Reprodução de
fotografia tirada por ocasião de um almoço oferecido a Lúcio de Mendonça, no Rio
de janeiro, no dia 3 de março, com a presença dos seguintes nomes:
(sentados) João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva
Ramos; (em pé) Rodolfo Amoedo, Olavo Bilac, José Veríssimo, Sousa
Bandeira, Felinto de Almeida, Henrique Bernardelli, Rodrigo Otávio e Heitor
Peixoto (Biblioteca Nacional
Digital do Brasil)
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Machado de AssisChegamos
agora ao escritor que é a mais alta expressão do nosso gênio
literário, a mais eminente figura da nossa literatura, Joaquim
Maria Machado de Assis. No bairro popular, pobre e excêntrico do
Livramento, no Rio de Janeiro, nasceu ele, de pais de mesquinha
condição, a 21 de junho de 1839. Nesta mesma cidade, donde nunca
saiu, faleceu, com pouco mais de 69 anos, em 29 de setembro de
1908. A
data do seu nascimento e do seu aparecimento na literatura o fazem da
última geração romântica.
Mas a sua índole
literária avessa a escolas,
a sua singular personalidade, que lhe não
consentiu jamais matricular-se em alguma, quase
desde os seus princípios
fizeram dele um escritor
à parte, que tendo
atravessado vários momentos e correntes literários, a nenhuma
realmente aderiu senão mui parcialmente, guardando sempre a sua
isenção. São obscuros e incertos os seus começos, os informes que
deles há, duvidoso ou suspeitos. Ninguém na literatura brasileira
foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda a espécie de
cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo. De raiz odiava toda a publicidade,
toda a vulgarização que não fosse puramente a dos seus livros
publicados. Do seu mesmo trabalho
literário, como de tudo
o que lhe dizia
respeito, tinha um exagerado
recato. Refugia absolutamente
às confidências tanto
pessoais como literárias. Por cousa alguma
quisera que as humildes condições em que nascera servissem para
exalçar-lhe a situação que alcançara. Ao seu recatadíssimo orgulho
repugnava, como um expediente vulgar, fazer entrar no lustre que
conquistara esse elemento de estima. A sua biografia eram os seus
livros, a sua arte era a sua prosápia. Não
lhes quis misturar nada
que pudesse parecer um
apelo à benevolência dos seus contemporâneos em
prol da exaltação do seu nome. Fazer reclamo da
mesquinhez das suas origens,
como é tão vulgar,
lhe era profundamente
antipático. Só a
incapacidade de compreender
natureza tão finamente aristrocrática
como Machado de Assis
e a esquisita nobreza
destes sentimentos poderia reprochar-lhos.
Era dos
engenhos privilegiados que, sentindo fortemente a vocação literária,
com a clara consciência da necessidade de ajuda-la pela aplicação e
trabalho, a si mesmo se educam. Fez-se ele próprio. Teria apenas
freqüentado a ínfima escola primária da sua meninice, aprendido ao
acaso das oportunidades algo mais do que ali lhe ensinaram, e lido
assídua e atentamente. Precisando cuidar muito cedo de si,
pois os pais, sobre
paupérrimos, lhe morreram
quando lhe começava a
puberdade, trabalhou então,
ao que parece,
como sacristão da Igreja
da Lampadosa, e depois caixeiro da pequena Livraria e Tipografia de Paula
Brito, prazo dado dos escritores feitos ou por fazer da época.
Talvez ali se iniciasse na arte tipográfica, que mais tarde parece
exerceu como compositor na Imprensa Nacional. Desde 1856 pelo menos
se encontram na
Marmota Fluminense, “jornal de modas e
variedades”, editado e redigido por aquele singular, estimável e
prestimoso amador das nossas letras que foi Paula Brito, e
colaborado por nomes depois nela notáveis, alguns poemas
seus. Tem o tom melancolicamente sentimental, a
religiosidade romântica e também laivos de descrença, da
poesia daquele decênio.151 É de crer que Machado de Assis houvesse
versejado desde antes dessas datas. Depois da
Marmota,
encontram-se-lhe versos na
Revista Popular
e
Jornal das Famílias, de Garnier,
na Biblioteca Brasileira, de Quintino Bocaiúva, e no
Diário do Rio de Janeiro, de 1862. Da redação deste
jornal, em lugar subalterno, fez parte com Saldanha Marinho,
Quintino Bocaiúva e outros já então ou depois conhecidos
jornalistas. Entrementes aprendera
o inglês, língua pouco
vulgar aos nossos literatos
e cuja literatura não
teria concorrido pouco para
ajudar a tendência natural de
Machado de Assis ao humor, de que foi aqui o único mestre insigne.
