Kafka e a leitura de Kafka



Como é que se entra na obra de Kafka? É um rizoma, uma toca, esta obra. [...] Donde, entra-se por qualquer lado, nenhum vale mais do que outro, nenhuma entrada tem qualquer privilégio, mesmo se é quase um beco, uma ruela ou em curva e contracurva, etc.. Poder-se-á apenas procurar com que pontos se liga aquele por onde se entrar, por que cruzamentos e galerias se passa para ligar dois pontos, qual é o mapa do rizoma e como é que este, de repente, se modifica se se entrar por qualquer ponto. O princípio das entradas múltiplas só impede a entrada do inimigo, o Significante, e as tentativas para interpretar uma obra que, de facto, só propõe a experimentação.

O desejo de me aproximar de Franz Kafka veio da livre leitura de seus textos, passeios distraídos pela apropriação que ele fez da língua alemã de seu tempo e pela possibilidade vislumbrada de fazê-lo encontrar com a escrita e com o pensamento de Maria Gabriela Llansol. O incômodo de me aproximar de Franz Kafka vem não da resistência que sua escrita oferece à interpretação (pois isso, obviamente, já era perceptível nas primeiras e despretensiosas leituras), mas sim dos textos que bailam em volta dos seus, nos dizendo de sua indecifrabilidade e da impossibilidade de falar sobre eles. Se partirmos disso, poderíamos concluir que o silêncio seria a dádiva mais justa que deveríamos consagrar a esse autor. Ainda mais se nos lembrarmos que ele mesmo desejou que sua obra fosse destruída, silenciada. Mas o silêncio não parece ainda o bastante, ao menos não para nós, e continuamos. Mesmo porque, como nos alerta Giorgio Agamben, em “Defesa de Kafka contra seus intérpretes”, nem mesmo o silêncio protege o inexplicável. Segundo ele, o inexplicável ordena: “explica!” e assim: “Seja o que for que se responda ou não responda a esta ordem – mesmo o silêncio – será de qualquer modo significativo, conterá de qualquer modo uma explicação.”

Entretanto, apesar de tal incômodo, é importante observar que a repetição incessante desse discurso da impossibilidade parece revelador de algo intrínseco à experiência de Kafka (e à experiência de leitura de seu texto): o fracasso (outro termo a se repetir quando se trata desse autor). Fracasso das trajetórias inacabadas dos personagens de seus relatos e do fato de não se ajustarem a suas condições e comunidades, fracasso de seus próprios textos inacabados, malogro de se debater sempre entre e a vida e a literatura e nunca encontrar a justa medida entre elas e, por fim, seu desejo, não atendido, de ter sua obra destruída.

É preciso então observar o que esse discurso sobre a impossibilidade tem de revelador (e não de inibidor ou homogeneizador). Em seu texto “A leitura de Kafka”, Maurice Blanchot trata da maneira como o pensamento de Franz Kafka se articula em seus textos e como esses são abordados por seus críticos e intérpretes. Análises, como exemplifica Blanchot, às vezes contraditórias, excludentes, embora façam uso basicamente dos mesmos termos. Anatol Rosenfeld, em “Kafka e Kafkianos”, aponta essa mesma tendência ao comparar as análises de Wilhelm Emrich e Günter Anders. Segundo Rosenfeld:

Este último [Anders] realça a posição kafkiana em favor do compromisso e ajustamento completos em face de autoridades pré-facistas; aquele [Emrich] destaca a luta incessante dos heróis kafkianos contra estas mesmas autoridades. Anders afirma que o poder equivale, para Kafka, ao direito; o homem sem poder e, portanto, sem direito é por isso mesmo culpado. Emrich, ao contrário, considera Kafka como “moralista no sentido rigoroso da palavra” que procura “reconstituir a responsabilidade absoluta do homem”. Para Anders, Kafka é também um “moralista”, mas do conformismo, cuja mensagem moral o sacrificium intellectus seria completada pela mensagem da auto-humilhação.

Esse exemplo, retirado de Rosenfeld, ilustra o que Blanchot aponta como a “possibilidade misteriosa” de, em Kafka, um mesmo tema possibilitar duas leituras opostas, uma que tome um sentido positivo, outra que tome um sentido negativo (esses termos – positivo e negativo – também são empregados por Rosenfeld): “De tanto explorar o negativo, ele lhe dá uma chance de se tornar positivo, uma única chance, uma chance que nunca se realiza totalmente e através da qual seu contrário sempre transparece.” Rosenfeld fala sobre uma certa “sintaxe da frustração” que, de certa forma, podemos aproximar desse pensamento de Blanchot: segundo ele, em alguns textos de Kafka, as orações se iniciam “com afirmações esperançosas que, em seguida, são postas em dúvida, [...]. Pouco a pouco a afirmação inicial é limitada por uma inundação de subjuntivos e condicionais; surgem os “embora”, “de resto”, “talvez”, [...] até ao fim não sobrar nada e tudo ser anulado.”

