátira ao comportamento patológico da personagem Nicolau, ironiza a pretensão da ciência ao imputar causas orgânicas a um comportamento, em grande medida, influenciado por causas sociais, fruto de uma determinada estrutura social. Pretende-se, assim, analisar a narrativa como uma crítica de Machado ao cientificismo do século XIX, bem como apontar para uma visão mais profunda da realidade brasileira que o escritor apresenta por meio da ironia.

O narrador principia o conto reproduzindo a verba testamentária que condiciona a fabricação do caixão de Nicolau e os desdobramentos de tal disposição, desde o despeito dos demais fabricantes ao estrondo que provocou na população. Como afirma Sidney Chalhoub (2003), em relação ao testamento do Coronel Vale, em Helena (1876) que, mesmo depois de morto, dispõe a seu bel prazer da vida dos vivos, colocando Helena no seio de sua família, exercendo um poder quase divino capaz de mudar os destinos dos que lhe são inferiores. Com isso, a determinação de Nicolau pode ser pensada da mesma forma, pois, quase unanimemente (somente os demais fabricantes não concordaram), sua ação foi vista com respeito e valorização, “aquela mão, saindo do abismo para abençoar a obra de um operário modesto, praticara uma ação rara e magnânima.” (ASSIS, 1997, v. 2, p. 357-358).

O que nos chama atenção, para além do poder extra-túmulo da personagem, é o esforço do narrador em justificar o porquê do esquecimento em que a vontade de Nicolau acabou caindo, muito embora tenha corrido pelos quatro cantos, chegando até às províncias. A ironia presente nessas linhas demonstra que a ação de Nicolau tem como causa o “desejo de nomeada”, que também afligia Brás Cubas, mais do que uma causa patológica como ele começa a descrever logo em seguida. Voltaremos a esse ponto.

O narrador “diagnostica” a personagem procurando explicar seu último ato como decorrência de um mal físico.

Sim, leitor amado, vamos entrar em plena patologia. Esse menino que aí vês, nos fins do século passado (em 1855, quando morreu, tinha o Nicolau sessenta e oito anos), esse menino não é um produto são, não é um organismo perfeito. Ao contrário, desde os mais tenros anos, manifestou por atos reiterados que há nele algum vício interior, alguma falha orgânica.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 358).

A “falha orgânica” – uma espécie de “complexo de inferioridade”, que origina uma reação violenta a qualquer possibilidade de sentir-se inferiorizado e que impele o menino a destruir os brinquedos dos outros, mas apenas os que lhe são superiores – é sutilmente colocada em xeque quando o narrador posiciona a personagem pai de Nicolau. Embora o isente da culpa, pois sempre repreende o filho e atribua a força ao “impulso interior” de Nicolau, o narrador, ao descrever o comportamento acima de suspeitas do pai, suscita-nos associações significativas com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), e que nos permitem questionar a causalidade puramente biológica da situação.

A primeira associação é o próprio sobrenome abreviado da personagem, que o narrador minimiza logo no início do conto ao tratar do caixão em que foi enterrado o “pobre Nicolau B. de C.”. Como o outro Brás Cubas, Nicolau também é filho de um “honrado negociante ou comissário”, possuidor de certa proeminência, mas o que mais nos atrai a atenção é o desejo de titulação tão peculiar aos aspirantes à nobreza do início do século XIX. Conforme John Gledson (2006), a prática de criar e vender falsas honrarias é peculiar a monarquias absolutistas e é um tema que Machado de Assis também apresenta em “O alienista”, através da tributação do uso de enfeites nos cavalos para angariar a verba necessária à construção da Casa Verde, o hospício de Itaguaí. Já em “Verba testamentária” o narrador, ironicamente, descreve a situação de falta de recursos para construção de um cais e o modo como o vice-rei, o conde de Resende, resolveu o problema. “Homem de estado, e provavelmente filósofo, engendrou um expediente não menos suave que profícuo: distribuir, a troco de donativos pecuniários, postos de capitão, tenente e alferes.” (ASSIS, 1997, v. 2, p.358).

Para Gledson (2006, p. 77), parafraseando o narrador, essa maneira “profundamente filosófica” de angariar fundos, depende do orgulho, da inveja e do gosto por uniformes vistosos. O autor chega a assinalar a posição do pai de Nicolau, mostrando sua situação como significativa de uma classe dependente, ávida por imitar a nobreza ou a alta burguesia, associando-o inclusive à postura do pai de Brás Cubas. Entretanto, o autor não desenvolve o argumento, mas nos dá pistas importantes para compreensão do comportamento “doentio” de Nicolau.

Roberto Schwarz (1990) apresenta a crítica que Machado de Assis faz ao Naturalismo inspirando-se nele para explicar a origem do caráter de Brás Cubas. Rememorando sua infância, o meio familiar e a educação que tivera, Brás, com toda sua volubilidade, afronta qualquer tipo ideal, ressaltando apenas os defeitos que se combinaram para sua formação, pautando-se nos postulados da ciência, inclusive a idéia de hereditariedade que ele percebe na melancolia recebida da mãe e na vaidade do pai. Contudo, como bem pontua o autor, esse tipo de descrição e desenvoltura, menos direta e atenta às escolas raciais, antes de significar um desejo de Machado de “atenuar ou idealizar”, ressalta sua crítica incisiva, apontando para as causas sociais que permitiram nascer a flor dos Brás Cubas.

[...] Machado quer bater o Naturalismo no terreno mesmo da descrição exata, do rigor explicativo, da percepção do escabroso, ainda que sem quebra de decoro. Assim, aos determinismos toscos de clima e raça ele opõe a força deletéria de formas culturais atrasadas, as quais estuda em monografias de poucas linhas, muito substanciosas, onde se combinam a intenção localista e o espírito analítico e crítico.
(SCHWARZ, 1990, p. 123).

Assim, o autor ressalta a influência social transmitida pelo que há de pior no círculo doméstico que cerca Brás Cubas, herança mais que genética de um comportamento de classe nos seus diferentes matizes. Da mãe submissa ao tio libertino entre as escravas e da superioridade de aparência na figura do tio cônego, mais afeito ao culto que ao sentido espiritual, nota-se que, “O conjunto forma um ambiente social, dotado de força causadora, a ser contrastado com a causação quase física, e por isso mesmo ‘científica’, proposta pelo Naturalismo”. (SCHWARZ, 1990, p. 124, grifo do autor). O que temos no conto? Retomando a determinação do vice-rei, o pai de Nicolau percebe a importância de se figurar entre os grandes nomes, tal qual o pai de Brás Cubas, que criou uma genealogia nobre para explicar o nome Cubas, que lhe cheirava “excessivamente a tanoaria” (ASSIS, 1978, p. 18).

Divulgada a resolução, entendeu o pai do Nicolau que era ocasião de figurar, sem perigo, na galeria militar do século, ao mesmo tempo que desmentia uma doutrina bramânica. Com efeito, está nas leis de Manu, que dos braços de Brama nasceram os guerreiros, e do ventre os agricultores e comerciantes; o pai do Nicolau adquirindo o despacho de capitão, corrigia esse ponto da anatomia gentílica.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 358-359).