Também lhe daria o esquisito sentimento de decoro que distingue a
sua obra, e o defendeu das influências do naturalismo francês. Em
1863, da tipografia daquele jornal saiu o seu primeiro livro, um
folheto,
Teatro de Machado de Assis. Constava de duas
comédias em um ato, representadas ambas no ano anterior e prefaciadas
por Quintino Bocaiúva, que parece ter sido, com Paula Brito, o seu
introdutor na vida literária. Desde então Machado de Assis
mostrava-se a figura extraordinária e, em toda a significação do
termo, distinta que viria a ser nas nossas letras, tanto pelo seu
engenho como pela sua elevação moral. Estreante, publicava uma obra já
notável pelas qualidades de espírito e composição, para a qual o
seu prefaciador desenganadamente declarava que lhe não achava
jeito, e a publicava sem apelar desse juízo, acaso rigoroso. Fizera
teatro não só porque o momento, o de maior florescimento do nosso,
lho acoroçoava, mas por confessada ambição juvenil de ensaiar as
forças nesse gênero que o atraía, cuidando que nas qualidades para ele
se apurariam com o tempo e trabalho. Mas só em 1864, com as
Crisálidas, é que verdadeiramente começa a sua vida
literária, não mais como tentativa, senão como atividade nunca
descontinuada. Vinte e dous poemas, escritos entre 1858 e 64,
compunham essa coleção. Distinguiam-se pela emoção menos
desbordante que o nosso comum
lirismo e por um
apuro de forma insólito
na nossa poesia. À
perfeição com que já manejava o alexandrino, verso ainda
mal-aclimado na nossa língua, o pechoso cuidado que punha nos ritmos e rimas dos
seus, para os fazer menos triviais e mais tersos sem perda da
sonoridade, juntava-se o polido da língua e o escolhido da frase
poética:
Aspiração, que é de 1862, mormente Versos à Corina,
de 1864, documentam este juízo. Tanto pelo valor do sentimento como da sua
expressão, este último é uma das mais belas amostras do nosso lirismo. Como
as obras verdadeiramente clássicas, isto é, que não são de ocasião
ou de moda, tão vivo e novo hoje como à data da sua composição, há
quase meio século. Estava-se ainda em pleno viço do subjetivismo e
do sentimentalismo poético de Álvares de Azevedo e dos seus
companheiros de geração, poesia de descrença e desconsolo, de
desengano e tristeza, dominada pela idéia da morte. De todos esses
poetas eram os versos, como dos seus dizia exatamente aquele,
flores da sua alma, “murchas flores que só orvalha o pranto”.
Machado de Assis, que, pela mesquinha condição em que viera ao
mundo, não devia ter sofrido e lutado menos do que eles, tem desde
então o altivo pudor de não pôr a sua alma em público, de não fazer estendal
da sua desgraça. A musa é para ele a “consoladora em cujo seio
amigo e sossegado respira o poeta o suave sono, quando a mão do
tempo e o hálito dos homens lhe tenham murchado a flor das ilusões e da vida”.
Este sentimento revigora-se no Prelúdio das
Falenas, a sua
segunda edição das poesias:
O poeta é
assim: tem, para a dor e o tédio,Um
refúgio tranqüilo, um suave remédio:És tu, casta poesia, ó terra pura e
santa!
Quando a alma padece, a
lira exorta e canta;E a musa que,
sorrindo, os seus bálsamos verte,Cada lágrima nossa em pérola
converte.
Não era das falazes costumeiras profissões de fé de
poetas. Toda a sua vida literária, de um tão alevantado e peregrino no decoro, a
confirma.
Vários são os motivos de inspiração nas
Crisálidas desde
as mais intensas emoções de poeta amoroso ou antes preocupado já, como nenhum
outro aqui, do eterno feminino, e rasgos de pensamento que nos formosos tercetos
de No Limiar, como nos belos alexandrinos de
Aspiração, pressagiam o
poeta perfeito das
Ocidentais, até os temas subjetivos sentidamente
idealizados do
Epitáfio do México, de
Polônia, de
Monte
Alverne. Mas nem naqueles havia o comum excesso de sentimentalismo,
nem nestes algum exagero de idealismo, e uns e outros vinham estremes da
moléstia constitucional da nossa poesia, a oratória.
Trazem certamente o
cunho do tempo, porém com tal medida e acerto que, no seu encantador lirismo,
muito nosso, nos são contemporâneos. É dos poucos de então que não envelheceram,
isto é, que não precisam que nos ponhamos no diapasão do seu tempo para os
sentirmos e estimarmos. Digam-no estas estrofes de Visio, que são de
64:
Eras pálida. E os
cabelos,
Aéreos, soltos
novelos,
Sobre as espáduas
caíam...
Os olhos meio
cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas
luziam...
E os braços
entrelaçados,
Como cingindo a
ventura,
Ao teu seio me cingiam...
Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes,
Os teus lábios sequiosos,
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Antes os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes...
Depois... depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei... silêncio de morte
Respirava a natureza, —
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.
Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.
E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
És outra, calma, discreta,
Com o olhar indiferente,
Tão outro o olhar sonhado,
Que a minha alma de poeta
Não ver se a imagem presente
Foi a visão do passado.
Foi, sim, mas visão apenas;
Daquelas visões amenas
Que à mente dos infelizes
Descem vivas e animadas,
Cheias de luz e esperança
E de celestes matizes:
Mas, apenas dissipadas,
Fica uma leve lembrança,
Não ficam outras raízes.
