

A interpretação Republicana dos Direitos Humanos: A crítica filosófico-moral de Rousseau
“Embora  compreendido  como  um  dos mais importantes pensadores  Iluministas, certamente Rousseau se diferencia em muitos aspectos dos mesmos. A  sua teoria não só criticava a ordem social feudo-absolutista como iniciava, ainda que  filosófica e moralmente, a crítica a sociedade capitalista que emergia dos estertores da  primeira.  Nesse  sentido,  Rousseau  inaugura  uma  tradição  teórico-filosófica  que  seria  conhecida  como    Republicanismo,  lançando,  por  sua  vez,  as bases para  a  crítica  radical  da  propriedade  privada  e  do  individualismo  Liberal,    esta  última  claramente identificada com a visão de mundo da burguesia ascendente.
Assim  como  Locke,  Rousseau  utilizou  uma  construção  hipotética  do  surgimento  das sociedades humanas.  Fundamentou  a  sua  teoria  pressupondo  a  existência de um estágio pré-civilizatório da humanidade, que também denominava  “Estado  de  Natureza”.  No  entanto,  diferenciando-se  dos  outros filósofos contratualistas Rousseau admitia que em tal estágio os seres humanos viviam em  harmonia  com  a  natureza  e  com  os seus semelhantes.  Saciavam  as suas  necessidades através da natureza, fato que lhes colocava em uma situação de auto-suficiência, numa vida caracterizada pelo hedonismo e pela ausência de paradigmas  civilizatórios.
Como  não  tinham  entre  si  nenhuma  espécie  de  comércio,  como  conseqüentemente não conheciam nem a  vaidade, nem a  consideração, a  estima  ou  o  desprezo  ;  como  não  possuíam  a  menor  noção  do  teu  e  do  meu,  nem  qualquer  idéia  verdadeira  de  justiça;  como  consideravam  as  violências,  que  podiam  tolerar,  como  uma  injúria  que  deve  ser  punida;  e  como  não  pensavam  na  vingança  senão  maquinalmente  e  no  momento,  à  maneira  do  cão  que  morde  a  pedra  que  lhe  atiram  –  suas  disputas  raramente teriam conseqüências sangrentas, se não conhecessem assunto  mais excitante do que alimento.  (ROUSSEAU, 1991,p.255)
 O homem primitivo, segundo Rousseau, seria um ser que vivia de acordo  com  os seus instintos e  não  conhecia  qualquer  senso  de  propriedade.  Conseqüentemente,  não  se  registraria  nesse  período  da  evolução  humana  a  existência de desigualdades entre  os homens.    Nestes,  existiria  uma moral  natural  que  se  caracterizaria  fundamentalmente  pela  piedade  para  com  os seus semelhantes.  Rousseau,  portanto,  ao  descrever  o  homem  em  seu  estado  primitivo  inspirava-se nitidamente no mito do “bom selvagem”, certamente influenciado pelos  relatos feitos pelos colonizadores europeus a  respeito    dos  povos indígenas  encontrados na América.
Porém,  a  vida  humana  no  Estado  de  Natureza  freqüentemente  seria  ameaçada pelo convívio com animais ferozes e pelas intempéries. Assim sendo, os primeiros progressos  intelecto-morais dos  seres humanos estariam  diretamente  associados à busca da superação de tais dificuldades. Ao desenvolver as primeiras armas naturais os homens iniciavam a construção das condições necessárias para   dominar    a  natureza  e  transformar  a  realidade  à  sua  volta  de  forma  que  esta  facilitasse  a  sua  sobrevivência.  Acompanhando  o  progresso  intelectual,  o  homem  inicia o seu processo de socialização estimulando o desenvolvimento da linguagem  e estabelecendo os primeiros compromissos mútuos. Nesse sentido, construíam- se  as primeiras formas de sociabilidade que, por sua vez, encontrariam na família a sua  expressão inicial.