A ironia fina desta passagem aponta para o que assinalamos na análise empreendida por Roberto Schwarz (1990). Antes da causa científica para a doença de Nicolau, não há como ignorar a causa social, insinuada neste trecho, e por isso mesmo de grande importância. Hipótese reiterada na passagem em que, outro comerciante – que o narrador ressalta ser familiar e amigo do pai de Nicolau, mas que em tudo compete com ele – decide comprar a patente de alferes para seu filho de apenas sete anos, para compensar o fato de ter adquirido o título depois do concorrente. A narração do fato culmina com a primeira grande exposição da “inveja patológica” de Nicolau.

Tudo correu em segredo; o pai de Nicolau só teve notícia do caso no domingo próximo, na igreja do Carmo, ao ver os dous, pai e filho, vindo o menino com uma fardinha, que, por galanteria, lhe meteram no corpo. Nicolau, que também ali estava, fez-se lívido; depois, num ímpeto, atirou-se sobre o jovem alferes e rasgou-lhe a farda, antes que os pais pudessem acudir. Um escândalo
. (ASSIS, 1997, v. 2, p. 359).

Nesse sentido, podemos pensar a formação de Nicolau com base na idéia de habitus, pois como “lei imanente”, sedimentada nos agentes em sua educação primeira (BOURDIEU, 1994), evidencia que seu comportamento não advém de um mal interno e/ou biologicamente definido. Seu pai e o amigo comerciante também têm lá seu comportamento “patológico”, que os impele a buscar por falsas honrarias, bem como a se mostrarem ávidos por ostentar uma superioridade qualquer, tal qual o pai de Brás Cubas, capaz de inventar uma genealogia a fim de figurar entre os grandes nomes do tempo, sendo o mais interessante a sua crença sincera na própria invenção.

Depois do incidente, Nicolau apanha muito e é trancado em casa, e o narrador refere a “normalidade” do comportamento da personagem fora daquele “sestro mórbido”, mas após algum tempo, o pai decide colocar Nicolau na escola.

– Deixe-o comigo, disse o professor; deixe-o comigo, e com esta (apontava para a palmatória)... Com esta, é duvidoso que ele tenha vontade de maltratar os companheiros. Frívolo! Três vezes frívolo professor! Sim, não há dúvida, que ele conseguiu poupar os meninos bonitos e as roupas vistosas, castigando as primeiras investidas do pobre Nicolau; mas em que é que este sarou da moléstia? Ao contrário, obrigado a conter-se, a engolir o impulso, padecia dobrado, fazia-se mais lívido, com reflexos de verde bronze; em certos casos, era compelido a voltar os olhos ou fechá-los, para não arrebentar, dizia ele
. (ASSIS, 1997, v. 2, p. 359).

Essa descrição vai de encontro com o tipo de educação que a medicina social visava combater. Como afirma Jurandir Freire Costa (1999, p. 71), a higienização da família colonial objetivava formar o futuro cidadão e reduzir o poder do patriarca em favor do poder do Estado. As idéias científicas européias, revestidas com a aura da verdade e da modernidade, eram utilizadas pelos higienistas como forma de se infiltrar na família sem serem vistos como inimigos. Assim, mostravam que era por ignorância, mas também irresponsabilidade, quando não acatavam as prescrições médicas, que os pais e educadores erravam na formação do indivíduo. Foi através do desconhecimento que a medicina pôde dominar a família, tal qual no caso da loucura, criando infinitas classificações. “Os higienistas, para manterem viva a situação de tradutores exclusivos do obscuro, vão ser obrigados a inventar, cada vez mais, fatos, distinções e classificações novas do corpo dos indivíduos e do sentimento da família”. É exatamente a essa ignorância que se refere o narrador em relação ao comportamento de Nicolau, uma vez que o “impulso” do rapaz foi apenas parcialmente contido pelo tipo de educação “atrasada” do professor.

Por outro lado, se deixou de perseguir os mais graciosos ou melhor adornados, não perdoou aos que se mostravam mais adiantados no estudo; espancava-os, tirava-lhes os livros, e lançava-os fora, nas praias ou no mangue. Rixas, sangue, ódios, tais eram os frutos da vida, para ele, além das dores cruéis que padecia, e que a família teimava em não entender.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 359-360).

O garoto torna-se homem, mas sua patologia não o abandona. Se agora é capaz de poupar os outros de suas agressões, seu sofrimento não se extinguiu, apenas tem outras causas e gera outros tipos de reação.

Tinha ocasiões de cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto da boca um fio quase imperceptível de espuma. E o resto não era menos cruel. Nicolau ficava então ríspido; em casa achava tudo mau, tudo incômodo, tudo nauseabundo; feria a cabeça aos escravos com os pratos, que iam partir-se também, e perseguia os cães, a pontapés; não sossegava dez minutos, não comia, ou comia mal.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 360).

Seu sofrimento é minuciosamente descrito pelo narrador, que oscila entre o tipo de narrador neutro e o intruso, pois apresenta uma percepção maior da situação que a personagem, sendo inclusive, durante a maior parte da narrativa o único a diagnosticá-lo como doente. Contudo, novamente ele insinua causas e sintomas de um mal antes social que orgânico. O fato de um membro da elite descontar seus “infortúnios” em seres que considera inferiores, como escravos e cães, colocados na descrição do narrador em pé de igualdade, denota uma crítica sutil de Machado de Assis às teses médicas profusamente difundidas naquele contexto, preocupadas em disciplinar os indivíduos da elite, sem questionar a violência com que subjugavam os indivíduos das outras classes sociais, tidos como biologicamente inferiores, reiterando sempre os privilégios de classe, raça e gênero.

Interessante notar que o cunhado de Nicolau, médico holandês, é a única personagem a encarar o sofrimento de Nicolau como derivado de uma doença. Esse tipo de conceitualização ao relacionar físico e moral permitiu à medicina ater-se ao corpo e ao sentimento, afirmando que uma lesão física surtia efeitos na emoção do indivíduo e vice- versa. “A noção de ‘paixão’ estabelecia o vínculo material e teórico entre os dois fenômenos e legitimava a extensão da ação médica ao comportamento e às emoções.” (COSTA, J., 1999, p. 142). Várias emoções são fontes de desequilíbrio, colocando a saúde do indivíduo em perigo. Os exemplos descritos por Jurandir Freire Costa (1999), encontrados em teses médicas, ainda na primeira metade do século XIX, poderiam ser associados ao comportamento de Nicolau. O autor de uma dessas teses que discorre sobre as emoções, ao tratar da ira, acreditava que esta seria capaz até de matar, gerando hemorragias e convulsões, entre outros males. Já o zelo (ciúme) causa um espasmo geral e origina a dissimulação e a inveja. Diagnóstico perfeitamente adequado a Nicolau, como nas ocasiões em que, de “lívido”, ia a “verde bronze”. Além dessas manifestações, havia situações crônicas que afligiam as pessoas, seja pela força ou pela fraqueza, e somente ao médico caberia medir o grau de normalidade das paixões, “[...] pelo que o médico deve exercitar-se em ler no mostrador do coração os arcanos que o pudor, a honra, a pusilanimidade ou o crime buscam em não ocultar aos olhos de um atento e versado fisionomista.” (FIGUEIREDO, 1836, p. 4-5 apud COSTA, J., 1999, p. 143, grifo do autor). Tal qual o cunhado de Nicolau diagnostica e prescreve.