Inda assim, embora sonho,
Mas, sonho doce e risonho,
Desse-me Deus que fingida
Tivesse aquela ventura
Noite por noite, hora a hora,
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
Alma, que em dores me chora,
Chorara de agradecida!
Há neles
certamente o toque do tempo, e algo de garrettiano, mas também uma
alma de verdadeiro poeta, que sobrevive à época.
Atividade poética de
Machado de Assis se continuou com as
Falenas em
1869, as
Americanas em 1875 e as
Ocidentais em 1902.
Quer em verso, quer em prosa, a sua produção — outra singularidade
deste singular escritor — sem ser nunca de improviso ou apressada,
é contínua, sempre trabalhada e aperfeiçoada. Modesto por índole e
por civilidade, tímido de temperamento, modéstia e timidez
que encobriam grande
energia moral e íntima
consciência de sua capacidade,
Machado de Assis, estranho a toda a petulância da juventude,
estuda, observa, medita, lê e relê os clássicos da língua e as
obras-primas das principais literaturas. Ao
contrário de alguns notáveis
escritores nossos que
começaram pelas suas
melhores obras e como
que nelas se esgotaram,
tem Machado de Assis
uma marcha ascendente. Cada obra sua é um progresso sobre a
anterior. Ou de própria intuição do seu claro gênio, ou por
influência do particular meio literário em que se achou, fosse
porque fosse, foi ele um dos raros senão o único escritor brasileiro do
seu tempo que voluntariamente se entregou ao estudo da língua pela
leitura atenta dos seus melhores
modelos. Foram seus amigos
e companheiros alguns portugueses
escritores ou amadores das boas letras, como José de Castilho, Emílio
Zaluar, Xavier de Novais, Manuel de Melo, o esclarecido filólogo de
cuja casa e rica livraria foi habituado, Reinaldo Montoro, o
bibliófilo Ramos Paz e outros. Nesta roda a língua se teria
conservado mais estreme das corrupções americanas, seria melhor falada e mais
estudada. Considerando-se, porém, que outros brasileiros que
viveram e até se educaram em Portugal, nem por isso lucraram no seu
português, mais que à influência
dessa roda, ao seu
íntimo sentimento literário
e à sua intuição da importância da
expressão na literatura, deveu Machado de Assis a excelência
incomparável da sua. Sabia-se por confidência sua que, escasseando-lhe
recursos para adquirir os clássicos, associou-se no Gabinete
Português de Leitura para os ter consigo e extratá-los. Confirmando
esta sua confissão, acharamse-lhe no espólio literário numerosas
notas e extratos dessas leituras. Sobretudo foi o único que soube
ler os clássicos, mestres dobres e equívocos, com discernimento e
finíssimo tato de escritor nato. Não aprendeu deles mais que a
propriedade do dizer, o boleio castiço da frase, a lídima expressão
vernácula, sem lhes tomar as fórmulas bárbaras
repugnantes ao nosso gosto
moderno, nem trasladar-lhes
indiscretamente para os seus escritos — como impertinentemente
fizeram Camilo Castelo Branco e
Castilho — o vocabulário
ou fraseado obsoleto. As
Falenas justificam o
seu título simbólico, nelas
se desenvolvem as qualidades
já manifestadas nas
Crisálidas,
notadamente as da forma poética, métrica, língua, estilo, esquisito
dom de expressão, em que geralmente sobrelevam a poesia do tempo.
Vinte anos antes do parnasianismo tinham já rasgos deste no sóbrio e
requintado da emoção, no menor individualismo do poeta, que, ao
contrário dos últimos românticos, seus contemporâneos, se escondia
e se esquivava. Os temas pura ou demasiadamente subjetivos, as
confissões impudentes do mais recôndito da sua alma, tão do gosto
deles, cediam o passo a temas mais gerais, menos pessoais
ou, quando o eram,
tratados mais discretamente,
com mais refinada sensibilidade.
Algumas peças desta coleção, como as da
Lira chinesa e
Uma ode de
Anacreonte, poemeto dramático em que finura da imaginação
pede meças à rara formosura de expressão, descobrem um poeta em
toda a força do seu talento. Musset e
Lamartine, e também André
Chenier, e mais Antônio
de Castilho e Garrett, são então
os seus principais mestres de poética. Nenhum, porém, com tal
prestígio que lhe ofusque a originalidade própria. Outros mestres
seus, dous poetas nossos por quem era grande a sua admiração, foram
Basílio da Gama e Gonçalves Dias. Este, não obstante a diferença
dos seus gênios, o impressionou grandemente. Porventura a essa
impressão devemos atribuir a inspiração das
Americanas, que,
com o
Evangelho das Selvas, de Fagundes Varela, do mesmo
ano, são a derradeira manifestação apreciável do indianismo da
nossa poesia.
