Do nome do Brasil

A Série "Fundo do Baú - História" de hoje trará um texto de autoria de Frei Vicente do Salvador, intitulado "Do nome do Brasil", escrito no remoto ano de 1627. O texto trata da origem do nome do nosso país, bem como outros assuntos correlatos.

Do nome do Brasil

O dia em que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz, que no capítulo atrás dissemos, era 3 de maio, quando se celebra a invenção da Santa Cruz, em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra, que havia descoberta, de Santa Cruz, e por este nome foi conhecida muitos anos: porém como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio, que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha nos desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome, e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado, de cor abrasada e vermelha, com que tingem panos, que o daquele divino pau que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da igreja, e sobre que ela foi edificada, e ficou tão firme e bem fundada, como sabemos, e porventura por isto ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de estado, e lhe chamaram estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável, que com não haver hoje 100 anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoados alguns lugares, e sendo a terra tão grande, e fértil, como adiante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.

Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores; aos reis pelo pouco caso que haviam feito deste tão grande estado, que nem o título quiseram dele, pois intitulando-se senhores de Guiné, por uma caravelinha que lá vai, e vem, como disse o Rei do Congo, do Brasil não se quiseram intitular, nem depois da morte de el-rei d. João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos; e deste mesmo modo se haviam os povoadores, os quais por mais arraigados, que na terra estivessem, e mais ricos que fossem, tudo pretendiam levar a Portugal, e se as fazendas e bens que possuíam soubessem falar também lhes haveriam de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é papagaio real para Portugal; porque tudo querem para lá, e isto não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem, e a deixarem destruída.

Donde nasce também, que nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. Não notei eu isto tanto quanto o vi notar um bispo de Tucuman da Ordem de S. Domingos, que por algumas destas terras passou para a Corte, era grande canonista, homem de bom entendimento e prudência, e assim ia muito rico; notava as coisas, e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos, e um peixe, para comer, e nada lhe traziam: porque não se achava na praça nem no açougue, e se mandava pedir as ditas coisas, e outras muitas a casas particulares lhas mandavam, então disse o bispo verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa; e assim é, que estando as casas dos ricos ainda que seja a custa alheia, pois muitos devem quanto têm providas de todo o necessário, porque tem escravos, pescadores, caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e de azeite, que compram por junto: nas vilas muitas vezes se não acha isto a venda. Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque atendo-se uns aos outros nenhum as faz, ainda que bebam água suja, e se molhem ao passar dos rios, ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto vem de não tratarem do que há cá de ficar, senão do que hão d e levar para o reino.

Estas são as razões porque alguns, como muitos dizem, que não permanece o Brasil nem vai em crescimento; e a estas se pode ajuntar a que atrás tocamos de lhe haverem chamado estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz, com que pudera ser estado, e ter estabilidade e firmeza.

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Fonte:
Frei Vicente do Salvador: História do Brasil, Livro Primeiro: “Em que se trata do descobrimento do Brasil, costumes dos naturais, aves, peixes, animais e do mesmo Brasil”, escrita na Bahia a 20 de dezembro de 1627. Dedicatória: Ao licenciado Manuel Severim de Faria Chantre na Santa Sé de Évora, disponível digitalmente no site: Domínio Público

Machado de Assis por seus contemporâneos: Euclides da Cunha


EUCLIDES DA CUNHA (1866-1909)
Euclides da Cunha nasceu nasceu em Cantagalo, Rio de janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 15 de agosto de 1909. Foi jornalista, engenheiro, professor, ensaísta, historiador, sociólogo e poeta, autor da famosa obra “Os Sertões”, escrita por ocasião da Guerra de Canudos, no fim do século XIX. O site daAcademia Brasileira de Letras,em sua Biografia, discorre sobre a questão: “Quando irrompeu o movimento de Canudos, São Paulo colaborou com o país na repressão do conflito, mandando para o teatro da luta o Batalhão Paulista. Euclides foi encarregado pelo jornal Estado de S. Paulo para acompanhar como observador de guerra o movimento rebelde chefiado por Antônio Conselheiro no arraial de Canudos, em pleno sertão baiano. Estava ele no teatro de operações de 1o a 5 de outubro de 1897 e ali assistiu aos últimos dias da luta do Exército com os fanáticos de Antonio Conselheiro. Em Salvador, havia procedido a um profundo estudo prévio da situação no que respeita aos aspectos geográfico, botânico e zoológico da região, bem como aos antecedentes sociológicos do conflito. Documentou-se de modo exaustivo e exato, formando sobre o caso um juízo imparcial e objetivo. Enviou então para o jornal as suas reportagens, que iriam transformar-se no seu grande livro, Os sertões.”


Machado de Assis aos 25 anos

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A última visita

Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o triste desenlace da sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dava o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras ontem meninas que ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de famílias comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados nos álbuns caprichosos. As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a palidez completa no recinto onde a saudade glorificava uma existência, além da morte.

No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranqüilos.

E compreendia-se desde logo a antilogia de corações tão ao parecer tranqüilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incompatível e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor. Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento, Apressava-se em pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbravam em sua primeira e última dissimualação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo de sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir, e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranqüila e soberana.

E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heróico na morte...

Desapontamento. Mas aquela placidez augusta despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Octavio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento. De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu as outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas –, que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional.

Era pelo menos desanimador tanto descaso – a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade de uma existência complexa – quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem 40 anos de literatura gloriosa...

Neste momento, precisamente ao anunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.

Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 ou 18 anos, no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dize-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus Livros, que o encantavam. Por isso, ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visita-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograva vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se lhe não era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado.

E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.

A porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.

Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.

Ele saiu – e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.

No fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações.

Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade...

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Fonte:
Publicado no Jornal do Commercio em 30 de setembro de 1908 (também a imagem) estão
disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil

Machado de Assis por seus contemporâneos: Araripe Júnior



ARARIPE JÚNIOR (1848-1911)
Araripe Júnior nasceu na cidade de Fortaleza, no Estado do ceará, no ano de 27 de junho de 1848, e faleceu na capital do Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 1911. Foi um conhecido crítico literário. Segundo consta em sua Biografia publicada no site da Academia Brasileira de Letras: “Não é o ficcionista, mas o crítico literário que constitui a importância de Araripe Júnior na literatura brasileira. Dotado de grande sensibilidade para o fato estético e de grande acuidade para a análise; dono de vasta cultura geral e literária, aplicou-se a estudar a literatura brasileira na obra de seus autores representativos: José de Alencar, Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo, e outros. Assim, deixou vasta obra crítica, formando com Sílvio Romero e José Veríssimo a trindade crítica da época positivista e naturalista. Sua obra crítica, dispersa pelos periódicos, desde os tempos do Ceará, só em parte foi publicada em livro, durante sua vida. No último livro, Ibsen e o espírito da tragédia (1911), sem abandonar a preocupação nacionalista, alçou-se a um plano de universalidade, buscando a razão de ser da tragédia humana, através da obra dos grandes trágicos, da Grécia ao século XIX. Como crítico, era um conselheiro amável e cheio de compreensão, sobretudo pelos estreantes.”



Escultura de Machado de Assis

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Sobre Machado de Assis, de Sílvio Romero

O último trabalho de tomo, dado aos prelos por Sílvio Romero, foi um estudo sobre Machado de Assis.

Um fenômeno curioso é o que se nota nesse estudo. Sílvio Romero, a cada instante, declara que mudou de temperamento, amainou as velas e acha-se predisposto a uma grande complacência. Machado de Assis não lhe parece ser o homem impossível que ele atacava em 1872 e 1880. Tem qualidades e representa um bom esforço literário. Todas estas declarações, porém, são ilusórias; e o crítico, que, segundo me parece, não quis concentrar o seu espírito na obra, já bastante extensa, do autor de Brás Cubas, faz ressurgir suas antigas antipatias, recorrendo ao seu processo predileto de esbordoar os outros com essa clava de Hércules chamada Tobias Barreto.

Com justa razão, geralmente se achou extravagante que o crítico escolhesse o falecido lente de criminologia do Recife para confrontar com o nosso, pode-se dizer, único humorista. Se ainda o fizesse para mostrar o contraste dessas duas naturezas, vá; mas não se deu isto: o autor da História da Literatura Brasileira pretendeu, antes de tudo, mostrar que Tobias era um humorista valente e incomparável, diante das deliqüescências de Machado de Assis.