Na opinião deste, a moléstia do Nicolau estava descoberta; era um verme no baço, que se nutria da dor do paciente, isto é, de uma secreção especial, produzida pela vista de alguns fatos, situações ou pessoas. A questão era matar o verme; mas, não conhecendo nenhuma substância química própria a destruí-lo, restava o recurso de obstar à secreção, cuja ausência daria igual resultado.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 361).

A “descoberta” do verme estava em sintonia com um dos modos como a medicina entende a doença e que, segundo Georges Canguilhem (1995), ainda marca o pensamento médico. Assim, a doença é vista como um objeto estranho que entra e sai do corpo humano. Mas, no caso do Nicolau, como impedir tal secreção? E aqui entra a ironia machadiana satirizando o diagnóstico médico, que ao mesmo tempo naturaliza atitudes e comportamentos de uma elite bem brasileira. Logo, é necessário fazer Nicolau sentir-se o mais superior dos homens. Aí entram várias receitas: a noiva mais bela, um jornal forjado apresentando notícias agradáveis e, se possível, com louvores ao doente, nome em etiqueta de modista famosa, cartas de amor anônimas, enfim, tudo o que tornasse Nicolau o mais alto membro de sua classe social, uma verdadeira prescrição médica da “Teoria do medalhão”.

De acordo com John Gledson (2006), a identidade individual de Nicolau representaria a identidade nacional brasileira. Assim, ao associar a narrativa ao conto o “O espelho”, ressalta os símbolos históricos que Machado de Assis acentuaria, em ambos, sinalizando para a questão de uma identidade nacional. Em “Verba testamentária”, o impasse de Nicolau mostra sua relação problemática com modelos que aceita e rejeita. Estendendo sua análise para além do aspecto psicológico, Gledson pauta-se nas referências históricas recorrentes no conto e nos dá uma interpretação mais sociológica do fato. Assim, a aceitação dos modelos faz parte de uma sociedade de passado colonial, mas a rejeição implica num esforço de ser independente e original, situação que, no limite, reitera o poder simbólico desses mesmos modelos.

Num sentido, portanto, “Verba testamentária” pode ser interpretado muito convincentemente como a história do aparecimento – sem dúvida problemático nessa altura – de uma consciência nacional não só no contexto dos acontecimentos políticos, mas também no âmbito mais extenso da história intelectual e literário da nação
. (GLEDSON, 2006, p. 86).

Mesmo afeitos à interpretação da personalidade individual como metáfora de uma identidade nacional, não podemos negligenciar os pontos de contato entre Nicolau B. de C. e Brás Cubas. Além da origem e da genealogia similar, essas duas personagens nos dão mostras de um comportamento de elite, autoritário e extremamente violento para com os que, de alguma forma, lhe são inferiores; e complacente, e até reverente, ao que considera superior. A interpretação mais detalhada dos comportamentos de Nicolau permite-nos encontrar sentidos no conto machadiano que podem sinalizar para uma visão crítica não só dos acontecimentos históricos da primeira metade do século XIX, mas do momento de sua escrita. Como o próprio Gledson assinala, Papéis Avulsos, publicado um ano depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), possui, como o romance, uma “energia, acima de tudo, satírica”. Assim, sua sátira reporta-se ao momento presente, bombardeado pela crença na ciência, sendo que sua ironia é muito mais significativa, quanto mais nos detemos à urdidura do conto. A sátira que Machado de Assis apresenta não aparece isolada, pois envolve o que está implícito nas explicações científicas em voga.

O cunhado médico, já intrigado com a possibilidade de uma doença, acredita na mudança de clima como paliativo e sugere ao “paciente”, que entre na diplomacia. Nicolau aceita a proposta e procura o ministro de estrangeiros. Todavia, a situação do rebuliço causado pela segunda queda de Napoleão, que presencia, impede-o.

A figura do ministro, as circunstâncias do momento, as reverências dos oficiais, tudo isso deu um tal rebate ao coração de Nicolau, que ele não pôde encarar o ministro. Teimou, seis ou oito vezes, em levantar os olhos, e da única em que o conseguiu, fizeram-se-lhe tão vesgos, que não via ninguém, ou só uma sombra, um vulto, que lhe doía nas pupilas, ao mesmo tempo que a face ia ficando verde. Nicolau recuou, estendeu a mão trêmula ao reposteiro, e fugiu.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 360).

Já discutimos na seção 4.3, na análise de “O enfermeiro”, a “filosofia da ponta do nariz” de Brás Cubas, na qual, o indivíduo centra-se em si mesmo e subordina tudo o mais a seus próprios interesses. Aqui a vemos aplicada plenamente. A diferença está na perspectiva de quem a vê. Se Brás Cubas a explica e justifica, Nicolau a exercita, mas sob o olhar de fora, tanto de um narrador onisciente, mas também do médico, que já desconfia de uma falha orgânica. Vemos aqui a explicação ou justificativa científica para um fenômeno largamente apresentado pelos membros da elite brasileira. A ironia fina está aí. No momento em que Machado de Assis descreve um tipo semelhante a Brás Cubas, mas visto pelo olhar médico, o comportamento condenável de visar apenas seus interesses é justificado pela ciência como resultado de uma afecção orgânica. O paliativo é encontrado pelo próprio Nicolau, que escolhe por amigos os tipos mais vulgares. Com eles, não padecia, não olhava para o próprio nariz, mas não porque ele os visse como seus iguais.

Além disso, não só eles lhe poupavam a natural irritabilidade, como porfiavam em tornar-lhe a vida, se não deliciosa, tranqüila; e para isso, diziam-lhe as maiores finezas do mundo, em atitudes cativas, ou com uma certa familiaridade inferior. Nicolau amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a droga que lhe restitui a saúde [...].
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 361).

Esse trecho é claro. A “necessidade” de se olhar para o próprio nariz (que em Nicolau, é sinônimo de sofrimento físico) é suprida quando se vale de as prerrogativas de poder, trazendo para si as “naturezas subalternas”107. Sua posição na hierarquia social é assim reafirmada. Na forma de habitus incorporado, mesmo quando suas práticas aparentemente contradizem seu posicionamento, Nicolau traz em si as disposições de sua classe social que, embora não decorram de sua obediência às regras estabelecidas e prescritas por seu cunhado, acabam reafirmando a sua posição na estrutura social.