Escritor desde os seus princípios consciente e reflexivo,
que nunca se deixou arrastar pelas modas literárias, e menos correu
após a voga do dia, Machado de Assis, ainda cedendo à influência da
inspiração americana, fê-lo com tão discreto sentimento e em forma
tão pessoal e tão nova, que o seu indianismo, certamente inferior
ao de Gonçalves Dias como emoção e expressão tocante, tem um sainete
particular e uma generalidade maior, o que acaso lhe assegura um
melhor futuro. “Algum tempo, escreveu ele na “advertência” das
Americanas explicando o seu novo livro, foi de opinião que a
poesia brasileira devia estar toda, ou quase toda, no
elemento indígena. Veio
a reação, e adversários
não menos competentes que
sinceros, absolutamente o
excluíram do programa da
literatura nacional. São opiniões
extremas que, pelo menos, me parecem discutíveis.” E não as querendo
discutir, limita-se a esta observação que dirimia definitivamente a
questão, se, como me parece certo, o só critério da obra d’arte é o
talento com que é realizada: “Direi somente que, em meu entender,
tudo pertence à invenção poética, uma vez que traga os caracteres
do belo e possa satisfazer as condições da arte. Ora, a índole
dos costumes dos nossos
aborígines estão muita vez neste caso;
não é preciso mais para que o poeta lhes dê a
vida da inspiração. A generosidade, a constância, o valor, a
piedada, hão de ser sempre elementos da arte, ou brilhem nas
margens do Scamandro ou nas do Tocantins. O exterior muda: o capacete de
Ajax é mais clássico e polido que o canitar de Itajuba; a sandália
de Calipso é um primor de arte que não achamos na planta nua de
Lindóia. Esta é, porém, a parte inferior da poesia, a parte
acessória. O essencial é a alma do homem.”
Este final compendia a
estética de Machado de Assis. Poeta ou prosador, ele se não
preocupa senão da alma humana. Entre os nossos escritores, todos mais ou
menos atentos ao
pitoresco, aos aspectos
exteriores das cousas, todos
principalmente descritivos ou emotivos, e muitos resumindo na
descrição toda a sua arte, só por isso secundária, apenas ele vai
além e mais fundo, procurando, sob as
aparências de fácil
contemplação e igualmente
fácil relato, descobrir a
mesma essência das cousas. É outra das suas distinções e talvez a
mais relevante. Da impressão que o indianismo havia feito na nossa
mente, dá testemunho o fato deste mesmo arguto e desabusado
espírito ter-se ainda deixado enganar por ele, e lhe haver também
sacrificado. Mas ainda assim o seu sentimento não é o mesmo de
Gonçalves Dias ou de Alencar. Tinha Machado de Assis mais espírito crítico que
estes e menos
sentimento romântico, e era
de todo estranho a
quaisquer influências ancestrais ou mesológicas que
porventura atuaram nos dous, para que caísse completamente no
engano do indianismo, como ainda sucedeu a Varela. Dos costumes,
figuras, manhas e feições do índio e da sua vida que põe em poema,
procura sobretudo descobrir a essência sob as exterioridades
exóticas, e por ela revelar-lhe a alma. Ainda assim esta porção da sua obra é a
menos estimável. Releva-a, porém, a
sua interpretação poética
dos temas e a
formosura da expressão, nele singular. Dous ao
menos desses poemas, e justamente aqueles que mais se afastam da
fórmula indianista, nos quais a trivial descrição ou exposição de
feitos e gestos indianos é substituída pela sua interpretação psicológica,
Niani e
Última jornada, são de superior beleza
poética e de rara feitura artística.
As
Ocidentais, publicadas na
edição das suas
Poesias
completas (1901), revêem a influência em
Machado de Assis do modernismo, do qual, desde o seu citado artigo
sobre a nova geração de poetas que se estrearam depois de 1870, ele
dera tão exata definição. São, infelizmente, poucos os poemas cuja
inspiração vem dessa nova corrente.
O
desfecho, Círculo vicioso, Uma criatura,
Mundo interior, Suavi Mari Magnum, A mosca azul,
No
alto, mais os distintos quilates dessa poesia lhe ressarcem
sobradamente a quantidade. Com todas as suas brilhantes e não raro
tocantes qualidades de emoção, faltou sempre à poesia brasileira profundeza
de sentimento. Viva,
eloqüente até à facúndia,
exuberante, colorida e vistosa,
carece por via de regra de intensidade na sensação e de sobriedade
na expressão. Não quero dizer que estas virtudes lhe faltem de
todo, mas apenas que não são propriamente as suas. Machado de Assis
é um dos poucos poetas nossos que as teve, e distintamente, e as
manifestou, como já ficou notado, desde a sua estréia. Elas,
principalmente sob o aspecto
da profundeza, se lhes
aperfeiçoaram nos citados poemas das
Ocidentais. É ainda que aí ele não cedeu à moda do momento,
nem acompanhou inconsideradamente,
como fizeram tantos outros,
a onda modernista. Apenas desenvolveu-se no
sentido dela, que era o mesmo sentido que trazia
o seu pensamento, o
do ceticismo sem desespero
e do pessimismo benevolente, ambos
de raiz. Mais que sinais, amostras de ambos encontram-se já
nas suas coleções anteriores.
