“Segundo Martín de Riquer, “en la lengua original, el Quijote se imprimió unas treintas veces, en el siglo XVII, unas cuarenta, en el XVIII, unas doscientas, en el XIX y en lo que va del XX en un promedio de unas tres veces al año” (RIQUER, 1996, p.32). Precursora do gênero romance, a obra de Cervantes é uma das mais importantes da literatura universal. Cervantes assinala em seu prólogo que o objetivo principal de sua obra é o de ir contra os livros de cavalaria – ao menos, este aparece como sendo seu objetivo explícito: “Y, pues esta vuestra escritura no mira a más que a deshacer la autoridad y cabida que en el mundo y en el vulgo tienen los libros de caballerías” (CERVANTES, 1996, p.18). As últimas palabras de Dom Quixote, no final do romance, também nos remetem a essa proposta: “Pues no ha sido otro mi deseo que poner en aborrecimento de los hombres las fingidas y disparatadas historias de los libros de caballerías...” (p.1099). Evidentemente, o Quixote é muito mais que uma obra que enfrenta os livros de cavalaria. A prova disso é que a obra de Cervantes há séculos é lida e admirada por milhares de leitores em todos os países, ainda que os leitores contemporâneos, a maior parte das vezes, desconheçam os livros de cavalaria. Ou seja, como afirma Martín de Riquer, se o objetivo único de Cervantes, ao publicar o Quixote, tivesse sido acabar com os livros de cavalaria, quando estes deixam de ser publicados, a obra teria sua proposta central superada e hoje seria somente uma obra de circunstâncias (RIQUER, 1996, p.44). No entanto, além do conhecimento prévio sobre as novelas de cavalaria, o Quixote é também uma obra de grande entretenimento.
A partir desses dois aspectos expostos, isto é, a paródia dos livros de cavalaria e o entretenimento, podemos traçar um caminho que nos levará a refletir sobre a presença do ensinar e deleitar no Quixote de acordo com os preceitos da poética clássica.
A personagem de Cervantes enlouquece de tanto ler livros de cavalaria e sai em busca de aventuras disparatadas, o que nos leva a pensar que, para Dom Quixote, as leituras tiveram uma função muito maior que a do puro entretenimento, na medida em que o estimularam a pôr em prática as aventuras vividas pelos cavaleiros de uma época.
No capítulo XLVII (primeira parte), o barbeiro e o cura planejam uma encenação e conseguem enjaular Dom Quixote, pois acreditavam que com isso seria possível impedi-lo de seguir com suas loucuras. Nesse episódio, merece destaque o diálogo que o cônego mantém com o cura e com Dom Quixote sobre os livros de cavalaria. Para o cônego, estes não têm a função de ensinar, somente deleitar. Antes da presença de Dom Quixote na cena, diz o cônego ao cura:
“...a mí me parece, este género de escritura y composición cae debajo de aquel de las fábulas que llaman milesias, que son cuentos disparatados, que atienden solamente a deleitar, y no a enseñar: al contrario de lo que hacen las fábulas apólogas, que deleitan y enseñan juntamente. Y puesto que el principal intento de semejantes libros sea el deleitar, no sé yo como puedan conseguirle, yendo llenos de tantos y tan desaforados disparates (...)” (CERVANTES, p.501-502).
O cura, depois de escutá-lo, diz que compartilha da mesma opinião e que havia queimado alguns livros de Dom Quixote:
“(...) dijo tener ojeriza a los libros de caballerías, había quemado todos los de don Quijote, que eran muchos.”
O cônego prossegue afirmando:
(...) que después de acabada, tal perfección y hermosura muestre, que consiga el fin mejor que se pretende en los escritos, que es enseñar y deleitar juntamente, como ya tengo dicho” (p.504).