Machado de Assis nos mostra, então, como o discurso científico é utilizado para justificar um comportamento de classe à brasileira, que agride os escravos para em seguida tratá-los com “alma de patriarca” e que “acaricia paternalmente” as “naturezas subalternas”, cuja subalternidade não só justifica, mas também reforça. Aí está a sátira de um escritor crítico de uma sociedade marcada pela violência de classe, raça e gênero, mas que não se tira ao “otimismo triunfante” dos que crêem na ciência, na modernidade como panacéia apta a corrigir os males sociais fortemente arraigados. “O convívio regular, articulado em profundidade, entre os aspectos iníquos da sociedade brasileira e os seus lados modernos e refinados está no centro da literatura machadiana.” (SCHWARZ, 1997, p. 36).

Com o tempo os mecanismos prescritos pelo médico-cunhado perdem o efeito e o Nicolau começa a achar tantos elogios um exagero. Morre a mulher, envolve-se novamente em política e a deixa com a Maioridade. Completamente tomado pela doença, Nicolau sai pouco e, nas poucas vezes em que vai ao teatro, sofre com o simples ruído dos aplausos. Depois começa a descuidar-se e passa a contratar os serviços dos mais ínfimos profissionais, inclusive para seu caixão, motivo de profunda indignação por parte do cunhado. No final, o narrador apresenta o diagnóstico do cunhado, ironizando-o. “A secreção do baço tornou-se perene, e o verme reproduziu-se aos milhões, teoria que não sei se é verdadeira, mas enfim era a do cunhado.” (ASSIS, 1997, v. 2, p. 363).

O conto termina com a indignação do cunhado ao saber da disposição do falecido. Quase como uma anedota, este conto expõe a força da crítica machadiana aos preceitos cientificistas. Por meio da sátira, o escritor representa os membros da elite brasileira na figura de Nicolau, e acaba por sintetizar a relação que este grupo estabelece com a ciência, de modo a deixar entrever, como os postulados científicos são utilizados para justificar uma ordem social historicamente pautada na desigualdade e mantida com o uso da violência. Dado o momento histórico e o papel que as “verdades científicas” passam a desempenhar a partir de então, o que se pode perceber é que elas acabam por assumir um importante papel de justificação e mesmo de naturalização das hierarquias sociais e da própria violência."

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Fonte:
ELIANE DA CONCEIÇÃO SILVA: ESTUDOS” DA VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em sociologia. Linha de pesquisa: Cultura e ideologia Orientador: Prof. Dr. Milton Lahuerta Bolsa: CNPq/Fundação Biblioteca Nacional). Araraquara – S.P., 2008.

Nota
:
A imagem ( Augusto Malta: Machado de Assis aos 67 anos com Joaquim Nabuco 1906: Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Fotos antigas de São Paulo - XVI


mais um pouco da belíssima história de São Paulo, através de fotografias publicadas ao longo dos séculos XIX e XX, como as que seguem.

A Avenida São João numa chuvosa noite de 1934


Centro de São Paulo, em 1908


Albergue de imigrantes, em 1908


O Largo da Luz por ocasião da chegada de Epitácio Pessoa à capital, em 1921


Largo da Sé, em 1890
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Fonte:
Jornal Secolo, 15/6/1908 (imagem: 3),
Jornal Corrier de I etat de St Paul, Le 1/4/1908 (imagem: 2),
Revista "A Cigarra", edições de 1921 e 1934 (imagens: 1 e 4), todas disponíveis digitalmente no site do Arquivo Público do Estado de São Paulo
Diário do comercio: 27-29 de agosto de 2011 (imagem 5).

Humanitismo: um sorriso para o nada



“Para compreender o Humanitismo e sua relação com a obra do defunto autor, são estritamente necessários dois passeios: um pela visão da crítica literária sobre essa “doutrina” e outro, sobre as filosofias e teorias científicas que aparentemente interagem com o princípio humanitas.

Em Roteiro da consagração, Ubiratan Machado reúne alguns textos que foram publicados sobre as Memórias em 1881. Urbano Duarte e Abdiel (pseudônimo sem identificação) apontam para o caráter “altruísta” do amigo de Brás (2003, pp.133-7). A biógrafa Lucia Miguel-Pereira, em 1936, aproxima o pensamento de Machado da filosofia de Quincas e repele a idéia de paródia ao pensamento de Comte:

O seu nome (humanitismo), que faz pensar numa troça com o positivismo, é mais um piparote no leitor. Escondendo-se atrás dele, e da loucura do Quincas Borba, Machado pôs na teoria muito da sua concepção de vida. É o delírio transposto para o humorismo
. (1936, p.226)

Esses julgamentos, todavia, caíram por terra. Analistas contemporâneos são praticamente unânimes ao afirmar que o humanitismo é de fato uma troça ao positivismo e não mais nenhuma referência ao suposto altruísmo do grande pensador. Mas, para este estudo, importa em princípio a equiparação que Lucia faz do delírio ao princípio humanitas.

Antonio Candido retoma a análise de alguns críticos, sobre essa “filosofia”, centrada na sátira ao pensamento comtiano “e em geral ao naturalismo filosófico do século XIX, principalmente sob o aspecto da teoria darwiniana da luta pela vida com a sobrevivência do mais apto”, mas salienta que “é notória uma conotação mais ampla, que transcende a sátira e vê o homem como um ser devorador [...]. Essa devoração geral e surda tende a transformar o homem em instrumento do homem [...]” (1970, p.29).

Apresentam-se, portanto, duas novas idéias que tornam um pouco mais complexa a relação burlesca entre positivismo e humanitismo: uma possível similaridade entre o delírio e a filosofia do Quincas e o fato, como aponta Candido, de que algo sério para além da jocosidade aparente. Não se deve esquecer que, ao lado do sistema de Comte, os analistas literários também apontam a crítica ao evolucionismo de Darwin.

Bosi parece corroborar a biógrafa ao expor que
a vigência da dor em todos os seres deste mundo aparecia no delírio de Brás Cubas como uma fatalidade sem consolo nem remissão, pois a indiferença bruta da Natureza se prolongava na crueza da história dos homens em sociedade. No mesmo duro regime alegórico, Humanitas, objeto da filosofia de Quincas Borba, quer sobreviver e reproduzir-se, matando e devorando para alimentar-se, ignorando cegamente os vencidos e distribuindo batatas aos vencedores de uma eterna struggle for life. [...] É possível que a fonte desta intuição da existência, o autor a tenha bebido da doutrina de Schopenhauer [...] (1999, p.70)

Muitas reflexões sobre o humanitismo já foram feitas e inúmeras questões ficaram no ar. A filosofia estaria em consonância com o pensamento do autor ou seria o contraponto a sua visão de mundo? Ela se encontra em harmonia com a obra ou a ela se opõe? Até agora a exposição acima sugere apenas que o sistema de Quincas possui alguma semelhança com o teor das Memórias póstumas e, de acordo com Bosi, que o pensamento schopenhauriano se coaduna não somente com o delírio (como foi demonstrado neste capítulo), mas provavelmente também com o princípio humanitas.