O que, distinção raríssima,
acaso única, se não encontra em
nenhum destes poemas é a indiscreta transplantação para a poesia de
cousas científicas ou filosóficas ou algo da respectiva gíria. Tudo
nele, como no verdadeiro poeta, se faz sentimento e sensação e como
tal se exprime, e em forma que é, sem o rebuscado do Parnasianismo,
porventura a mais perfeita alcançada pela nossa
poesia.
Poeta dos mais importantes da literatura brasileira, é Machado de
Assis o mais insigne dos
seus prosadores e, no
domínio que lhe é
próprio, a ficção romanesca, o
maior dos nossos escritores. Não é somente um escritor vernáculo,
numeroso, disserto e elegantíssimo. Às qualidades de expressão que
possui como nenhum outro, junta as de pensamento, uma filosofia
pessoal e virtudes literária muito particulares, que fazem dele um
clássico, no mais nobre sentido da palavra, — o único talvez da
nossa literatura.
Como prosador compreende a sua obra, além de numerosos
livros de conto, romances, teatro,
crítica e crônicas
jornalísticas. Do conto foi
ele, se não o
iniciador, um dos primeiros cultores e porventura o primacial
escritor na língua portuguesa.
Efetivamente
ninguém jamais nesta contou
com tão leve graça,
tão fino espírito, tamanha
naturalidade, tão fértil e graciosa imaginação,
psicologia tão arguta, maneira tão interessante e expressão tão
cabal, historietas, casos, anedotas de pura
fantasia ou de perfeita
verossimilhança, tudo recoberto e realçado de
emoção muito particular, que varia entre amarga e prazenteira, mas
infalivelmente discreta. Histórias de amor, estados d’alma, rasgos
de costumes, tipos, ficções da história ou da vida, casos de
consciência, caracteres, gente e hábitos de toda a casta, feições
do nosso viver, nossos mais íntimos sentimentos e mais peculiares
idiossincrasias, acha-se tudo
superior e excelentemente
representado, por um milagre
de transposição artística,
nos seus contos. E
sem vestígio de esforço,
naturalmente, num estilo maravilhoso de vernaculidade, de precisão,
de elegância.
No romance estreou
Machado de Assis, em
1872, com o já citado
Ressurreição. A grande novidade deste romance
era não ser senão o primeiro de análise de
caracteres e temperamentos, o primeiro ao menos que
com este só propósito aqui
se escrevia. Não trazia
vislumbre de intencional
brasileirismo vigente. Ao
invés declaradamente apontava
a outra cousa que
o romance de costumes. O interesse
do livro era deliberadamente procurado no “esboço de uma situação e no contraste
de dois caracteres”. Alencar com
Cinco minutos,
A viuvinha
(1856), aliás simples novelas,
Lucíola (1862) e
Diva
(1864), e o mesmo Manoel de Almeida com
o Sargento de
milícias (1857) podem em
rigor cronológico ser considerados
os precursores do nosso romance da vida urbana ou mundana, da
pintura de caracteres e situações e que estes se encontram e
definem, ou mesmo do romance que ao tempo ainda se chamava de
fisiológico e que depois se chamaria de psicológico. Mas o seu
criador, pela arte consciente e engenho com que já o fez em
Ressurreição, e o
ensaiara com bom sucesso
nos contos e novelas
que precederam este livro, foi Machado de Assis. Neste mesmo
romance, como naquelas ficções menores,
embora refugissem ao
particularismo nativista, havia
já uma notação exata, ou antes uma clara
intuição das nossas íntimas peculiaridades nacionais. O sempre
progressivo exercício desta faculdade de análise do ambiente,
estreme das suas fáceis representações pitorescas, fariam de
Machado de Assis não obstante o seu
desprendimento do brasileirismo,
qual o entendiam aqui,
porventura o mais
intimamente nacional dos
nossos romancistas, se não
procurarmos o nacionalismo somente nas exterioridades pitorescas da
vida ou nos traços mais notórios do indivíduo ou do meio. Como o
que sobretudo lhe interessa é a alma das cousas e dos homens, é ela
que ele procura exprimir e que geralmente exprime com insigne
engenho e arte. Ainda em algum tipo, episódio, ou cena de pura
fantasia, nunca a ficção de Machado de Assis afronta o nosso senso da íntima
realidade. Assim, por exemplo, nesse conto magnífico
O
Alienista ou nessoutra jóia
Conto alexandrino, como na
admirável invenção de
Brás Cubas, e todas as vezes que a sua
rica imaginação se deu largas para fora da realidade vulgar, sob os
artifícios e os mesmos desmandos da fantasia, sentimos a verdade
essencial e profunda das cousas, poderíamos chamar-lhe um realista
superior, se em literatura o realismo não tivesse sentido
definido.