Não sei se deva dizer que o que ali se expende, a respeito do autor de Dias e Noites, causou a impressão de um corpo estranho metido à força numa garrafa de azeite. O livro, na sua maior parte, repete o que Sílvio Romero já disse vinte vezes sobre o talento indisputável do grande sergipano; apenas acrescenta algumas novas considerações relativas ao seu temperamento alegre. Tobias, porém, podia ser tudo, menos um humorista; e nem ao crítico apadrinham as opiniões de Schérer e Taine, quando definem esse gênero de literatura.

Que pode haver de comum entre esse excentricismo ou humorismo anglosaxônio e a alegria ruidosa de Tobias? Conheci o ilustre morto nos seus melhores tempos; e posso garantir, pelo que observei e tenho lido desse autor, que nunca, sobre a Terra, pisou homem de alma menos tristonha. Tobias era um boêmio incorrigível, genial, talvez, para cujo temperamento maligno nada havia superior, em deleite, ao exercício do espírito de tropa. Nas questões mais intricadas e sérias, raro era que ele não desse largas ao seu gênio e, de súbito, não irrompesse em verdadeiras molecagens para fazer encavacar os seus antagonistas. Ainda tenho presente uma dessas troças. Examinavam um estudante em direito eclesiástico, e Tobias, no impedimento de um dos catedráticos, fazia parte da mesa-examinadora. Perguntara o lente da cadeira, ao examinando, o que era cardeal. "Cardeal", disse o rapaz, "é uma dignidade da igreja que fica metida entre o Papa e o bispo". Como era natural, o examinador irritou-se com a resposta e começou a invectivar a ignorância do estudante. Tobias ouvira tudo isto sorrindo e puxando um bigode hirsuto. De súbito, brilharam-lhe os olhos! Dirigiu-se, então, ao colega, e, interrompendo-o: "Perdão; agora, eu..." E virou-se para o argüido: "Diga, Sr. estudante, que o seu professor não lhe quer revelar a verdade verdadeira. Respondeu bem. Cardeal é uma espécie de intruso na igreja, que lambe os pés do Papa, enquanto não lhe chega a vez de ser lambido, e que olha de esguelha para o bispo, cuja autoridade não exerce, por ser eunuco, nem respeita, por ser safado. E há outras coisas mais que essa dignidade acumula; mas que só no compêndio de Bocácio o senhor terá ocasião de aprender, logo que se liberte desse direito espoliástico."

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Fonte:
Fragmento de “Sílvio Romero Polemista”. In: ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Araripe Júnior: teoria, crítica e história. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Edusp, 1978, (também a imagem), estão
disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil

Machado de Assis por seus contemporâneos: João do Rio



JOÃO DO RIO (1881-1921)
João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, nasceu no Rio de Janeiro, em 5 de agosto de 1881, vindo a falecer na mesma cidade em 23 de junho de 1921. Foi jornalista, cronista, contista e teatrólogo. Em sua Biografia publicada no site da Academia Brasileira de Letras, consta que: “Nos diversos jornais em que trabalhou, granjeou enorme popularidade, sagrando-se como o maior jornalista de seu tempo. Usou vários pseudônimos, além de João do Rio, destacando-se: Claude, Caran d’ache, Joe, José Antônio José. Como homem de letras, deixou obras de valor, sobretudo como cronista. Foi o criador da crônica social moderna. Como teatrólogo, teve grande êxito a sua peça A bela madame Vargas, representada pela primeira vez em 22 de outubro de 1912, no Teatro Municipal.”

João do Rio também teceu comentários sobre o nosso grande Machado de Assis. Vejamos...



Ilustração publicada na revista "Fon-Fon", edição de 3 de outubro de 1908, uma homenagem ao genial escritor brasileiro: Machado de Assis.

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Machado de Assis

Naturalmente, a ausência de certos nomes notáveis num inquérito, que procurava as respostas dos corifeus dos espíritos brasileiros, poderá parecer estranha. Talvez o seja, mas, como todas as coisas verdadeiramente estranhas, é perfeitamente explicável. Há nomes que deviam aqui estar, mas que não estão porque a isso se opuseram uma sensibilidade grande, a vaidade doentia, a noção de responsabilidades graves e principalmente talvez a balbúrdia das idéias. A sensibilidade grande é a do ilustre mestre Machado de Assis.

Quando fui pessoalmente levar-lhe o inquérito, o admirável escritor recebeu me com um acesso de gentilezas, que nele escondem sempre uma pequena perturbação.

— Um inquérito? Pois não: às suas ordens, com todo o gosto.
Passaram-se os dias. Voltei à carga.
— Francamente, disse-me o autor do Brás Cubas, o assunto é grave, é muito grave. Mas eu respondo, respondo quando tiver ânimo para escrever.
Logo os amigos e admiradores do mestre disseram-me:
— Perdes o tempo, o Machado não responde...

Resolvi então cultivar a relação preciosa em bocados de palestra, ouvidos nos balcões do Garnier, por onde todos os dias passa o glorioso escritor. Soube assim que o Brás Cubas fora ditado, durante uma moléstia de olhos de Machado, à sua cara esposa; que o humorista incomparável da "Teoria do Medalhão" tem uma vida de uma regularidade cronométrica, que as suas noites passa-as a tentar o sono...

Espírito de tamanho fulgor tem, entretanto, a nevrose de se incomodar e sofrer com os pequenos nadas da existência. Se por esquecimento deixa de cumprimentar um homem, perde-se em conjecturas. Que irá pensar o homem? Que dirá dele? Nesse período, uma vez, o grande mestre chegou à livraria nervosíssimo. E contou por quê. Fora à secretaria um cavalheiro pedir-lhe qualquer coisa. Não o satisfizera e estava incomodado com isso quando passou o contínuo com a bandeja do café. Aceita uma xícara? Se me fizer companhia! — Ora eu não tomo café; mas já tinha recusado ao homem uma coisa e achei que seria demais não o acompanhar. Tomei a xícara e estou com dores de cabeça...

Do inquérito cheguei a saber que Machado de Assis tem como livros de cabeceira o Hamlet e o Prometeu, que acha as predileções passageiras como o próprio homem, e respeita a mocidade olhando-lhe as extravagâncias com um pasmo sincero.

Mas, por fim, o mestre incontestável percebeu que eu o acompanhava para lhe arrancar frases e tornou seco um pedaço de intimidade nascente entre o meu louvor e a sua bonomia.

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Fonte
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Fragmento extraído de RIO, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1905,
disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
Imagem também disponível na BNDB

Anúncios antigos de estabelecimentos comercais


Anúncios antigos de alguns estabelecimentos comercias, dois dos quais da segunda metade do século XIX, localizados na maravilhosa cidade do Rio de Janeiro.

SALÃO ELEGANTE "MEIRA & VIANNA - ANÚNCIO DE 1867

RESTAURANTE "DELMAS" - ANÚNCIO DE 1867

"CASA STANDARD" - ANÚNCIO DE 1910

"CASA STANDARD" - ANÚNCIO DE 1909

"CASA STANDARD" - ANÚNCIO DE 1909

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Fonte:
Revista "Ba-ta-clan" (anúncios: 1 e 2), edições de 1867, disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
Revista "Ilustração Brazileira" (anúncios: 3, 4 e 5),
disponível digitalmente no site: Domínio Público

Machado de Assis por seus contemporâneos: José Veríssimo



JOSÉ VERÍSSIMO (1857-1916)

José Veríssimo nasceu em Óbidos, estado do Pará, em 8 de abril de 1857, e faleceu no Rio de Janeiro, em 2 de fevereiro de 1916. Foi jornalista, professor, educador, crítico e historiador literário. Sobre sua Biografia publicada no site da Academia Brasileira de Letras, consta que ele “constitui com Araripe Júnior e Sílvio Romero a trindade crítica da era naturalista, influenciada pelo evolucionismo e pela doutrina determinista de Taine; mas seus pontos de vista e processos eram diferentes. Araripe Júnior, mais independente intelectualmente, com mais sensibilidade artística e mais estilo, mostrou até onde ia sua ligação com Taine, de cuja doutrina aceitava mais o fator meio, diferentemente de Sílvio Romero, que enfatizou a raça e foi um metodizador e um inovador, ao aplicar as suas doutrinas científicas a muitos dos fatos da nossa literatura, coordenando-os sobre uma base de doutrina social e demonstrando o que existia de mais ou menos organicamente ativo no desenvolvimento da nossa história literária. A crítica de José Veríssimo, por sua vez, é penetrada de um constante espírito de equilíbrio e de ordem, a que ele juntava, não raro, um pensamento filosófico e moral para enriquecê-la de uma autoridade maior, reforçando o crítico no educador.”