Podemos notar que há uma preocupação com a finalidade da literatura tanto por parte do cônego quanto do cura. Essa indagação do efeito da literatura sobre o leitor é um dos objetivos prioritários da teoria clássica. A opinião mais divulgada, segundo Carmen Bobes, era que “la literatura debía desempeñar la doble finalidad de instrucción y entretenimiento, cualidades que asociaban a la utilidad y el deleite” (BOBES et alli, p.349). Ainda segundo Carmen Bobes, todos os teóricos e comentaristas aceitam essa função dupla da literatura, ainda que certamente a Contra-reforma tenha levado a Espanha a insistir mais na função didática, embora o deleite fosse o elo necessário para atingir aquela função (idem, p.349). Esses conceitos são detectados na Philosophia Antigua Poética, de Pinciano, que segue os preceitos horacianos, além dos aristotélicos, com relação à finalidade literária. Pinciano considera que a arte pode ensinar e deleitar e, assim como Horácio, acredita que deve haver um equilíbrio entre as duas funções – o deleitar e o instruir:
“...Si
No capítulo XLIX (primeira parte) da obra de Cervantes, Dom Quixote e o cônego expõem suas considerações sobre os livros de cavalaria e a finalidade que estes teriam. O cônego reitera o que disse ao cura sobre esses livros e Dom Quixote tem agora a oportunidade de expressar sua opinião:
“El canónigo le dijo: (...) la amarga y ociosa lectura de los libros de caballerías, que le hayan vuelto el juicio de modo que venga a creer que va encantado... ¿cómo es posible que hay entendimiento humano que se dé a entender que ha habido en el mundo aquella infinidad de Amadises (...) No pongo la imaginación en pensar que son todos mentira y liviandad (...) Cuya leción de sus valerosos hechos puede entretener, enseñar, deleitar y admirar a los más altos ingenios que los leyeren. Ésta si será lectura digna del buen entendimiento (...) de la cual saldrá erudito en la historia, enamorado de la virtud, enseñando en la bondad, mejorado en las costumbres (...)”.
(...) don Quijote (...) le dijo: (...) se ha encaminado a querer darme a entender que no ha habido caballeros andantes en el mundo, y que todos los libros de caballerías son falsos, mentirosos, dañadores e inútiles... hallo por mi cuenta que el juicio y el encantado es vuestra merce, pues se ha puesto a decir tantas blasfemias contra una cosa tan recebida en el mundo, y tenida por tan verdadera (...) ¿Hay mayor contento que ver, (...) un gran lago de pez hirviendo a borbollones... un fuerte castillo o vistoso alcázar, cuyas murallas son de macizo oro (....) Lea estos libros, y verá cómo le destierran la melancolia que tuviere, y le mejoraran la condición, si acaso la tiene mala.” (p.515, 516, 521 e 523)
Obviamente, nas palavras do cavaleiro, a finalidade da leitura estaria somente no entretenimento; as aventuras vividas seriam uma forma de “deleite” e de expressar a função que a leitura tinha para ele : “(...) que después que soy caballero andante soy valiente, comedido, liberal, biencriado, generoso, cortés, atrevido, blando, paciente, sufridor de trabajos, de prisiones de encantos (...)” (p.523). Levando em conta os argumentos de Pinciano, a finalidade da literatura seria harmonizar o prazer e o didatismo. Segundo Carmen Bobes:
“entretenimiento es esencial para producir un placer derivado de la contemplación de la belleza y en consecuencia resulta provechoso y necesario para instruir. El placer es el paso necesario para la instrucción final. El placer está en función de la finalidad última que es el didactismo.” (BOBES et alli, p.350)
Como afirma Pinciano, “(...) a la forma de poesía, que es la imitación (...) que es deleyte para la ensenança; porque
É interessante notar que muitas vezes, na obra de Cervantes, o tema do “ensinar”, por exemplo, está presente em alguns episódios. No capítulo XLII–2ª parte, Dom Quixote dá alguns conselhos a Sancho antes de que este vá governar a tão deseja ilha:
“¿Quién oyera el pasado razonamiento de don Quijote que no le tuviera por persona muy cuerda y mejor intencionada? (...) En lo que toca a cómo has de gobernar tu persona y casa, Sancho, lo primero que te encargo es que seas limpio, y que te cortes las uñas, sin dejarlas crecer... no andes, Sancho desceñido y flojo, que el vestido descompuesto da indicios de ánimo desmazalado si ya la descompostura y flojedad no cae debajo de socarronería, como se juzgó en la de Julio César (...).
Os ensinamentos de Dom Quixote presentes nessa trama não teriam para o leitor uma função de didatismo e sim de divertimento, o que nos remete novamente a um dos conceitos da teoria clássica, o de deleitar. Segundo Horácio, pelo fato de agradar e ser útil, a arte serve também de divertimento (1993, p.66).
Finalmente, os diálogos entre o cônego, o cura e Dom Quixote ressaltam a preocupação e a importância desses conceitos clássicos na literatura daquele período. A harmonia entre o ensinar e o deleitar seria o equilíbrio entre o útil e o agradável. Reconhecer somente o didatismo em uma obra seria condenar o deleite, sendo que o entretenimento também poder ter função didática e fazer parte do instruir. Além disso, a arte para agradar deverá, seguindo as regras clássicas, entre elas a razão, ser bela e, para ser bela, inspirar sentimento e emocionar."
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Fonte:
ROSA MARIA OLIVEIRA JUSTO: "OS MOINHOS DE VENTO NO BRASIL: UMA LEITURA DA ADAPTAÇÃO DE DOM QUIXOTE DAS CRIANÇAS DE MONTEIRO LOBATO”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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Ensinar e deleitar em Dom Quixote
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