Havia entretanto no primeiro romance de Machado de Assis e
ainda mais talvez nos que mais de perto o seguiram,
A mão e a luva (1874),
Helena
(1876), visíveis ressaibos de romantismo senão do
Romantismo. Temperava-os, porém, já, diluindo-os num sabor mais
pessoal e menos de escola, e sua nativa ironia e a sua desabusada
visão das cousas, que o forravam ao romanesco, à sentimentalidade
amaneirada que tanto viciou e desluziu a nossa ficção. E, mais dons
de expressão em que ficou até agora único e que, sob este aspecto
ao menos, o sobrelevam a todos os
nossos escritores, e, não
receio dize-lo, ainda aos
portugueses seus contemporâneos.
Em
1881, com as
Memórias póstumas de Brás Cubas
atingia Machado de Assis o apogeu do seu engenho literário,
num romance de rara originalidade, uma obra, a despeito do seu tom
ligeiro de fantasia humorística, fundamente meditada e fortemente
travada em todas as suas partes, porventura a mais excelente que a
nossa imaginação já
produziu. As
Memórias
póstumas de Brás Cubas
são a epopéia da irremediável tolice humana, a
sátira da nossa incurável ilusão, feita por um defunto
completamente desenganado de tudo. Desde a sua cova conta-nos Brás
Cubas, numa língua primorosa de simplicidade, a sua vida do
nascimento à morte, a sua família, a sua educação, o seu meio, os
seus primeiros namoros de rapaz e amores de
homem, as suas ambições,
os seus amores adulterinos
com certa Virgília, enfim, quanto na vida
sequer um momento o interessou ou ocupou de modo a impressionar-lhe
a memória e o entendimento. E só estas faculdades se deixaram nele
tocar por tais sucessos. Viu Brás Cubas, ainda pressentiu a vaidade
de tudo, e como ao cabo todas as cousas são naturais, necessárias,
determinadas por um conjunto de condições que não são
essencialmente nem boas, nem más, e pelas quais é sábio não nos
abalarmos, não se deixou jamais comover. No fundo de tudo há sempre
um todo nada de ridículo, de comédia, de falsidade, de fingimento,
de cálculo. Tolo é quem se deixa enganar com as aparências,
“empulhar”, segundo o verbo muito do gosto de escritor. Mas a
humanidade, a sociedade, é assim feita e não há revoltar-nos contra
ela e menos querê-la outra. A vida é boa, mas com a condição
de não a tomarmos
muito a sério. Tal
é a filosofia de
Brás Cubas, decididamente homem de muitíssimo
espírito. Ele viveu quanto pôde, segundo este seu pensar, e se com
o seu pessimismo conformado e indulgente não se achou logrado “ao
chegar ao outro lado do mistério”, foi porque verificou um pequeno
saldo no balanço final da sua existência. “Não tive filhos, —
escreveu na última página das suas
Memórias, — não transmiti
a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Desta
arriscada repetição do velho tema da vaidade de tudo e do engano da
vida, a que o Eclesiaste bíblico deu a consagração algumas vezes
secular, saiu-se galhardamente Machado
de Assis. Transportando-o
para o nosso meio,
incorporando-o no nosso pensamento, ajustando-o às nossas mais
íntimas feições, soube renova-lo pela aplicação particular, pelos
novos efeitos que dele tirou, pelas novas faces que lhe descobriu e expressão
pessoal que lhe deu.
As
Memórias
póstumas de Brás Cubas
eram o rompimento tácito,
mais completo e definitivo de Machado de Assis, com o
Romantismo sob o qual nascera, crescera e
se fizera escritor. Aliás
conquanto necessariamente lhe
sofresse a influência, nunca jamais se lhe
entregara totalmente nem lhe sacrificara o que de pessoal e
original havia no seu engenho, e acharia
em Brás Cubas
a sua cabal expressão. A sua primeira obra de contador,
Histórias da meia noite (1869),
Contos fluminenses
(1873), com os seus primeiros livros de romancista, o já nomeado
Ressurreição,
A mão e a luva
(1874),
Helena (1876),
Iaiá Garcia (1878), traziam ressaibos
românticos, embora atenuados pelo congênito pessimismo e nativa ironia
do autor. Ora o Romantismo não comportava nem a ironia nem o
pessimismo, na forma desenganada, risonha e resignada de Machado de
Assis. Mas os contos que sucederam imediatamente
àqueles, Papéis avulsos
(1882), Histórias sem data
(1884), Várias histórias (1905), muitos
deles anteriores a Brás Cubas, trazem já evidente o
tom deste. Desde, portanto, os anos de 70, renunciando ao escasso
Romantismo que nele havia, criava-se Machado de Assis uma maneira
nova, muito sua, muito particular e muito distinta e por igual
estreme daquela escola e das novas modas
literárias. Nessa maneira,
particularmente
em Brás
Cubas e
em Quincas
Borba (1891), que se lhe seguiu
e que a certos respeitos o continua, Vislumbra-se mais do que se percebe, o
remoto influxo dos humoristas ingleses, e antes dos seus processos formais que
do fundo, que este é de raiz do autor. Com a escrupulosa
probidade literária que foi
uma das suas virtudes,
ele próprio o publicou no prefácio do primeiro.