Ele também externou suas idéias sobre o nosso grande Machado de Assis. Vejamos...



Reprodução de fotografia tirada por ocasião de um almoço oferecido a Lúcio de Mendonça, no Rio de janeiro, no dia 3 de março, com a presença dos seguintes nomes: (sentados) João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos; (em pé) Rodolfo Amoedo, Olavo Bilac, José Veríssimo, Sousa Bandeira, Felinto de Almeida, Henrique Bernardelli, Rodrigo Otávio e Heitor Peixoto (Biblioteca Nacional Digital do Brasil)
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Machado de Assis
Chegamos agora ao escritor que é a mais alta expressão do nosso gênio literário, a mais eminente figura da nossa literatura, Joaquim Maria Machado de Assis. No bairro popular, pobre e excêntrico do Livramento, no Rio de Janeiro, nasceu ele, de pais de mesquinha condição, a 21 de junho de 1839. Nesta mesma cidade, donde nunca saiu, faleceu, com pouco mais de 69 anos, em 29 de setembro de 1908. A data do seu nascimento e do seu aparecimento na literatura o fazem da última geração romântica. Mas a sua índole literária avessa a escolas, a sua singular personalidade, que lhe não consentiu jamais matricular-se em alguma, quase desde os seus princípios fizeram dele um escritor à parte, que tendo atravessado vários momentos e correntes literários, a nenhuma realmente aderiu senão mui parcialmente, guardando sempre a sua isenção. São obscuros e incertos os seus começos, os informes que deles há, duvidoso ou suspeitos. Ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda a espécie de cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo. De raiz odiava toda a publicidade, toda a vulgarização que não fosse puramente a dos seus livros publicados. Do seu mesmo trabalho literário, como de tudo o que lhe dizia respeito, tinha um exagerado recato. Refugia absolutamente às confidências tanto pessoais como literárias. Por cousa alguma quisera que as humildes condições em que nascera servissem para exalçar-lhe a situação que alcançara. Ao seu recatadíssimo orgulho repugnava, como um expediente vulgar, fazer entrar no lustre que conquistara esse elemento de estima. A sua biografia eram os seus livros, a sua arte era a sua prosápia. Não lhes quis misturar nada que pudesse parecer um apelo à benevolência dos seus contemporâneos em prol da exaltação do seu nome. Fazer reclamo da mesquinhez das suas origens, como é tão vulgar, lhe era profundamente antipático. Só a incapacidade de compreender natureza tão finamente aristrocrática como Machado de Assis e a esquisita nobreza destes sentimentos poderia reprochar-lhos.


Era dos engenhos privilegiados que, sentindo fortemente a vocação literária, com a clara consciência da necessidade de ajuda-la pela aplicação e trabalho, a si mesmo se educam. Fez-se ele próprio. Teria apenas freqüentado a ínfima escola primária da sua meninice, aprendido ao acaso das oportunidades algo mais do que ali lhe ensinaram, e lido assídua e atentamente. Precisando cuidar muito cedo de si, pois os pais, sobre paupérrimos, lhe morreram quando lhe começava a puberdade, trabalhou então, ao que parece, como sacristão da Igreja da Lampadosa, e depois caixeiro da pequena Livraria e Tipografia de Paula Brito, prazo dado dos escritores feitos ou por fazer da época. Talvez ali se iniciasse na arte tipográfica, que mais tarde parece exerceu como compositor na Imprensa Nacional. Desde 1856 pelo menos se encontram na Marmota Fluminense, “jornal de modas e variedades”, editado e redigido por aquele singular, estimável e prestimoso amador das nossas letras que foi Paula Brito, e colaborado por nomes depois nela notáveis, alguns poemas seus. Tem o tom melancolicamente sentimental, a religiosidade romântica e também laivos de descrença, da poesia daquele decênio.151 É de crer que Machado de Assis houvesse versejado desde antes dessas datas. Depois da Marmota, encontram-se-lhe versos na Revista Popular e Jornal das Famílias, de Garnier, na Biblioteca Brasileira, de Quintino Bocaiúva, e no Diário do Rio de Janeiro, de 1862. Da redação deste jornal, em lugar subalterno, fez parte com Saldanha Marinho, Quintino Bocaiúva e outros já então ou depois conhecidos jornalistas. Entrementes aprendera o inglês, língua pouco vulgar aos nossos literatos e cuja literatura não teria concorrido pouco para ajudar a tendência natural de Machado de Assis ao humor, de que foi aqui o único mestre insigne. Também lhe daria o esquisito sentimento de decoro que distingue a sua obra, e o defendeu das influências do naturalismo francês. Em 1863, da tipografia daquele jornal saiu o seu primeiro livro, um folheto, Teatro de Machado de Assis. Constava de duas comédias em um ato, representadas ambas no ano anterior e prefaciadas por Quintino Bocaiúva, que parece ter sido, com Paula Brito, o seu introdutor na vida literária. Desde então Machado de Assis mostrava-se a figura extraordinária e, em toda a significação do termo, distinta que viria a ser nas nossas letras, tanto pelo seu engenho como pela sua elevação moral. Estreante, publicava uma obra já notável pelas qualidades de espírito e composição, para a qual o seu prefaciador desenganadamente declarava que lhe não achava jeito, e a publicava sem apelar desse juízo, acaso rigoroso. Fizera teatro não só porque o momento, o de maior florescimento do nosso, lho acoroçoava, mas por confessada ambição juvenil de ensaiar as forças nesse gênero que o atraía, cuidando que nas qualidades para ele se apurariam com o tempo e trabalho. Mas só em 1864, com as Crisálidas, é que verdadeiramente começa a sua vida literária, não mais como tentativa, senão como atividade nunca descontinuada. Vinte e dous poemas, escritos entre 1858 e 64, compunham essa coleção. Distinguiam-se pela emoção menos desbordante que o nosso comum lirismo e por um apuro de forma insólito na nossa poesia. À perfeição com que já manejava o alexandrino, verso ainda mal-aclimado na nossa língua, o pechoso cuidado que punha nos ritmos e rimas dos seus, para os fazer menos triviais e mais tersos sem perda da sonoridade, juntava-se o polido da língua e o escolhido da frase poética: Aspiração, que é de 1862, mormente Versos à Corina, de 1864, documentam este juízo. Tanto pelo valor do sentimento como da sua expressão, este último é uma das mais belas amostras do nosso lirismo. Como as obras verdadeiramente clássicas, isto é, que não são de ocasião ou de moda, tão vivo e novo hoje como à data da sua composição, há quase meio século. Estava-se ainda em pleno viço do subjetivismo e do sentimentalismo poético de Álvares de Azevedo e dos seus companheiros de geração, poesia de descrença e desconsolo, de desengano e tristeza, dominada pela idéia da morte. De todos esses poetas eram os versos, como dos seus dizia exatamente aquele, flores da sua alma, “murchas flores que só orvalha o pranto”. Machado de Assis, que, pela mesquinha condição em que viera ao mundo, não devia ter sofrido e lutado menos do que eles, tem desde então o altivo pudor de não pôr a sua alma em público, de não fazer estendal da sua desgraça. A musa é para ele a “consoladora em cujo seio amigo e sossegado respira o poeta o suave sono, quando a mão do tempo e o hálito dos homens lhe tenham murchado a flor das ilusões e da vida”. Este sentimento revigora-se no Prelúdio das Falenas, a sua segunda edição das poesias:


O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio,Um refúgio tranqüilo, um suave remédio:És tu, casta poesia, ó terra pura e santa!

Quando a alma padece, a lira exorta e canta;
E a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte,Cada lágrima nossa em pérola converte.

Não era das falazes costumeiras profissões de fé de poetas. Toda a sua vida literária, de um tão alevantado e peregrino no decoro, a confirma.