Borba, tomado pela loucura, morre “jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire” (p.303). Leonardo Vieira de Almeida, no ensaio “A questão da biblioteca em Memórias Póstumas de Brás Cubas”, apresenta mais um ângulo do prisma:

Tal referência à obra Cândido ou o otimismo, de Voltaire, é elucidativa do caráter da filosofia do Humanitismo. A personagem Pangloss, filósofo que procura ensinar ao jovem discípulo ser esse o melhor dos mundos possíveis, é concebido por Voltaire como um ataque direto ao sistema lógico de Leibniz
. (2006, p.140)

Brás num momento de fúria diz ao amigo: “estou farto de filosofias que me não levam a coisa nenhuma” (p.286). O defunto autor conclui que “nessa ocasião” o Voltaire de bronze que tinha na sala de estudo “parecia acentuar o risinho de sarcasmo”. (p.286). A presença do satírico filósofo setecentista é mais um dado que se acumula aos demais na tentativa de desvendamento da doutrina de Quincas. Mas que relação intrincada se estabelece com tantos nomes do pensamento ocidental: Comte, Darwin, Schopenhauer, Voltaire, Leibniz? Inicia-se, então, o pequeno e imprescindível passeio pela filosofia e pela ciência. Leibnitz (1646-1716) desenvolveu sua “doutrina do otimismo”. No prefácio de A vontade de amar, de Arthur Schopenhauer, Torrieri Guimarães ressalta que, para esse otimista, “considerando o mundo em seu conjunto, tudo está bem em relação ao todo” (s/d, p.6).

O zombeteiro Voltaire, de acordo com Guimarães, tomou “do filósofo alemão apenas o mote central de que ‘tudo corre pelo melhor no melhor dos mundos possíveis’ e “ridicularizou-o amplamente no seu ‘Candide’, através do engraçadíssimo dr. Pangloss. [...] Antes de Schopenhauer, portanto, Voltaire encarregara-se de demolir o otimismo” (s/d, p.7)

No entanto, o filósofo pessimista de raiz kantiana retoma o irreverente escritor francês para satirizar não apenas Leibnitz, mas também seu contemporâneo e maior antagonista: Hegel.

Edgar Morin, em O homem e a morte, ressalta que “enquanto para Kant o mundo exterior, tal como é sentido e representado, é um produto do homem, na perspectiva hegeliana é um produto para o homem”. (1970, p.243). O pensamento de Hegel e o de Schopenhauer sobre a morte e a supremacia da espécie possuem similaridades, diferenciadas apenas pelo olhar que cada um lança sobre o mesmo “objeto”, como destaca Morin:

A morte é sempre derrota de um particular e vitória de um universal. Hegel compreendeu perfeitamente a lei das espécies animais, onde o universal genérico triunfa do indivíduo particular. Mas em vez de ironizar amargamente, como Schopenhauer, acerca da irrisão em que a espécie coloca o indivíduo, aprova com toda a sua dialética essa morte necessária
[...] (1970, p.245)

Enquanto o filósofo do pessimismo se torna melancólico diante da falta de sentido da vida que caminha em direção ao nada, seu adversário o outro lado: o do progresso desempenhado pela natureza, o do universal sobrepondo-se ao particular, suscitando assim uma evolução contínua. De acordo com Morin, Hegel “chega [...] ao extremo de se regozijar com guerras que, despertando a morte, despertam também a universalidade” (1970, p.247).

Genésio de Almeida Moura, no prefácio dos Aforismos schopenahurianos, explica que o filósofo só obteve reconhecimento quando se encerrou “a fase humanístico-racionalista, que culminava no idealismo hegeliano” (1956, p.17).

Soma-se ainda a todas essas informações prévias a clara exposição de Bosi sobre a teoria da evolução da espécie e o positivismo de Comte:

nas teorias evolucionistas do século XIX todas essas marcas negativas da condição humana [...] eram redimidas e ganhavam explicações “racionais” no curso de um processo contínuo de aperfeiçoamento da espécie. Em última instância, os mais fortes e os mais aptos já tinham vencido e continuariam a vencer merecendo o prêmio final da própria sobrevivência: batatas, pelo menos. De modo similar, [...] o positivismo previa o melhoramento coletivo que o estágio científico da Humanidade teria inaugurado depois de superadas as fases teológica e metafísica da História
(1999, pp.155-6)

Apresentam-se assim, grosso modo, dois pólos antagônicos do pensamento ocidental que são as referências de humanitas. De um lado, os “otimistas” ou “idealistas”: Darwin e o evolucionismo, Comte e o positivismo, Hegel e o progressismo e Leibnitz e o seu “melhor dos mundos possíveis”; de outro, os satíricos, Voltaire e Schopenhauer que, diante do mesmo quadro, vislumbraram a tragicomédia da vida humana.

No capítulo 91, Quincas envia ao amigo uma carta em que apresenta sumariamente sua doutrina. Ele adianta que ela “suprime a dor” e que ele tinha “gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade” (p.240). Ora, Schopenhauer retoma Voltaire para defender que só a dor é real e a felicidade é ilusória. O mundo, para o filósofo, é ainda representação, de modo que o homem jamais se apropria da verdade (ou da realidade), mas apenas da idéia que faz dela. Essa felicidade inalcançável se encontra no delírio de Brás (assim como o oscilar schopenhauriano entre a dor e o tédio):

A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos. [...]. Então o homem, flagelado e rebelde, corria [...] atrás de uma figura nebulosa e esquiva [...] e essa figura, nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se como uma ilusão
. (pp.123-4)

Portanto, neste aspecto, o humanitismo se opõe ao delírio assim como ao pensamento de Voltaire e do filósofo pessimista. Quando Borba explica ao amigo a base de sua filosofia, afirma que “a vida é o maior benefício do universo [...] uma desgraça: é não nascer” (p.265). O defunto conclui, no capítulo das negativas, que seu saldo foi positivo porque não transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” (p.304). Borba saúda a vida, enquanto Brás, desafrontado dela, a vê como um mal. Novamente, apresenta-se uma oposição categórica.

O humanitista também faz da guerra um bem em suposta sintonia com a concepção hegeliana e em contraposição a Schopenhauer: “a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar de dedos de Humanitas.” (p.266). Ao final da exposição, conclui, em “concordância" com as filosofias do otimismo, que Pangloss “não era tão tolo como pintou Voltaire” (p.267).

Posteriormente, Quincas, procurando reerguer o amigo, afirma que “vida é luta” (p.287), sentença exemplificada no espetáculo da briga de cães por um osso a que o filósofo assiste com êxtase. Ao ponderar sobre a competição entre homem e cão, conclui que disputar a comida “aos outros homens é mais lógico, porque a condição dos contendores é a mesma, e leva o osso o que for o mais forte” (p.288). Sem dúvida a teoria evolucionista aí se encontra, assim como a valorização do bélico, do “homem devorador”, a que se refere Antonio Candido.

Para Quincas, ainda, a terra existia para recreio do homem (p.267) enquanto no delírio se apresenta uma existência tormentosa em consonância com o pensamento crítico de Schopenhuer: “o mundo vai mal: os selvagens se entredevoram e os civilizados enganam uns aos outros, sendo a isso que se chama a marcha do mundo” (1956, p.182).