Em Dom
Casmurro (1899), em
Esaú e Jacó (1904) e sobretudo
em
Memorial de Aires (1908), o seu último livro, desaparecem
esses laivos de influência peregrina. Como correspondessem perfeitamente à sua
própria índole literária, transubstanciaram-se-lhe no engenho e
estilo.
Com a variedade de
temas, de enredos de
ações, de episódios, que
distinguem cada romance de Machado de Assis no conjunto de sua
obra, há em todos uma rara unidade de
inspiração, de pensamento e de expressão. Todos,
porém, representam, talvez
com demasiado propósito, mas
sem excesso de demonstração, a
tolice e a malícia humanas. É este o tema geral, e ao mesmo tempo o
duende, o espantalho do escritor. Ele descobriu esses estigmas e os expôs
sob todas as suas
faces e modalidades, até
ao amor paterno ou
na ternura materna, nas ações mais sublimes e
nos atos mais corriqueiros, e não por um propósito também malicioso
ou simplesmente literário, mas porque os seus olhos de artista – o
que pode ser uma inferioridade ou um defeito – não os viam senão
assim, e a sua íntima sinceridade lhe não permita modificar a
própria visão por comprazer com o gosto vulgar. Mas como a sua
faculdade mestra é a imaginação humorística, isto é, a visão
pessimista das cousas, através da inteligência da sua necessidade e
contingência e do sentimento da nossa importância contra elas, as
viu com risonho desdém
ou com irônica benevolência.
Essa visão ele a tem
agudíssima, e a sua análise das almas sem alguma presunção de
psicológica, antes desdenhosa do epíteto, tem uma rara percepção
dos seus mais íntimos segredos.
Dom Casmurro é exemplo desta
sua superior faculdade de romancista, comprovada aliás em toda a
sua obra. É o caso de um homem inteligente, sem dúvida, mas
simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que ainda
menina amara, que o enfeitiçara
com a sua faceirice
calculada, com a sua
profunda ciência congênita de dissimulação, a
quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento
pacato. Ela o enganara com o seu melhor amigo, também um velho
amigo de infância, também um dissimulado, sem que ele jamais o percebesse
ou desconfiasse. Somente o veio a descobrir quando lhe morre num
desastre o amigo querido e
deplorado. Um olhar lançado
pela mulher ao cadáver,
aquele mesmo olhar que trazia “não sei que fluido misterioso
e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se
retira da praia, nos dias de ressaca”, o mesmo olhar que outrora o
arrastara e prendera a ele e que ela agora lança ao morto,
lhe revela a infidelidade
dos dois. Era impossível
em história de um adultério levar
mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais
indicá-o. Machado de
Assis é, com a
justa dose de sensualismo
estético indispensável, um autor extremamente decente. Não por afetação
de moralidade, ou por vulgar pudicícia, mas em respeito da sua
arte. Bastava-lhe saber que a obscenidade, a pornografia, seriam um
chamariz aos seus livros, para evitar esse baixo recurso de
sucesso, ainda que a fidalguia nativa dos seus sentimentos não
repulsasse tais processos.
Porque este
sujeito tímido, apagado,
pequenino, modesto, que parecia
deslizar na vida com a preocupação de não incomodar a ninguém, de
não ser molesto a pessoa alguma, era, de fato, um homem com
energias íntimas, caladas, recônditas, mas
invencíveis. Assim como
fazer-se uma posição social,
nunca transigiu com a
sociedade e suas mazelas,
também nunca, como escritor,
condescendeu com as
modas literárias que não
dissessem com o seu
temperamento artístico, ou seguiu por amor da voga as correntes
mais no gosto do público. A este pode afirmar-se que não fez em
toda a sua obra a menor concessão.
Já velho, com sessenta e oito anos, e
não foi jamais robusto, escreveu ainda um livro
admirável, o
Memorial de
Aires, inspirado na
saudade da esposa e
companheira muito amada,
já chorada no sublime
soneto que antepusera às
Relíquias da casa velha, o primeiro que deu à luz depois da
morte dela.
Memorial de Aires é talvez o único
livro comovido, de uma comoção que se não procura esconder ou
disfarçar e de emoção cordial e não somente estética, que escreveu
Machado de Assis. Com a peregrina arte de transposição que possuía
e que só revelaria plenamente a história de seus livros, mas que
podemos avaliar pelo pouco que dela sabemos, idealizou Machado de
Assis, num suave romance contado por terceiro, um velho diplomata
espirituoso e desenganado, o Conselheiro Aires, o seu palácio
e feliz viver doméstico.
Não que o indicasse
ou sequer o insinuasse.
Descobriram-no os que lhe conheceram a vida, e eram bem poucos,
pois nunca se “derramou” e odiava
os “derramados”, na emoção
nova que discretamente,
sobriamente, recatadamente, como que receosa de profanar na
publicidade cousas íntimas e sagradas, aparecia nesse delicioso
livro, um dos mais tocantes da nossa literatura.