Este  longo  processo  de  evolução  humana  marcado  pela  superação  da  sua  condição  primitiva  e  pelo  desenvolvimento  das primeiras formas de  convívio  coletivo encontrariam a sua mediação principal a partir do momento em que se criou  a  propriedade  privada.  Este  fato  marcaria  a  passagem  do  Estado  Natural  para  a  Sociedade  Civil  que  se  caracterizaria  pela  divisão  entre  proprietários e  não  proprietários, pondo fim à igualdade que até então existia entre os homens. 
O verdadeiro  fundador da  sociedade  civil  foi o primeiro que tendo  cercado  um  terreno,  lembrou-se  de  dizer        isto  é  meu  e  encontrou  pessoas  suficientemente  simples  para  acreditá-lo.  Quantos  crimes,  guerras,  assasínios,  misérias  e  horrores  não  poupariam  ao  gênero  humano  aquele  que  arrancando  as  estacas  ou  enchendo  o  fosso,  tivesse  gritado  a  seus  semelhantes:  “Defendei-vos  de  ouvir  esse  impostor;  estareis  perdidos  se  esquecerdes  que  os  frutos  são  de  todos  e  que  a  terra  não  pertence  a ninguém!. (ROUSSEAU, 1991,p259)
A  origem  da  propriedade  privada  estaria  no  desenvolvimento econômico  que  acompanhou  o  processo  de  evolução  dos  seres  humanos cuja  principal  expressão  seria  a  agricultura  e  a  metalurgia.  Segundo  Rousseau,  o  aumento  da  população e a complexificação das atividades produtivas demandaram o aumento da  produção agrícola. A necessidade de se intensificar o cultivo das terras levou a sua  divisão, uma vez que a posse contínua das terras trabalhadas por um indivíduo daria  ao mesmo o direito à propriedade.
Da propriedade privada nasceria a tensa relação entre proprietários  e não  proprietários. Assim sendo, Rousseau afirma que a propriedade privada colocou os  seres humanos em estado de guerra uns contra os outros.
Assim,  os  mais  poderosos  ou  os  mais  miseráveis,  fazendo  de  suas  forças  ou  de  suas  necessidades  uma  espécie  de  direito  ao  bem  alheio,  equivalente,  segundo  eles,  ao  de  propriedade,  seguiu-se    à  rompida  igualdade  a  pior  desordem;  assim  as  usurpações  dos  ricos,  as  extorções  dos pobres as paixões desenfreadas de todos, abafando a piedade natural  e  a  voz  ainda  fraca  da  justiça,  tornaram  os  homens  avaros,  ambiciosos  e  maus. (...) A sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de  guerra  ;  o  gênero  humano,  aviltado  e  desolado,  não  podendo  mais  voltar  sobre seus passos nem renunciar às aquisições infelizes que realizara, ficou  às portas  da ruína  por não trabalhar  senão para sua vergonha, abusando  das faculdades que o dignificam. (ROUSSEAU, 1991, p. 268)
Os esforços necessários à proteção das propriedades se mostraram dispendiosos, impossibilitando os proprietários de continuarem investindo na defesa  militar  das suas posses.  Além  do  dispêndio,  a  impossibilidade  de efetivarem  uma  aliança entre si devido ao individualismo que caracterizava as suas ações, colocava  a  necessidade  de  se  estabelecer  outras formas de  preservação  dos seus bens.  A  estratégia  adotada foi o estabelecimento de uma série  de  normas e instituições de  validade universal que, por sua vez,  sacralizavam o direito à propriedade, tornando-o  legítimo  perante a  comunidade. Tal  estratégia  de  legitimação fixaria  “para sempre a lei  da  propriedade  e da desigualdade”  (ROUSSEAU;1991)  através da conquista do consentimento dos  não-proprietários. Através deste processo surgia a  divisão  dos seres humanos em diferentes sociedades. Tal  divisão   ao se propagar daria origem  às guerras.