Vários são os motivos de inspiração nas Crisálidas desde as mais intensas emoções de poeta amoroso ou antes preocupado já, como nenhum outro aqui, do eterno feminino, e rasgos de pensamento que nos formosos tercetos de No Limiar, como nos belos alexandrinos de Aspiração, pressagiam o poeta perfeito das Ocidentais, até os temas subjetivos sentidamente idealizados do Epitáfio do México, de Polônia, de Monte Alverne. Mas nem naqueles havia o comum excesso de sentimentalismo, nem nestes algum exagero de idealismo, e uns e outros vinham estremes da moléstia constitucional da nossa poesia, a oratória.


Trazem certamente o cunho do tempo, porém com tal medida e acerto que, no seu encantador lirismo, muito nosso, nos são contemporâneos. É dos poucos de então que não envelheceram, isto é, que não precisam que nos ponhamos no diapasão do seu tempo para os sentirmos e estimarmos. Digam-no estas estrofes de Visio, que são de 64:


Eras pálida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,

Sobre as espáduas caíam...

Os olhos meio cerrados

De volúpia e de ternura

Entre lágrimas luziam...
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,

Ao teu seio me cingiam...



Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio

De pouquíssimos instantes,

Os teus lábios sequiosos,

Frios, trêmulos, trocavam

Os beijos mais delirantes,

E no supremo dos gozos

Antes os anjos se casavam

Nossas almas palpitantes...



Depois... depois a verdade,

A fria realidade,

A solidão, a tristeza;

Daquele sonho desperto,

Olhei... silêncio de morte

Respirava a natureza, —

Era a terra, era o deserto,

Fora-se o doce transporte,

Restava a fria certeza.



Desfizera-se a mentira:

Tudo aos meus olhos fugira;

Tu e o teu olhar ardente,

Lábios trêmulos e frios,

O abraço longo e apertado,

O beijo doce e veemente;

Restavam meus desvarios,

E o incessante cuidado,

E a fantasia doente.



E agora te vejo. E fria

Tão outra estás da que eu via

Naquele sonho encantado!

És outra, calma, discreta,

Com o olhar indiferente,

Tão outro o olhar sonhado,

Que a minha alma de poeta

Não ver se a imagem presente
Foi a visão do passado.



Foi, sim, mas visão apenas;

Daquelas visões amenas

Que à mente dos infelizes

Descem vivas e animadas,

Cheias de luz e esperança

E de celestes matizes:

Mas, apenas dissipadas,

Fica uma leve lembrança,

Não ficam outras raízes.



Inda assim, embora sonho,

Mas, sonho doce e risonho,

Desse-me Deus que fingida

Tivesse aquela ventura

Noite por noite, hora a hora,

No que me resta de vida,

Que, já livre da amargura,

Alma, que em dores me chora,

Chorara de agradecida!


Há neles certamente o toque do tempo, e algo de garrettiano, mas também uma alma de verdadeiro poeta, que sobrevive à época.


Atividade poética de Machado de Assis se continuou com as Falenas em 1869, as Americanas em 1875 e as Ocidentais em 1902. Quer em verso, quer em prosa, a sua produção — outra singularidade deste singular escritor — sem ser nunca de improviso ou apressada, é contínua, sempre trabalhada e aperfeiçoada. Modesto por índole e por civilidade, tímido de temperamento, modéstia e timidez que encobriam grande energia moral e íntima consciência de sua capacidade, Machado de Assis, estranho a toda a petulância da juventude, estuda, observa, medita, lê e relê os clássicos da língua e as obras-primas das principais literaturas. Ao contrário de alguns notáveis escritores nossos que começaram pelas suas melhores obras e como que nelas se esgotaram, tem Machado de Assis uma marcha ascendente. Cada obra sua é um progresso sobre a anterior. Ou de própria intuição do seu claro gênio, ou por influência do particular meio literário em que se achou, fosse porque fosse, foi ele um dos raros senão o único escritor brasileiro do seu tempo que voluntariamente se entregou ao estudo da língua pela leitura atenta dos seus melhores modelos. Foram seus amigos e companheiros alguns portugueses escritores ou amadores das boas letras, como José de Castilho, Emílio Zaluar, Xavier de Novais, Manuel de Melo, o esclarecido filólogo de cuja casa e rica livraria foi habituado, Reinaldo Montoro, o bibliófilo Ramos Paz e outros. Nesta roda a língua se teria conservado mais estreme das corrupções americanas, seria melhor falada e mais estudada. Considerando-se, porém, que outros brasileiros que viveram e até se educaram em Portugal, nem por isso lucraram no seu português, mais que à influência dessa roda, ao seu íntimo sentimento literário e à sua intuição da importância da expressão na literatura, deveu Machado de Assis a excelência incomparável da sua. Sabia-se por confidência sua que, escasseando-lhe recursos para adquirir os clássicos, associou-se no Gabinete Português de Leitura para os ter consigo e extratá-los. Confirmando esta sua confissão, acharamse-lhe no espólio literário numerosas notas e extratos dessas leituras. Sobretudo foi o único que soube ler os clássicos, mestres dobres e equívocos, com discernimento e finíssimo tato de escritor nato. Não aprendeu deles mais que a propriedade do dizer, o boleio castiço da frase, a lídima expressão vernácula, sem lhes tomar as fórmulas bárbaras repugnantes ao nosso gosto moderno, nem trasladar-lhes indiscretamente para os seus escritos — como impertinentemente fizeram Camilo Castelo Branco e Castilho — o vocabulário ou fraseado obsoleto. As Falenas justificam o seu título simbólico, nelas se desenvolvem as qualidades já manifestadas nas Crisálidas, notadamente as da forma poética, métrica, língua, estilo, esquisito dom de expressão, em que geralmente sobrelevam a poesia do tempo. Vinte anos antes do parnasianismo tinham já rasgos deste no sóbrio e requintado da emoção, no menor individualismo do poeta, que, ao contrário dos últimos românticos, seus contemporâneos, se escondia e se esquivava. Os temas pura ou demasiadamente subjetivos, as confissões impudentes do mais recôndito da sua alma, tão do gosto deles, cediam o passo a temas mais gerais, menos pessoais ou, quando o eram, tratados mais discretamente, com mais refinada sensibilidade. Algumas peças desta coleção, como as da Lira chinesa e Uma ode de Anacreonte, poemeto dramático em que finura da imaginação pede meças à rara formosura de expressão, descobrem um poeta em toda a força do seu talento. Musset e Lamartine, e também André Chenier, e mais Antônio de Castilho e Garrett, são então os seus principais mestres de poética. Nenhum, porém, com tal prestígio que lhe ofusque a originalidade própria. Outros mestres seus, dous poetas nossos por quem era grande a sua admiração, foram Basílio da Gama e Gonçalves Dias. Este, não obstante a diferença dos seus gênios, o impressionou grandemente. Porventura a essa impressão devemos atribuir a inspiração das Americanas, que, com o Evangelho das Selvas, de Fagundes Varela, do mesmo ano, são a derradeira manifestação apreciável do indianismo da nossa poesia.


Escritor desde os seus princípios consciente e reflexivo, que nunca se deixou arrastar pelas modas literárias, e menos correu após a voga do dia, Machado de Assis, ainda cedendo à influência da inspiração americana, fê-lo com tão discreto sentimento e em forma tão pessoal e tão nova, que o seu indianismo, certamente inferior ao de Gonçalves Dias como emoção e expressão tocante, tem um sainete particular e uma generalidade maior, o que acaso lhe assegura um melhor futuro. “Algum tempo, escreveu ele na “advertência” das Americanas explicando o seu novo livro, foi de opinião que a poesia brasileira devia estar toda, ou quase toda, no elemento indígena. Veio a reação, e adversários não menos competentes que sinceros, absolutamente o excluíram do programa da literatura nacional. São opiniões extremas que, pelo menos, me parecem discutíveis.” E não as querendo discutir, limita-se a esta observação que dirimia definitivamente a questão, se, como me parece certo, o só critério da obra d’arte é o talento com que é realizada: “Direi somente que, em meu entender, tudo pertence à invenção poética, uma vez que traga os caracteres do belo e possa satisfazer as condições da arte. Ora, a índole dos costumes dos nossos aborígines estão muita vez neste caso; não é preciso mais para que o poeta lhes dê a vida da inspiração. A generosidade, a constância, o valor, a piedada, hão de ser sempre elementos da arte, ou brilhem nas margens do Scamandro ou nas do Tocantins. O exterior muda: o capacete de Ajax é mais clássico e polido que o canitar de Itajuba; a sandália de Calipso é um primor de arte que não achamos na planta nua de Lindóia. Esta é, porém, a parte inferior da poesia, a parte acessória. O essencial é a alma do homem.”