No mundo rege a lei do mais forte, as disputas são constantes e há um princípio que governa os indivíduos. Esses tópicos fazem parte tanto do capítulo em que o protagonista delira quanto da filosofia humanitista. Todavia o olhar é completamente outro. Enquanto no desvario de Brás, há um “sentimento amargo e áspero” que brota da percepção do absurdo da vida, das mazelas do mundo, na “filosofia” do Quincas a visão é otimista, idealista, progressista, positivista, como se, diante dos mesmos objetos, dois posicionamentos antagônicos se apresentassem.

Desta forma, ao que parece, os pontos para os quais os olhares se voltam são os mesmos, mas as conclusões são divergentes. O humanitismo, portanto, se opõe ideologicamente ao delírio e à própria obra, embora se erija sobre tópicos análogos.

Sobre os otimistas, o filósofo de O mundo como vontade e representação deu seu parecer que se coaduna perfeitamente com o princípio humanitas: “A vida para eles não tem fim algum fora de si mesma, e o mundo parece-lhes um lugar de delícias, perfeitamente organizado. [...] é a isto que chamam com frases retumbantes e enfáticas o progresso da humanidade” (s/d, p.133).

Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, a vida (ou a Natureza) tumular, indiferente à sorte das criaturas, pois delas se alimenta, é, em verdade, morte.

Quincas Borba, como o parvo Dr. Pangloss, sorri tolamente para o nada.
Leio sobre os grandes crimes e remexo-me nas trevas humanas. Provavelmente também eu uma criminosa em potencial. E quem não o é? Mexi-me demais no mundo das paixões e agora recolho-me para lamber minhas feridas ainda quentes de sangue. Não, não estou fazendo confidências. Nunca a úmida confidência. E sim o seco depoimento de uma mulher sem ilusões. Pouco me resta, pouco tenho a perder. Estou livre. É uma liberdade grave e muda. Também com certa tristeza que existe na liberdade. Mas sinto que coisas me prendem ao mundo e espero morrer sem que essas coisas me sejam tiradas. Não quero viver muito por medo de dar tempo de me cortarem em pedaços. (Lispector, s/d)"

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Fonte:
CRISTIANE TEIXEIRA DE AMORIM: "FACES DA MORTE NA PROSA BRASILEIRA: Lucíola, Memórias póstumas de Brás Cubas e A hora da estrela". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura brasileira). Orientadora: Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens). Rio de Janeiro, 2007.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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Fotos antigas de obras do Estado de São Paulo - V


Um pouco mais da história visual de obras que marcaram o processo urbanístico de cidades do Estado de São Paulo, como as que seguem.

Revestimento da Avenida Jabaquara, na cidade de São Paulo, em 1928


Trecho da Estrada de Osasco, em 1928


Estrada de Rodagem São Paulo - Rio de Janeiro. Vê-se um trecho entre Jacareí e Cachoeira, em 1924


Outro trecho entre Jacareí e Cachoeira, da Estrada de Rodagem São Paulo - Rio de janeiro, em 1924


Washington Luís, à época governador do Estado de São Paulo, inaugurando a Estrada Elétrica de Votorantim, em Sorocaba, no ano de 1922
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Fonte:
Revista "A Cigarra", edições de 1922, 1924 e 1928, disponível digitalmente no site do Arquivo Público do Estado de São Paulo

Dom Casmurro: O leitor entra no jogo



“Ainda na trilha dos narradores oblíquos e dissimulados, para usar uma expressão de José Dias, ou, em outras palavras, enganosos, que demandam do leitor a máxima atenção, sob o risco de ser ludibriado, há Dom Casmurro.

No entanto, curiosamente, nem sempre foi assim. O romance sobre o ciúme, o valor das aparências, do verossímil antes da verdade, começou a ser lido dessa forma somente a partir dos anos sessenta do século XX, ainda que, à época da publicação, José Veríssimo, agudamente, tenha feito certas ressalvas quanto ao narrador, sem aprofundá-las.

Foi a pesquisadora americana Helen Caldwel , em 1960, quem primeiro sistematizou a dúvida sobre a existência ou não do adultério, “uma vez que a culpa ou inocência de Capitu dependem inteiramente do testemunho de Santiago, cujo ciúme, por si só, já torna seu testemunho suspeito” (CALDWELL, 2002, p. 32).

No seu estudo, ela mostra consciência a respeito das questões que envolvem a recepção do romance de Bentinho e Capitu:

Embora
Dom Casmurro tenha sido publicado em 1900, nenhuma análise abrangente a respeito foi feita ainda. Os estudiosos de Machado de Assis que mencionaram este romance assumiram, praticamente sem exceção, a heroína como culpada, mas poucas indicações de que algum estudo tenha realmente dado conta do assunto. (CALDWELL, 2002, p. 13)

Em
O Otelo
brasileiro de Machado de Assis, a crítica procura aproximar Dom Casmurro da peça de Shakespeare, que, além de ser citada diretamente no romance, traria relações de semelhança com o próprio enredo do livro.

Uma vez que o conjunto da obra de Machado de Assis apresenta a emergência de um intelecto estável e consistente, com idéias e formas que aparecem, reaparecem e se desenvolvem, mergulhei em suas obras para elucidar um único romance. Visto que o próprio Machado de Assis se referiu diversas vezes a Shakespeare com respeito e suas idéias recorrentes, tentei remontar tais referências (pertinentes) a sua fonte. Mas o núcleo de meu estudo consiste em responder duas questões suscitadas diretamente do próprio
Dom Casmurro, uma subsidiária à outra. A questão principal é: “A heroína é culpada de adultério?”; e a subsidiária, “por que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para decisão do leitor?” (CALDWELL, 2002, p. 13)

As relações intertextuais estabelecidas pela estudiosa entre as duas obras, se mostram semelhanças, também apontam para as necessárias diferenças, que Machado tão bem soube explorar. Assim, o pai de Capitu não é um senador veneziano, como o de Desdêmona, mas um pequeno funcionário do Ministério da Guerra; José Dias, ao contrário de Iago, não tem um cargo político importante, mas vive de favor na casa da mãe de D. Glória; os próprios Bentinho e Capitu já sugerem o que seria este Shakespeare à brasileira: ele nada tem da coragem e força do mouro, sendo mesmo, quando adolescente, um pouco covarde. Já a moça é apenas filha de uma família agregada da casa.

Independente dos acertos de Caldwel a respeito das relações intertextuais, bem como dos estudos onomásticos que ela empreende em seu livro serem ou não completamente procedentes, ou ainda de seu viés às vezes perigosamente cristão (já que acaba por se centrar um pouco além do necessário em assuntos de natureza religiosa), foram seus estudos que deslocaram a visada crítica do tema do adultério para se prender ao do ciúme. Não sendo mais Capitu a única digna de suspeição: culpada ou inocente – é justamente essa dúvida que conferirá nova vida ao romance e a seus estudos críticos subseqüentes.