Seguindo a sua crítica, Rosseau se debruça sobre as concepções teórico-ideológicas que buscavam legitimar a desigualdade entre os homens.  Reivindicando  a  liberdade  e  a razão  como  elementos fundantes da  condição  humana,  o  autor  irá rejeitar,  categoricamente,  toda  e  qualquer  teoria  que  visasse  naturalizar    a  divisão humana entre senhores e servos.
Não  é,  pois,  pelo  aviltamento  dos  povos  dominados  que  se  devem  julgar  das disposições naturais do homem a favor ou contra a servidão, mas sim  pelo prodígio realizado pelos povos livres para se defenderem da opressão.  Sei que os primeiros nada fazem senão enaltecer continuamente a paz e o  sossego  de  que  gozam  sob  seus  grilhões  e  que  miserrimam  servitutem  pacem  apel ant, mas quando  vejo os outros sacrificarem os prazeres  e o  repouso, a riqueza, o poder e a própria vida pela conservação desse único  bem  tão  desprezado  por  aqueles  que  o  perderam,  detestando  o  cativeiro, esmagarem a cabeça contra as grades da prisão, quando vejo multidões de  selvagens nus desprezarem as volúpias européias e enfrentarem a fome, o  fogo, o ferro e a morte para conservar somente sua independência, concluo  não  poderem  ser  os  escravos  os  mais  indicados  para  raciocinar  sobre  a  liberdade. (Rousseau, 1991 p.272,)
Nesse sentido, o autor desenvolve uma ácida crítica aos pilares político-ideológicos que  fundamentavam  o  Antigo  Regime.    Assim  como  Locke,  Rousseau refuta integralmente, por exemplo, as teorias de Robert Filmer contidas na obra  “O  Patriarca”   que  se  baseava  na  defesa  do  fundamento  paternal  da  monarquia.  Seguindo  a  mesma  lógica  ressaltaria  o  papel  de  instrumento  de  legitimação  da  ordem  feudo-absolutista  exercido  pela  religião,  uma  vez  que,  a  razão  levaria  naturalmente  a  um  processo  de  contestação  desta  ordem  por  parte  dos  súditos,  sendo, portanto, um elemento frágil no que diz respeito à sustentação da ordem. O  Antigo  Regime  seria  a  expressão  máxima  do  processo  de  desenvolvimento  das desigualdades entre  os homens,    processo  esse  que  se  iniciou  com  o  estabelecimento da propriedade privada.
Rousseau,  assim  como  todos os Iluministas,  criticava  abertamente  o  Antigo  Regime  desenvolvendo  uma  crítica  radical  ao  mesmo.  Assim  como  Locke  compreendia como legítimo a derrubada violenta do poder monárquico-absolutista.
Só  a  força  o  mantinha,  só  a  força  o  derruba;  todas  as  coisas  se  passam,  assim,  segundo  a  ordem  natural  e,  seja  qual  for  o  resultado  dessas  revoluções breves e  freqüentes, ninguém pode lamentar-se  da injustiça de  outrem, mas unicamente de sua própria imprudência ou de sua infelicidade.  (ROUSSEAU,1991, p.280)
Entretanto, a sua crítica se torna incompatível com a crítica liberal devido  ao  seu  caráter  crítico  no  que  diz  respeito    à  propriedade  privada.  Enquanto  a  primeira vê na defesa desta a legitimação das críticas ao Antigo Regime, Rousseau  compreenderá  que  a  propriedade  privada  é  seu  produto.  Nesse  sentido,  a  desigualdade  criticada  por  Rousseau  não  se  restringe  às dimensões jurídico-políticas, mas compreende também as desigualdades sócio-econômicas.
Apesar de ser, até certo ponto, saudoso do estado de natureza devido às vantagens que os homens nesta fase gozavam, Rousseau admite que o Estado Civil potencializou  as capacidades físicas e  intelecto-cognitivas da  humanidade.  Porém,  mesmo  com  todas as  suas vantagens,  a  sociedade  civil  estimulava  o  avanço  da  desigualdade entre os homens, uma vez  que a sua  gênese  estaria na propriedade  privada.