Este final compendia a estética de Machado de Assis. Poeta ou prosador, ele se não preocupa senão da alma humana. Entre os nossos escritores, todos mais ou menos atentos ao pitoresco, aos aspectos exteriores das cousas, todos principalmente descritivos ou emotivos, e muitos resumindo na descrição toda a sua arte, só por isso secundária, apenas ele vai além e mais fundo, procurando, sob as aparências de fácil contemplação e igualmente fácil relato, descobrir a mesma essência das cousas. É outra das suas distinções e talvez a mais relevante. Da impressão que o indianismo havia feito na nossa mente, dá testemunho o fato deste mesmo arguto e desabusado espírito ter-se ainda deixado enganar por ele, e lhe haver também sacrificado. Mas ainda assim o seu sentimento não é o mesmo de Gonçalves Dias ou de Alencar. Tinha Machado de Assis mais espírito crítico que estes e menos sentimento romântico, e era de todo estranho a quaisquer influências ancestrais ou mesológicas que porventura atuaram nos dous, para que caísse completamente no engano do indianismo, como ainda sucedeu a Varela. Dos costumes, figuras, manhas e feições do índio e da sua vida que põe em poema, procura sobretudo descobrir a essência sob as exterioridades exóticas, e por ela revelar-lhe a alma. Ainda assim esta porção da sua obra é a menos estimável. Releva-a, porém, a sua interpretação poética dos temas e a formosura da expressão, nele singular. Dous ao menos desses poemas, e justamente aqueles que mais se afastam da fórmula indianista, nos quais a trivial descrição ou exposição de feitos e gestos indianos é substituída pela sua interpretação psicológica, Niani e Última jornada, são de superior beleza poética e de rara feitura artística.


As Ocidentais, publicadas na edição das suas Poesias completas (1901), revêem a influência em Machado de Assis do modernismo, do qual, desde o seu citado artigo sobre a nova geração de poetas que se estrearam depois de 1870, ele dera tão exata definição. São, infelizmente, poucos os poemas cuja inspiração vem dessa nova corrente. O desfecho, Círculo vicioso, Uma criatura, Mundo interior, Suavi Mari Magnum, A mosca azul, No alto, mais os distintos quilates dessa poesia lhe ressarcem sobradamente a quantidade. Com todas as suas brilhantes e não raro tocantes qualidades de emoção, faltou sempre à poesia brasileira profundeza de sentimento. Viva, eloqüente até à facúndia, exuberante, colorida e vistosa, carece por via de regra de intensidade na sensação e de sobriedade na expressão. Não quero dizer que estas virtudes lhe faltem de todo, mas apenas que não são propriamente as suas. Machado de Assis é um dos poucos poetas nossos que as teve, e distintamente, e as manifestou, como já ficou notado, desde a sua estréia. Elas, principalmente sob o aspecto da profundeza, se lhes aperfeiçoaram nos citados poemas das Ocidentais. É ainda que aí ele não cedeu à moda do momento, nem acompanhou inconsideradamente, como fizeram tantos outros, a onda modernista. Apenas desenvolveu-se no sentido dela, que era o mesmo sentido que trazia o seu pensamento, o do ceticismo sem desespero e do pessimismo benevolente, ambos de raiz. Mais que sinais, amostras de ambos encontram-se já nas suas coleções anteriores. O que, distinção raríssima, acaso única, se não encontra em nenhum destes poemas é a indiscreta transplantação para a poesia de cousas científicas ou filosóficas ou algo da respectiva gíria. Tudo nele, como no verdadeiro poeta, se faz sentimento e sensação e como tal se exprime, e em forma que é, sem o rebuscado do Parnasianismo, porventura a mais perfeita alcançada pela nossa poesia.


Poeta dos mais importantes da literatura brasileira, é Machado de Assis o mais insigne dos seus prosadores e, no domínio que lhe é próprio, a ficção romanesca, o maior dos nossos escritores. Não é somente um escritor vernáculo, numeroso, disserto e elegantíssimo. Às qualidades de expressão que possui como nenhum outro, junta as de pensamento, uma filosofia pessoal e virtudes literária muito particulares, que fazem dele um clássico, no mais nobre sentido da palavra, — o único talvez da nossa literatura.


Como prosador compreende a sua obra, além de numerosos livros de conto, romances, teatro, crítica e crônicas jornalísticas. Do conto foi ele, se não o iniciador, um dos primeiros cultores e porventura o primacial escritor na língua portuguesa.


Efetivamente ninguém jamais nesta contou com tão leve graça, tão fino espírito, tamanha naturalidade, tão fértil e graciosa imaginação, psicologia tão arguta, maneira tão interessante e expressão tão cabal, historietas, casos, anedotas de pura fantasia ou de perfeita verossimilhança, tudo recoberto e realçado de emoção muito particular, que varia entre amarga e prazenteira, mas infalivelmente discreta. Histórias de amor, estados d’alma, rasgos de costumes, tipos, ficções da história ou da vida, casos de consciência, caracteres, gente e hábitos de toda a casta, feições do nosso viver, nossos mais íntimos sentimentos e mais peculiares idiossincrasias, acha-se tudo superior e excelentemente representado, por um milagre de transposição artística, nos seus contos. E sem vestígio de esforço, naturalmente, num estilo maravilhoso de vernaculidade, de precisão, de elegância.


No romance estreou Machado de Assis, em 1872, com o já citado Ressurreição. A grande novidade deste romance era não ser senão o primeiro de análise de caracteres e temperamentos, o primeiro ao menos que com este só propósito aqui se escrevia. Não trazia vislumbre de intencional brasileirismo vigente. Ao invés declaradamente apontava a outra cousa que o romance de costumes. O interesse do livro era deliberadamente procurado no “esboço de uma situação e no contraste de dois caracteres”. Alencar com Cinco minutos, A viuvinha (1856), aliás simples novelas, Lucíola (1862) e Diva (1864), e o mesmo Manoel de Almeida com o Sargento de milícias (1857) podem em rigor cronológico ser considerados os precursores do nosso romance da vida urbana ou mundana, da pintura de caracteres e situações e que estes se encontram e definem, ou mesmo do romance que ao tempo ainda se chamava de fisiológico e que depois se chamaria de psicológico. Mas o seu criador, pela arte consciente e engenho com que já o fez em Ressurreição, e o ensaiara com bom sucesso nos contos e novelas que precederam este livro, foi Machado de Assis. Neste mesmo romance, como naquelas ficções menores, embora refugissem ao particularismo nativista, havia já uma notação exata, ou antes uma clara intuição das nossas íntimas peculiaridades nacionais. O sempre progressivo exercício desta faculdade de análise do ambiente, estreme das suas fáceis representações pitorescas, fariam de Machado de Assis não obstante o seu desprendimento do brasileirismo, qual o entendiam aqui, porventura o mais intimamente nacional dos nossos romancistas, se não procurarmos o nacionalismo somente nas exterioridades pitorescas da vida ou nos traços mais notórios do indivíduo ou do meio. Como o que sobretudo lhe interessa é a alma das cousas e dos homens, é ela que ele procura exprimir e que geralmente exprime com insigne engenho e arte. Ainda em algum tipo, episódio, ou cena de pura fantasia, nunca a ficção de Machado de Assis afronta o nosso senso da íntima realidade. Assim, por exemplo, nesse conto magnífico O Alienista ou nessoutra jóia Conto alexandrino, como na admirável invenção de Brás Cubas, e todas as vezes que a sua rica imaginação se deu largas para fora da realidade vulgar, sob os artifícios e os mesmos desmandos da fantasia, sentimos a verdade essencial e profunda das cousas, poderíamos chamar-lhe um realista superior, se em literatura o realismo não tivesse sentido definido.


Havia entretanto no primeiro romance de Machado de Assis e ainda mais talvez nos que mais de perto o seguiram, A mão e a luva (1874), Helena (1876), visíveis ressaibos de romantismo senão do Romantismo. Temperava-os, porém, já, diluindo-os num sabor mais pessoal e menos de escola, e sua nativa ironia e a sua desabusada visão das cousas, que o forravam ao romanesco, à sentimentalidade amaneirada que tanto viciou e desluziu a nossa ficção. E, mais dons de expressão em que ficou até agora único e que, sob este aspecto ao menos, o sobrelevam a todos os nossos escritores, e, não receio dize-lo, ainda aos portugueses seus contemporâneos.