Um desses estudos é o importante ensaio de Silviano Santiago, “Retórica da verossimilhança”, publicado em 1969 em
Uma literatura nos trópicos, procurando relacionar a profissão de advogado de Bento à sua atuação como narrador. Para o crítico, a retórica de que o filho de D. Glória faz uso é a mesma usada nos tribunais para acusação do réu, papel no romance legado a Capitu. E, por não haver nenhuma prova concreta sobre o adultério, ou mesmo um flagrante,

Qualquer das duas atitudes tomadas na leitura de
Dom Casmurro (condenação ou absolvição de Capitu) trai, por parte do leitor, grande ingenuidade crítica em que ele se identifica emocionalmente (ou simpatiza) com um dos personagens, Capitu ou Bentinho, e comodamente já se sente disposto a esquecer a grande e grave proposição do livro: a consciência pensante do narrador Dom Casmurro (...) O leitor, esquecendo a consciência pensante do sexagenário, tomava a posição de juiz e se sentia na obrigação de dar o seu veredicto sobre os fantasmas do narrador, quando na realidade o único interesse que deseja despertar Machado de Assis é para a pessoa moral de Dom Casmurro. (SANTIAGO, 2000, p. 29-30)

O estudo de Silviano Santiago dá um passo adiante em relação às formulações de Caldwel , ajudando a configurar um
tipo de narrador que faz uso de sua boa educação para tentar convencer o leitor de seu ponto de vista. Se o cerne em o Otelo brasileiro era o ciúme de Bentinho, aqui a atenção é desviada para a profissão do esposo que se sente enganado, mas que, por sua vez, também se encontra em situação suspeita.

Como lembra o crítico, Bento está acostumado com a retórica dos advogados, sendo que, na sua formação, importa mais a verossimilhança, a aparência de verdade, que o conhecimento desta, o que atesta um

(...) duplo cacoete profissional: o desligamento por completo da realidade e por conseqüência a crença no valor supremo das regras da retórica, e, por outro lado, a centralização do motivo do discurso, não no próprio discernimento do orador, mas no de quem escuta. Daí que o ponto de referência para as suas idéias não é a realidade (a constatação, o flagrante – como se diz em termos policiais), mas o provável, o verossímil, que como vimos é a base da retórica de Dom Casmurro.
(SANTIAGO, 2000, p. 43)

A pergunta de Bento, se a Capitu adulta (e, para ele, culpada) já se encontrava na jovem de Matacavalos, está de alguma maneira representada na divisão do enredo, que prioriza, em termos de extensão, a primeira fase.

Assim, para Dom Casmurro o essencial era provar (e sair vencedor) que o conhecimento que tinha dos atos de Capitu quando menina lhe possibilitava um julgamento seguro sobre a Capitu adulta e misteriosa. (...) Não é de estranhar, também, como já assinalou Helen Caldwel , que gaste 2/3 do livro descrevendo as suas impressões da Capitu menina e 1/3 da Capitu adulta (...) Esse desequilíbrio estrutural se encontra justificado, para usar de uma expressão familiar, por uma desculpa esfarrapada
. (SANTIAGO, 2000, p. 34)

No mais, tal atitude apontaria para um olhar preconceituoso do narrador, ou, ao menos, um que não se baseia em nada a não ser o senso comum.

Toda essa visão da vida em família trai, é claro, certo preconceito, ou neste caso específico, se baseia em provérbios que de certa forma traduzem apenas o bom senso, provérbios como: ‘Tal pai, tal filho’, ou ‘Filho de peixe, peixinho é
. (SANTIAGO, 2000, p. 37)

A conclusão é clara, mas não deve ser subestimada. Ela reforça o livro de Caldwel , fazendo desmoronar definitivamente a construção que vigorou na crítica sobre o romance até então, isto é, de se buscar a culpa ou a inocência de Capitu. A questão que passava a importar agora era: que mecanismos e estratégias ideológicas utiliza Bento para fazer valer seus pontos de vista.

Em resumo: os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro
. (SANTIAGO, 2000, p. 30)

Em
Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro, publicado originalmente em 1984, John Gledson analisa as relações familiares, sociais, políticas e históricas do romance. Seu objetivo é reconstituir o enredo “verdadeiro” do livro, que muito se diferenciaria daquele fornecido pelo narrador Bentinho. De fato, o estudo do crítico fundamenta-se na concepção de que a narração de Bento é duplamente enganosa, exatamente porque ele, se por um lado nos engana, em certa medida, é enganado, não por Capitu ou Escobar, mas por seus próprios preconceitos e limitações, oriundos, sobretudo, de sua classe e criação.

Seja qual for a “verdade” acerca do adultério, podemos considerar que o romance é um estudo sobre o ciúme de Bento e as condições que o produzem. Tais condições são, com efeito, idênticas àquelas que fizeram com que o casamento se realizasse. A fim de se casar com Bento, Capitu precisa manipulá-lo e dominá-lo, procedimento que, invertendo os papéis tradicionais do homem e da mulher, provoca ciúme e ressentimento. Do ponto de vista psicológico, Bentinho é apenas um menino mimado, habituado a que lhe façam as vontades, e possui a incapacidade da criança mimada para compreender que os outros têm uma existência independente da sua, de modo que quando ele afirma sua independência, como é natural na ordem das coisas, essa afirmação lhe parece uma traição
. (GLEDSON, 1991, p. 12)

Assim, mais relevante que saber se Capitu traiu ou não, ou mesmo que acusar Bento de forjar provas, é, para Gledson, debruçar-se sobre a mentalidade do narrador, sua psicologia, demonstrando como ela foi construída socialmente. Compreendê-la é, em certa medida, compreender, a partir de seu âmago, uma parcela da sociedade brasileira oitocentista que a gerou.

Uma grande dificuldade a ser transposta para uma leitura dessa natureza de
Dom Casmurro é que Bento não teria, muitas vezes, consciência de tudo que gira a sua volta, como no caso dos bustos de grandes homens no seu escritório. O narrador assume desconhecer a razão da disposição dos medalhões, inventando algum motivo frívolo, o que não deveria privar o leitor de propor suas próprias soluções.

Comecei a ver que, de fato, jamais compreendera a verdadeira natureza das relações sociais no romance, em parte por ela estar dissimulada (o próprio Bento não a compreende, e, assim, não pode descrevê-la de modo direto), mas também porque as categorias essenciais de favor e dependência inexistiam no meu instrumental. (...) Nós nos inclinamos, de preferência, a pensar e a explicar as motivações das personagens em outros termos: de rico e pobre, de bom e mau, de amor, fidelidade e traição. É o que Machado, até certo ponto, nos anima a fazer
. (GLEDSON, 1997, p. 10)

A leitura que surge é, notavelmente, cética, sendo a separação entre narrador e autor o procedimento crítico esperado. Machado, assim, não compactuaria com Bento, como não compactuava com Brás Cubas. Só que, diferente das
Memórias, que nos deixam já de sobreaviso desde a epígrafe do livro, “para o verme”, em Dom Casmurro, graças a uma série de estratégias da narração, não nos deparamos com