Blanchot associa essa multiplicidade de explicações à impossibilidade de uma “verdadeira leitura” do texto de Kafka. E essa impossibilidade estaria ligada à maneira como o pensamento do autor se apresenta. Em seus diários, mistura de relato do cotidiano e diário de escrita, é possível vislumbrar a trajetória desse pensamento. Como mostra Blanchot, ao transcrever em seu diário algo ocorrido em seu cotidiano, Kafka passa à procura do sentido desse ocorrido, nesse momento:

a narrativa começa a se fundir com sua explicação, mas esta não é uma explicação, não explica tudo o que deveria e principalmente não consegue sobrevoá-la. [...] o sentido que ela coloca em movimento vagueia em torno dos fatos, só é explicação se se desligar deles, mas só é explicação se deles for inseparável.

Segundo Blanchot, a narrativa de Kafka é seu “pensamento transformado em uma seqüência de fatos injustificáveis e incompreensíveis” e sua significação é o “mesmo pensamento prosseguindo através do incompreensível”, dessa forma:

Aquele que se limita à história penetra em algo opaco sem se dar conta, e aquele que se limita à significação não pode chegar à obscuridade da qual ela é a luz denunciadora. Os dois leitores não podem jamais se juntar, podem ser uma vez um, uma vez o outro, sempre compreendem mais ou menos aquilo de que é preciso. A verdadeira leitura permanece impossível.

Assim, se a tessitura desse texto engendra algo da impossibilidade apontada por Blanchot, é essa impossibilidade (e os inúmeros erros que ela pode engendrar) própria à trajetória dessa escrita. Lembrando Agamben, citado anteriormente, o imperativo “explica!” é “o único conteúdo do inexplicável”, sendo assim, apesar da resistência desse texto, não podemos fugir da necessidade de explicá-lo. E se as explicações, em vários momentos, correm o perigo de deslizarem pelo erro e pelo engano, são elas apenas “mais que um momento na tradição do inexplicável: o momento que toma conta dele, deixando-o inexplicado.”

Para nós, esse imperativo “explica!”, posto por Agamben, pode ser trocado pelo que Mandelbaum chama de “irradiação de amplo alcance que instiga violentamente os leitores”. Então, o que importa da leitura de Kafka não é sua interpretação, como se a essa leitura coubesse o desvendamento de uma possível simbologia impressa em seus elementos, mas sim certa experiência: desvendamento de um caminho possível por onde se possa “experimentar” a literatura, submeter-se à sua experiência. O que nos impele a escrever sobre ele não é o interesse em encontrar uma explicação que ponha fim ao seu “enigma”. Queremos, ao invés disso, investigar como sua escrita pode engendrar conceitos específicos de território, comunidade e transmissão, que idéia de experiência literária eles implicam e de que forma um encontro entre Kafka e as idéias e a escrita de Maria Gabriela Llansol pode ser traçado a partir desses elementos.

É possível perceber a constante retomada, na obra de Kafka, desses conceitos – às vezes de maneira explícita, às vezes de maneira sutil – através da repetição de situações e de temas em seus textos. Nos contos de Kafka escolhidos para este trabalho, as questões relacionadas à transmissão e ao pertencimento a uma comunidade surgem através de certas situações, como por exemplo: o deslocamento de um modo de ser a outro (de ser macaco para ser homem em “Um relatório para uma academia"), que implica em trânsito de uma comunidade a outra (e de estranhamento por não pertencer verdadeiramente a nenhuma); o engajamento em uma atividade que ameaça ao mesmo tempo em que se dirige à vida junto aos seus semelhantes (como o engajamento de Josefina em seu canto em “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”, e do cão de “Investigações de um cão”, em suas pesquisas sobre de onde provêm os alimentos); e, ainda, a própria idéia de uma convivência fundada em mútua incompreensão entre duas comunidades distintas (mote principal de “Chacais e árabes”).

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Fonte:
Marilaine Lopes Silva: "TEXTO, LUGAR QUE VIAJA: Território, comunidade e transmissão em Franz Kafka e Maria Gabriela Llansol". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Teoria da Literatura, elaborada sob a orientação da Profa. Dra. Lucia Castello Branco. Belo Horizonte, 2007.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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