Em 1881, com as Memórias póstumas de Brás Cubas atingia Machado de Assis o apogeu do seu engenho literário, num romance de rara originalidade, uma obra, a despeito do seu tom ligeiro de fantasia humorística, fundamente meditada e fortemente travada em todas as suas partes, porventura a mais excelente que a nossa imaginação já produziu. As Memórias póstumas de Brás Cubas são a epopéia da irremediável tolice humana, a sátira da nossa incurável ilusão, feita por um defunto completamente desenganado de tudo. Desde a sua cova conta-nos Brás Cubas, numa língua primorosa de simplicidade, a sua vida do nascimento à morte, a sua família, a sua educação, o seu meio, os seus primeiros namoros de rapaz e amores de homem, as suas ambições, os seus amores adulterinos com certa Virgília, enfim, quanto na vida sequer um momento o interessou ou ocupou de modo a impressionar-lhe a memória e o entendimento. E só estas faculdades se deixaram nele tocar por tais sucessos. Viu Brás Cubas, ainda pressentiu a vaidade de tudo, e como ao cabo todas as cousas são naturais, necessárias, determinadas por um conjunto de condições que não são essencialmente nem boas, nem más, e pelas quais é sábio não nos abalarmos, não se deixou jamais comover. No fundo de tudo há sempre um todo nada de ridículo, de comédia, de falsidade, de fingimento, de cálculo. Tolo é quem se deixa enganar com as aparências, “empulhar”, segundo o verbo muito do gosto de escritor. Mas a humanidade, a sociedade, é assim feita e não há revoltar-nos contra ela e menos querê-la outra. A vida é boa, mas com a condição de não a tomarmos muito a sério. Tal é a filosofia de Brás Cubas, decididamente homem de muitíssimo espírito. Ele viveu quanto pôde, segundo este seu pensar, e se com o seu pessimismo conformado e indulgente não se achou logrado “ao chegar ao outro lado do mistério”, foi porque verificou um pequeno saldo no balanço final da sua existência. “Não tive filhos, — escreveu na última página das suas Memórias, — não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”


Desta arriscada repetição do velho tema da vaidade de tudo e do engano da vida, a que o Eclesiaste bíblico deu a consagração algumas vezes secular, saiu-se galhardamente Machado de Assis. Transportando-o para o nosso meio, incorporando-o no nosso pensamento, ajustando-o às nossas mais íntimas feições, soube renova-lo pela aplicação particular, pelos novos efeitos que dele tirou, pelas novas faces que lhe descobriu e expressão pessoal que lhe deu.


As Memórias póstumas de Brás Cubas eram o rompimento tácito, mais completo e definitivo de Machado de Assis, com o Romantismo sob o qual nascera, crescera e se fizera escritor. Aliás conquanto necessariamente lhe sofresse a influência, nunca jamais se lhe entregara totalmente nem lhe sacrificara o que de pessoal e original havia no seu engenho, e acharia em Brás Cubas a sua cabal expressão. A sua primeira obra de contador, Histórias da meia noite (1869), Contos fluminenses (1873), com os seus primeiros livros de romancista, o já nomeado Ressurreição, A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), traziam ressaibos românticos, embora atenuados pelo congênito pessimismo e nativa ironia do autor. Ora o Romantismo não comportava nem a ironia nem o pessimismo, na forma desenganada, risonha e resignada de Machado de Assis. Mas os contos que sucederam imediatamente àqueles, Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias histórias (1905), muitos deles anteriores a Brás Cubas, trazem já evidente o tom deste. Desde, portanto, os anos de 70, renunciando ao escasso Romantismo que nele havia, criava-se Machado de Assis uma maneira nova, muito sua, muito particular e muito distinta e por igual estreme daquela escola e das novas modas literárias. Nessa maneira, particularmente em Brás Cubas e em Quincas Borba (1891), que se lhe seguiu e que a certos respeitos o continua, Vislumbra-se mais do que se percebe, o remoto influxo dos humoristas ingleses, e antes dos seus processos formais que do fundo, que este é de raiz do autor. Com a escrupulosa probidade literária que foi uma das suas virtudes, ele próprio o publicou no prefácio do primeiro. Em Dom Casmurro (1899), em Esaú e Jacó (1904) e sobretudo em Memorial de Aires (1908), o seu último livro, desaparecem esses laivos de influência peregrina. Como correspondessem perfeitamente à sua própria índole literária, transubstanciaram-se-lhe no engenho e estilo.


Com a variedade de temas, de enredos de ações, de episódios, que distinguem cada romance de Machado de Assis no conjunto de sua obra, há em todos uma rara unidade de inspiração, de pensamento e de expressão. Todos, porém, representam, talvez com demasiado propósito, mas sem excesso de demonstração, a tolice e a malícia humanas. É este o tema geral, e ao mesmo tempo o duende, o espantalho do escritor. Ele descobriu esses estigmas e os expôs sob todas as suas faces e modalidades, até ao amor paterno ou na ternura materna, nas ações mais sublimes e nos atos mais corriqueiros, e não por um propósito também malicioso ou simplesmente literário, mas porque os seus olhos de artista – o que pode ser uma inferioridade ou um defeito – não os viam senão assim, e a sua íntima sinceridade lhe não permita modificar a própria visão por comprazer com o gosto vulgar. Mas como a sua faculdade mestra é a imaginação humorística, isto é, a visão pessimista das cousas, através da inteligência da sua necessidade e contingência e do sentimento da nossa importância contra elas, as viu com risonho desdém ou com irônica benevolência. Essa visão ele a tem agudíssima, e a sua análise das almas sem alguma presunção de psicológica, antes desdenhosa do epíteto, tem uma rara percepção dos seus mais íntimos segredos. Dom Casmurro é exemplo desta sua superior faculdade de romancista, comprovada aliás em toda a sua obra. É o caso de um homem inteligente, sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que ainda menina amara, que o enfeitiçara com a sua faceirice calculada, com a sua profunda ciência congênita de dissimulação, a quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento pacato. Ela o enganara com o seu melhor amigo, também um velho amigo de infância, também um dissimulado, sem que ele jamais o percebesse ou desconfiasse. Somente o veio a descobrir quando lhe morre num desastre o amigo querido e deplorado. Um olhar lançado pela mulher ao cadáver, aquele mesmo olhar que trazia “não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”, o mesmo olhar que outrora o arrastara e prendera a ele e que ela agora lança ao morto, lhe revela a infidelidade dos dois. Era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-o. Machado de Assis é, com a justa dose de sensualismo estético indispensável, um autor extremamente decente. Não por afetação de moralidade, ou por vulgar pudicícia, mas em respeito da sua arte. Bastava-lhe saber que a obscenidade, a pornografia, seriam um chamariz aos seus livros, para evitar esse baixo recurso de sucesso, ainda que a fidalguia nativa dos seus sentimentos não repulsasse tais processos.


Porque este sujeito tímido, apagado, pequenino, modesto, que parecia deslizar na vida com a preocupação de não incomodar a ninguém, de não ser molesto a pessoa alguma, era, de fato, um homem com energias íntimas, caladas, recônditas, mas invencíveis. Assim como fazer-se uma posição social, nunca transigiu com a sociedade e suas mazelas, também nunca, como escritor, condescendeu com as modas literárias que não dissessem com o seu temperamento artístico, ou seguiu por amor da voga as correntes mais no gosto do público. A este pode afirmar-se que não fez em toda a sua obra a menor concessão.


Já velho, com sessenta e oito anos, e não foi jamais robusto, escreveu ainda um livro admirável, o Memorial de Aires, inspirado na saudade da esposa e companheira muito amada, já chorada no sublime soneto que antepusera às Relíquias da casa velha, o primeiro que deu à luz depois da morte dela. Memorial de Aires é talvez o único livro comovido, de uma comoção que se não procura esconder ou disfarçar e de emoção cordial e não somente estética, que escreveu Machado de Assis. Com a peregrina arte de transposição que possuía e que só revelaria plenamente a história de seus livros, mas que podemos avaliar pelo pouco que dela sabemos, idealizou Machado de Assis, num suave romance contado por terceiro, um velho diplomata espirituoso e desenganado, o Conselheiro Aires, o seu palácio e feliz viver doméstico. Não que o indicasse ou sequer o insinuasse. Descobriram-no os que lhe conheceram a vida, e eram bem poucos, pois nunca se “derramou” e odiava os “derramados”, na emoção nova que discretamente, sobriamente, recatadamente, como que receosa de profanar na publicidade cousas íntimas e sagradas, aparecia nesse delicioso livro, um dos mais tocantes da nossa literatura.