(...) nenhum aviso ao leitor, e o nosso encontro com o narrador não poderia ser mais confortavelmente casual. É como se ele também fosse alguém que acabássemos de encontrar num trem, assim como ele se encontra com o poeta principiante. Pode-se admitir que ele é um tanto excêntrico, um recluso que chegou ao ponto incrível de construir uma cópia de sua casa de infância no subúrbio. Porém, mesmo essa anormalidade, se assim pode ser chamada, é ressalvada pelo fato de ele se sentir constrangido pelo próprio capricho (...). Onde
Brás Cubas desafia o leitor, propondo problemas que requerem soluções, e sugere claramente que o narrador é iludido a ponto de estar louco, Dom Casmurro faz de tudo para amenizar o caminho do leitor através do que, na verdade, é um campo minado. (GLEDSON, 1997, p. 23)

Claro que, lido como foi o livro até 1960, podemos imaginar que a técnica deu certo. Para Gledson, não era outro o objetivo de Machado com esse tipo de narrador, veículo de crítica ideológica. O romance acaba assim por descortinar um painel coerente da vida em sociedade do Brasil do século XIX. Mas o faz de maneira, podemos dizer novamente, “oblíqua e dissimulada”, pois parte da narração enganosa de um proprietário que se sente traído, sobretudo porque não compreende de maneira adequada as relações de mando e favor. O adultério, difícil de provar ou negar, é o que importaria menos, nesse contexto. Os silêncios “misteriosos” de Capitu, quando, em menina, refletia, concatenando idéias para atingir seus objetivos (“não aos saltos, mas aos saltinhos”), denunciam, ao narrador desavisado, sua culpa, já que, desde criança, se mostrara fria e calculista. Ela é, de fato, ambiciosa, ao contrário de Bento, que sempre teve tudo que queria e por isso pouca atenção precisava dar ao dinheiro. Porém a relação entre cálculo e adultério é ele quem faz.

Roberto Schwarz, em seu ensaio “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, publicado originalmente em
Duas meninas, apropria-se de todas as discussões das obras críticas citadas e, como mais um “herdeiro de Caldwel ”, vai direcionar o olhar não mais para a possível traição, mas para as razões de por que, por mais de meio século, a crítica literária teria, quase que cegamente, acreditado nas palavras do narrador, endossando-a em seus estudos.

O livro tem algo de armadilha, com lição crítica incisiva – isso se a cilada for percebida como tal. Desde o início há incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que vão formando um enigma. A eventual solução, sem ser propriamente difícil, tem custo alto para o espírito conformista, pois deixa mal um dos tipos de elite mais queridos da ideologia brasileira. Acaso ou não, sessenta anos depois de publicado e muito reeditado o romance, uma professora norte-americana (por ser mulher? por se estrangeira? por ser talvez protestante?) começou a encarar a figura de Bento Santiago – o Casmurro com o necessário atrás. É como se para o leitor brasileiro as implicações abjetas de certas formas de autoridade fossem menos visíveis
. (SCHWARZ, 2006, p. 9)

Schwarz entende que a razão da irrestrita nas palavras de Bentinho explica-se pela própria classe do narrador:

Se a viravolta crítica não ocorre ao leitor, será porque este se deixa seduzir pelo prestígio poético e social da figura que está com a palavra. Aliás, como recusar simpatia a um cavalheiro distinto e sentimental, admiravelmente bem falante, um pouco desajeitado em questões práticas, sobretudo de dinheiro, sempre perdido em recordações da infância, da casa onde cresceu, do quintal, do poço, dos brinquedos e pregões antigos, venerador lacrimoso da mãe, além de obcecado pela primeira namorada?
(SCHWARZ, 2006, p. 10)

Em
Dom Casmurro
, existiriam, para o crítico, ao menos três níveis básicos de leitura. No primeiro, prevalece o romanesco, com o início e o declínio do amor do casal principal. O segundo, policial e patriarcal, trata da busca por evidências do adultério. O terceiro é justamente aquele que, a contrapelo, faz recair a desconfiança sobre o narrador ciumento e interessado.

É neste terceiro que
O nosso cidadão acima de qualquer suspeita o bacharel com bela cultura, o filho amantíssimo, o marido cioso, o proprietário abastado, avesso aos negócios, o arrimo da parentela, o moço com educação católica, o passadista refinado, o cavalheiro bel e époque ficava ele próprio sob suspeição, credor de toda a desconfiança disponível. (SCHWARZ, 2006, p. 13)

Nesses estudos críticos apontados, Schwarz e Gledson mostram-se interessados na questão da impossibilidade do relacionamento amoroso entre o representante da classe abastada e a agregada, tema que reaparece na ficção machadiana com certa insistência e que tem em Dom Casmurro talvez sua forma mais bem acabada. Recordem-se, como antecessores, pelo menos dois títulos: o conto
“Frei Simão”, publicado na coletânea Contos fluminenses, em 1870, e a novela Casa velha, que saiu em 1906 em Relíquias da casa velha.

O salto artístico dado por Machado em Dom Casmurro tornava-se claro, mas de alguma maneira continuava o que o autor começara nas
Memórias póstumas: nesses romances, ficava patente que pertencer à classe senhorial, receber uma educação letrada, falar e vestir-se bem, não garantiam, sob hipótese alguma, avanço na tentativa de tornar o Brasil uma nação menos desigual e violento. Ao contrário, o verniz moderno, uma vez descascado, deixava talvez entrever a madeira podre de que era feita a velha tabuleta do confeiteiro Custódio, em Esaú e Jacó.

Superavam-se as certezas edificantes próprias ao ciclo de formação da nacionalidade, certezas segundo as quais a atualização artística e a aquisição de aptidões literárias seriam serviços inquestionáveis prestados à pátria pelos seus dedicados homens cultos. Quando, pela primeira vez em nossas letras, com Machado de Assis, a inteligência da forma bem como as idéias modernas comparecem livres de inadequação e diminuição provinciana, já não é dentro do anterior espírito de
missão. Por exemplo, os excelentes recursos intelectuais vinculados a Bento Santiago não representam uma contribuição a mais para civilização do país, e sim, ousadamente, a cobertura cultural da opressão de classe. (SCHWARZ, 2006, p. 13)

Para uma melhor apreensão de tais obras, é preciso levar em conta seus narradores, que, claramente, demonstram ter interesses de classe a cumprir e honrar, interesses muitas vezes obscuros e escusos, até mesmo para si próprios. A verdade, assim, jamais é dada de imediato, e talvez nem ao menos possa de fato ser alcançada em sua completude. Mas o que parece mais importante ressaltar é a curiosa capacidade de os narradores encontrarem ecos para seus pontos de vista nos corações e mentes de quem os lê, indício cabal de que Machado conhecia seu público, seus preconceitos e modos de entender a realidade, mais até do que talvez imaginemos. Com os estudos recentes sobre Dom Casmurro, percebemos com mais clareza esse procedimento, que, ao mesmo tempo em que desvela as contradições da sociedade, também atesta nossas próprias limitações, enquanto leitores, para percebê-las."

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Fonte:
WOLMYR AIMBERÊ ALCANTARA FILHO: "HISTÓRIA E POLÍTICA NO MEMORIAL DE AIRES, DE MACHADO DE ASSIS". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Wilberth Claython Ferreira Salgueiro). Vitória, 2009.

Nota
:
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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