As
estréias literárias de
Machado de Assis coincidiram
com o melhor momento do nosso
teatro em toda a evolução da nossa literatura, entre os anos de 50 e 70,
particularmente o decênio intermédio. Os melhores dos nossos literatos de
então escreveram para o teatro e acharam quem os representasse e
quem os fosse ouvir, o que nunca mais aconteceu depois. A nossa
bibliografia teatral dessa época é a mais copiosa de toda a nossa
literatura, e havia pelo teatro nacional interesse e
curiosidade que depois
desapareceu de todo, com
a concorrência do teatro
estrangeiro importado por companhias alienígenas. A influência do
momento e o gosto que pessoalmente tinha pelo
teatro, mais que decidida vocação,
levaram Machado de Assis a tratá-lo. Com a segura consciência que
do seu próprio engenho tinha, ele próprio mal se iludira sobre a
sua aptidão para o teatro. Numa carta prefácio de suas peças publicadas em
1863,
O caminho da porta e
O
protocolo, confessava, podemos crer que sinceramente: “Tenho o teatro por
cousa muito séria e as minhas forças por cousa insuficiente; penso
que as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e
apuram-se com o tempo e o trabalho...” Sem dúvida, mas as
qualidades, sobretudo as inferiores, as habilidades do ofício de
autor dramático, a acomodação ao gosto público e à perspectiva
particular da rampa, uma porção de dons somenos, mas essenciais ao bom sucesso
na arte inferior que é o teatro, faltavam a Machado de Assis. No teatro nunca
pode ele passar de composições ligeiras, ao gosto de “provérbios” franceses,
sainetes, contos porventura espirituosamente dialogados, algumas encantadoras de
graça fina e elegante estilo, mas
sem grande valor teatral.
Tais são os
Deuses
de casaca, comédia levemente
satírica da nossa vida
social e política, em
formosos alexandrinos, em que
se revê a influência
de Castilho;
Tu, só
tu, puro amor, pequena obra-prima, alguma
cousa como uma deliciosa figurinha de Tânagra no meio das esculturas de
Fídias;
Não consultes médico, sainete digno de Musset.
Tudo, porém, não passava
de um ano, excelente
como literatura amena para
Deleitar-nos uma hora, mas sem a ação, a força, a emoção que deve trazer a obra
teatral. Basta que esta por sua mesma natureza se enderece a uma platéia, que
será sempre em maioria composta de ignaros ou simples, para que lhe não bastem
as qualidades propriamente literárias.
Como crítico,
Machado de Assis foi
sobretudo impressionista. Mas um
impressionista que, além da cultura e do bom gosto literário inato e
desenvolvido por ela, tinha
peregrinos dons de psicólogo
e rara sensibilidade estética.
Conhecimento do melhor das
literaturas modernas, inteligência
perspicaz desabusada de modas
literárias e hostil a
todo pedantismo e dogmatismo,
comprazia-lhe principalmente na
crítica a análise da
obra literária segundo a impressão
desta recebida. Nessa análise revelava-se-lhe a rara finura e o apurado gosto.
Que não era incapaz de outra espécie de crítica em que entrasse o estudo das
condições mesológicas em que se produziu a obra literária, deu mais de uma
prova. Com o fino tato literário e reflexivo juízo, que o assinalam entre os
nossos escritores, no ensaio crítico atrás citado sobre o
Instituto da nacionalidade, na nossa literatura ajuizou com
acerto, embora com a benevolência que as mesmas condições da sua vida literária
lhe impunham, os seus fundadores e apontou com segurança os
pontos fracos ou duvidosos
de certos conceitos
literários aqui vigentes, emendando o que neles lhe
parecia errado e aventando opiniões que então, em 1873, eram
de todo novas. Ninguém, nem antes nem depois, estabeleceu mais exata e mais
simplesmente a questão do indigenismo da nossa literatura, nem disse cousas mais
justas do indianismo e da sua prática.
Em
suma
Machado de Assis, sem ter
feito ofício de crítico, é como tal um dos mais capazes e mais sinceros que
temos tido. Respeitador do trabalho alheio, como todo o
trabalhador honesto, mas sem
confundir esse respeito
com a condescendência camaradeira, estreme de animosidades
pessoais ou de emulações profissionais, com o mínimo dos infalíveis preconceitos
literários ou com a força de os dominar,
desconfiado de sistemas e
assertos categóricos, suficientemente
instruído nas cousas literárias
e uma visão própria,
talvez demasiadamente pessoal, mas por isso mesmo
interessante da vida, ninguém mais do que ele podia ter sido
o crítico cuja falta
lastimou como um dos
maiores males da nossa literatura.
Em compensação deixou-lhe um incomparável modelo numa obra de criação que ficará
como o mais perfeito exemplar do nosso engenho nesse
domínio.
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Fonte:
Machado de Assis por seus
contemporâneos, disponível digitalmente no site da
Biblioteca Nacional Digital do
Brasil