As estréias literárias de Machado de Assis coincidiram com o melhor momento do nosso teatro em toda a evolução da nossa literatura, entre os anos de 50 e 70, particularmente o decênio intermédio. Os melhores dos nossos literatos de então escreveram para o teatro e acharam quem os representasse e quem os fosse ouvir, o que nunca mais aconteceu depois. A nossa bibliografia teatral dessa época é a mais copiosa de toda a nossa literatura, e havia pelo teatro nacional interesse e curiosidade que depois desapareceu de todo, com a concorrência do teatro estrangeiro importado por companhias alienígenas. A influência do momento e o gosto que pessoalmente tinha pelo teatro, mais que decidida vocação, levaram Machado de Assis a tratá-lo. Com a segura consciência que do seu próprio engenho tinha, ele próprio mal se iludira sobre a sua aptidão para o teatro. Numa carta prefácio de suas peças publicadas em 1863, O caminho da porta e O protocolo, confessava, podemos crer que sinceramente: “Tenho o teatro por cousa muito séria e as minhas forças por cousa insuficiente; penso que as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e apuram-se com o tempo e o trabalho...” Sem dúvida, mas as qualidades, sobretudo as inferiores, as habilidades do ofício de autor dramático, a acomodação ao gosto público e à perspectiva particular da rampa, uma porção de dons somenos, mas essenciais ao bom sucesso na arte inferior que é o teatro, faltavam a Machado de Assis. No teatro nunca pode ele passar de composições ligeiras, ao gosto de “provérbios” franceses, sainetes, contos porventura espirituosamente dialogados, algumas encantadoras de graça fina e elegante estilo, mas sem grande valor teatral. Tais são os Deuses de casaca, comédia levemente satírica da nossa vida social e política, em formosos alexandrinos, em que se revê a influência de Castilho; Tu, só tu, puro amor, pequena obra-prima, alguma cousa como uma deliciosa figurinha de Tânagra no meio das esculturas de Fídias; Não consultes médico, sainete digno de Musset. Tudo, porém, não passava de um ano, excelente como literatura amena para Deleitar-nos uma hora, mas sem a ação, a força, a emoção que deve trazer a obra teatral. Basta que esta por sua mesma natureza se enderece a uma platéia, que será sempre em maioria composta de ignaros ou simples, para que lhe não bastem as qualidades propriamente literárias.


Como crítico, Machado de Assis foi sobretudo impressionista. Mas um impressionista que, além da cultura e do bom gosto literário inato e desenvolvido por ela, tinha peregrinos dons de psicólogo e rara sensibilidade estética. Conhecimento do melhor das literaturas modernas, inteligência perspicaz desabusada de modas literárias e hostil a todo pedantismo e dogmatismo, comprazia-lhe principalmente na crítica a análise da obra literária segundo a impressão desta recebida. Nessa análise revelava-se-lhe a rara finura e o apurado gosto. Que não era incapaz de outra espécie de crítica em que entrasse o estudo das condições mesológicas em que se produziu a obra literária, deu mais de uma prova. Com o fino tato literário e reflexivo juízo, que o assinalam entre os nossos escritores, no ensaio crítico atrás citado sobre o Instituto da nacionalidade, na nossa literatura ajuizou com acerto, embora com a benevolência que as mesmas condições da sua vida literária lhe impunham, os seus fundadores e apontou com segurança os pontos fracos ou duvidosos de certos conceitos literários aqui vigentes, emendando o que neles lhe parecia errado e aventando opiniões que então, em 1873, eram de todo novas. Ninguém, nem antes nem depois, estabeleceu mais exata e mais simplesmente a questão do indigenismo da nossa literatura, nem disse cousas mais justas do indianismo e da sua prática.


Em suma Machado de Assis, sem ter feito ofício de crítico, é como tal um dos mais capazes e mais sinceros que temos tido. Respeitador do trabalho alheio, como todo o trabalhador honesto, mas sem confundir esse respeito com a condescendência camaradeira, estreme de animosidades pessoais ou de emulações profissionais, com o mínimo dos infalíveis preconceitos literários ou com a força de os dominar, desconfiado de sistemas e assertos categóricos, suficientemente instruído nas cousas literárias e uma visão própria, talvez demasiadamente pessoal, mas por isso mesmo interessante da vida, ninguém mais do que ele podia ter sido o crítico cuja falta lastimou como um dos maiores males da nossa literatura. Em compensação deixou-lhe um incomparável modelo numa obra de criação que ficará como o mais perfeito exemplar do nosso engenho nesse domínio.

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Fonte:
Machado de Assis por seus contemporâneos, disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil

Anúncios antigos de equipamentos fotográficos


Anúncios antigos de equipamentos fotográficos, dentre os quais uma propaganda de 1910, da marca alemã Goerz.

"GOERZ" - ANÚNCIO DE 1910

"IKONTA" - ANÚNCIO DE 1930

"CHIATTI & DAGNA" - ANÚNCIO DE 1908

"CASA HELIO" - ANÚNCIO DE 1916

"KODAK" - ANÚNCIO DE 1930
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Fonte:
1. Revista "Ilustração Brazileira" (anúncio: 1), edição de 1910, disponível digitalmente no site: Domínio Público
2. Revista "A Cigarra" (anúncios: 2 e 5) edições de 1930,
3. Revista "O Echo" (anúncios 3 e 4 ), edições de 1908 e 1916, disponíveis digitalmente no site do Arquivo Público do Estado de São Paulo

Machado de Assis por seus contemporâneos: Rui Barbosa



RUI BARBOSA (18491923)
Rui Barbosa nasceu na Bahia, no dia 5 de novembro de 1949. Foi o maior orador de todos os tempos no Brasil, e um dos vultos históricos mais importantes da nação brasileira. Distinguiu-se como homem de letras, pelo maravilhoso conhecimento da língua, que possuía e cujos recursos manejou como ninguém no país ou em Portugal. Foi um profundo conhecedor do direito de todos os povos. Como homem político salientou-se pelo culto dos princípios liberais e pela independência com a qual expunha suas idéias. Ficou famoso por sua participação, em 1907, na Segunda Conferência da Paz realizada em Haia, ficando conhecido, a partir dali, como o “águia de Haia”. Faleceu na tarde de março de 1923.

Mas, vejamos o que ele também tem a dizer sobre o nosso grande Machado de Assis...



Machado de Assis – o adeus da Academia
Designou-me a Academia Brasileira de Letras para vir trazer ao amigo que de nós aqui se despede, para lhe vir trazer, nas suas próprias palavras, num gemido da sua lira, para lhe vir trazer o nosso "coração de companheiros".

Eu quase não sei dizer mais, nem sei que mais se possa dizer, quando as mãos que se apertavam no derradeiro encontro, se separam desta para a outra parte da eternidade. Nunca ergui a voz sobre um túmulo, parecendo-me sempre que o silêncio era a linguagem de nos entendermos com o mistério dos mortos. Só o irresistível de uma vocação como a dos que me chamaram para órgão desses adeuses me abriria a boca ao pé deste jazigo, em torno do qual, ao movimento das emoções reprimidas se sobrepõe o murmúrio do indizível, a sensação de uma existência cuja corrente se ouvisse cair de uma em outra bacia, no insondável do tempo, onde se formam do veio das águas sem manchas, as rochas de cristal exploradas pela posteridade.

Do que ela se reserva em surpresas, em maravilhas de transparências e sonoridade e beleza na obra de Machado de Assis, di-lo-ão outros, hão de dizer os seus confrades, já o está dizendo a imprensa, e de esperar é que o diga, dias sem conta, derredor do seu nome, da lápide que vai tombar sobre o seu corpo, mas abrir a porta ao ingresso da sua imagem na sagração dos incontestados, a admiração, a reminiscência, a mágoa sem cura dos que lhe sobrevivem. Eu, de mim, porém, não quisera falar senão do seu coração e de sua alma.

Daqui, deste abismar-se de ilusões e esperanças que soçobram ao cerrar de cada sepulcro, deixemos passar a glória na sua resplandescência, na sua fascinação, na impetuosidade de seu vôo. Muito ressumbra sempre da nossa debilidade, na altivez do seu surto e na confiança das suas asas. As arrancadas mais altas do gênio mal se libram nos longes da nossa atmosfera, de todas as partes envolvida e distanciada pelo infinito. Para se não perder no incomensurável deste, para avizinhar a terra do firmamento, não há nada como a bondade. Quando ela, como aqui, se debruça, fora de uma campa ainda aberta, já se não cuida que lhe esteja à beira, de guarda, o mais malquisto dos numes, no sentimento grego, e os braços de si mesmos se levantam, se estendem, se abrem para tomar entre si a visão querida que se aparta.

Não é o clássico da língua; não é o mestre da frase; não é o árbitro das letras; não é o filósofo do romance; não é o mágico do conto; não é o joalheiro do verso, o exemplar sem rival entre os contemporâneos da elegância e da graça, do aticismo e da singeleza no conceber, e no dizer; é o que soube viver intensamente da arte, sem deixar de ser bom. Nascido com uma dessas predestinações sem remédio ao sofrimento, a amargura do seu quinhão nas expiações da nossa herança o não mergulhou no pessimismo dos sombrios, dos mordazes, dos invejosos, dos revoltados. A dor lhe aflorava ligeiramente aos lábios, lhe roçava de leve a pena, lhe ressumava sem azedume das obras, num ceticismo entremeio de timidez e desconfiança, de indulgência e receio, com os seus toques de malícia a sorrirem, de quando em quando, sem maldade, por entre as dúvidas e tristezas do artista. A ironia mesma se desponta, se embebe de suavidade no íntimo desse temperamento, cuja compleição, sem desigualdades, sem espinhos, sem asperezas, refratária aos antagonismos e aos conflitos, dir-se-ia emersa das mãos da própria Harmonia, tal qual essas criações da Hélade, que se lavraram para a imortalidade num mármore cujas linhas parecem relevos do ambiente e projeções do céu no meio do cenário que as circunda.

Deste lado moral de sua entidade, quem me dera saber exprimir, neste momento, o que eu desejaria. Das riquezas da sua inspiração na lírica, da sua mestria no estilo, da sua sagacidade na psicologia, do seu mimo na invenção, da sua bonomia no humorismo, do seu nacionalismo na originalidade, da sua lhaneza, tato e gosto literário, darão testemunho perpetuamente, os seus escritos, galeria de obras-primas, que não atesta menos da nossa cultura, da independência, da vitalidade e das energias civilizadoras da nossa raça do que uma exposição inteira de tesouros do solo e produtos mecânicos do trabalho. Mas, nesta hora de entrada ao ignoto, a este contato quase direto, quase sensível com a incógnita do problema supremo, renovado com interrogações de nossa ansiedade cada vez que um de nós desaparece na torrente de gerações, não é a ocasião dos cânticos de entusiasmo, dos hinos de vitória nas porfias do talento. A este não faltarão comemorações, cujo círculo se alargará com os anos, à medida que o rastro de luz penetrar, pelo futuro além, cada vez mais longe ao seu foco.

O que se apagaria talvez se o não colhêssemos logo na memória dos presentes, dos que lhe cultivaram o afeto, dos que lhe seguiram os dias, dos que lhe escutaram o peito, dos que lhe fecharam os olhos, é o sopro de sua vida moral. Quando ele se lhe exalou pela última vez, os amigos que lho receberam com o derradeiro anélito, contraíram a obrigação de o reter, como se reteria na máxima intensidade de aspirações dos nosso pulmões o aroma de uma flor cuja espécie se extinguisse, para o dar a sentir aos sobreviventes, e dele impregnar a tradição, que não perece.

Eu não fui dos que o respiraram de perto. Mas, homem do meu tempo, não sou estranho às influências do mal e do bem, que lhe perpassam no ar. Numa época de lassidão e violência, de hostilidade e fraqueza, de agressão e anarquia nas coisas e nas idéias, a sociedade necessita justamente, por se recobrar, de mansidão e energia, de resistência e conciliação. São as virtudes da vontade e as do coração as que salvam nesses transes. Ora, dessas tendências que atraem para a estabilidade, a pacificação e a disciplina, sobram exemplos no tipo desta vida, mal extinta e ainda quente.

Modelo foi de pureza e correção, temperança e doçura; na família, que a unidade e devoção do seu amor converteu em santuário; na carreira pública, onde se extremou pela fidelidade e pela honra; no sentimento da língua pátria, em que prosava como Luís de Sousa, e cantava como Luís de Camões; na convivência dos seus colegas, dos seus amigos, em que nunca deslisou da modéstia, do recato, da tolerância, da gentileza. Era sua alma uma vaso de amenidade e melancolia. Mas a missão da sua existência, repartida entre o ideal e a rotina, não se lhe cumpriu sem rudeza e sem fel. Contudo, o mesmo cálice da morte, carregado de amargura, lhe não alterou a brandura da têmpera e a serenidade da atitude.

Poderíamos gravar-lhe aqui, na laje da sepultura, aquilo de um grande livro cristão: "Escreve, lê, canta, suspira, ora, sofre os contratempos virilmente", se eu não temesse claudicar, aventurando que as suas atribulações conheceram o lenitivo da prece. O instinto, não obstante, no-lo adivinha nas trevas do seu naufrágio, quando, na orfandade do lar despedaçado, cessou de encontrar providência das suas alegrias e das suas penas, entre as carícias da que tinha sido a meeira da sua lida e do seu pensamento.

Mestre e companheiro, disse eu que nos íamos despedir. Mas disse mal. A morte não extingue: transforma; não aniquila: renova; não divorcia: aproxima. Um dia supuseste "morta e separada" a consorte de teus sonhos e de tuas agonias, que te soubera "pôr um mundo inteiro no recanto" do teu ninho; e, todavia, nunca ela te esteve mais presente, no íntimo de ti mesmo e na expressão do teu canto, no fundo do teu ser e na face de tuas ações. Esses quatorze versos inimitáveis, em que o enlevo dos teus discípulos resume o valor de toda uma literatura, eram a aliança de ouro do teu segundo noivado, um anel de outras núpcias, para a vida nova do teu renascimento e da tua glorificação, com a sócia sem nódoa dos teus anos de mocidade e madureza, da florescência e frutificação de tua alma. Para os eleitos do mundo das idéias a miséria está na decadência e não na morte. A nobreza de uma nos preserva das ruínas da outra. Quando eles atravessam essa passagem do invisível, então é que entramos a sentir o começo do seu reino, o reino dos mortos sobre os vivos.

Ainda quando a vida mais não fosse que a urna da saudade, sacrário da memória dos bons, isso bastava para a reputarmos um benefício celeste, e cobrirmos de reconhecimento a generosidade que no-la doou. Quando ela nos prodigaliza dádivas como a de teu espírito e a de tua poesia, não é que lhe deveremos duvidar da grandeza, a que te acercaste primeiro do que nós, mestre e companheiro. Ao chegar da nossa hora, em vindo a de te seguirmos um a um no caminho de todos, levando-te a segurança da justiça da posteridade, teremos o consolo de haver cultivado, nas verdadeiras belezas da tua obra, na obra dos teus livros e da tua vida, sua idealidade, sua sensibilidade, sua castidade, sua humanidade, um argumento mais da existência e da intimidade dessa origem de todas as graças à onipotência de quem devemos a criação do universo e a tua, companheiro e mestre, sobre cuja transfiguração na eternidade e na glória caiam as suas bençãos, com as da Pátria, que te reclina ao seu seio.

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Fonte:
Discurso de Rui Barbosa pronunciado na Academia Brasileira, junto do ataúde de Machado de Assis, aos 29 de setembro de 1908, minutos antes de partir o féretro para o cemitério de S. João Batista. In: Obras Completas de Rui Barbosa, Discursos Parlamentares. Volume XXXV (1908), Tomo 1, disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil

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Fonte:
1. Revista "A Cigarra" (anúncios: 1 e 2) edições de 1937, 1940,
2. Revista "O malho" (anúncios: 4), edições de 1952, ambas disponíveis digitalmente no site do Arquivo Público do Estado de São Paulo
3. Revista "Para Todos" (anúncios: 3) edições de 1930, disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
4. Revista "Ilustração Brazileira" (anúncio: 5), edição de 1910, disponível digitalmente no site: Domínio Público