A preocupação com esta tendência da sociedade civil deu origem à obra  “Do  Contrato  Social”,  na  qual  Rousseau  discorre  sobre  a  formação  de  um  pacto  social a ser estabelecido com o objetivo de garantir a igualdade e a liberdade entre  os homens. Objetivava-se com isto a neutralização da tendência de reprodução da  desigualdade.  O  Contrato  Social  visava  à  construção  de  uma  associação  em  que  cada homem
(...) dando-se  a todos  não se dá a ninguém e não existindo  um  associado  sobre  o  qual  não  se  adquira  o  mesmo  direito  que  se  lhe  cede  sobre  si  mesmo,  ganha-se  o  equivalente  de  tudo  que  se  perde,  e  maior  força  para  conservar o que se tem. (ROUSSEAU,  1991, p.33)
Desse modo, ao estabelecerem o contrato social os homens deixariam de  usufruir  a  liberdade  individual  irrestrita.  Ao  invés  de  existirem  diversos interesses  particulares expressos por cada indivíduo, seria formado um corpo coletivo do qual  fariam parte todos os membros da associação,  dando  origem à  “vontade  geral”  ou  interesse público. Esta seria formada não pela soma dos interesses individuais, mas pelo que havia de comum entre eles. Entretanto, o autor admite a real possibilidade  de  existir  dissensos entre  os  cidadãos e  a  partir  desses formarem-se  facções no  interior da assembléia. Apesar das reticências à existência destas, a estratégia para  que as suas influências fossem amenizadas seria a existência de inúmeras facções com igualdade de condições para disputar os rumos da “vontade geral”.
A  partir  dessa  referência,  Rousseau  passaria  a  diferenciar  os indivíduos  de acordo com a relação existente entre os mesmos e o poder político. O indivíduo  que  participaria  da  vida  política  da  sua  comunidade  seria  compreendido  como  um  citoyen,  ao    passo  que  aqueles  submetidos  às  leis legitimadas pelos  cidadãos  de  forma  passiva  seriam  chamados de  súditos.  Os primeiros  seriam  sujeitos do  “Soberano”  que,  por  sua  vez, seria o resultado do interesse  público  construído  em  assembléia.
Rousseau  admite  que  os poderes do  soberano  devem  ser  limitados em  relação à esfera privada. Porém, tal esfera existiria em função da esfera pública que  sempre decidiria racionalmente os limites da esfera privada de modo a preservar a  igualdade  entre  os  indivíduos.  Caso  contrário,  o  soberano  atentaria  contra  a  sua  própria  legitimidade  se  não  estabelecesse  critérios igualitários  para  todos os  cidadãos onerando-os de forma diferenciada.
Conseqüentemente, não se admitiria critérios individuais, uma vez que, a  sua  existência  atentaria  contra  a  igualdade.  A  partir  desta  perspectiva  se  insere  o  debate acerca da propriedade privada. Considerando a propriedade como elemento  de  origem  da  desigualdade  entre  os homens,  a  partir  do  momento  em  que  se  estabelecesse o contrato social  a mesma estaria sob controle do soberano. A sua  efetivação  seria,  em  última  instância  regulada  pelo  soberano  sendo  considerada  legítima a partir do momento em que fosse utilizado para garantir a sobrevivência do  cidadão.
Em  geral,  são  necessárias  as  seguintes  condições  para  autorizar  o  direito  de  primeiro  ocupante  de  qualquer  pedaço  de  chão:  primeiro  que  esse  terreno  não  esteja  ainda  habitado  por  ninguém;  segundo,  que  dele  só  se  ocupe a porção de que se tem necessidade para subsistir; terceiro, que dele  se tome posse não por uma cerimônia vã, mas pelo trabalho e pela cultura únicos  sinais  de  propriedade  que  devem  ser  respeitados  pelos  outros,  na  ausência de títulos jurídicos. (ROUSSEAU, 1991, p.38)
No que diz respeito às leis que regeriam as relações entre os indivíduos  membros de uma nação, o contrato estabelece que estas deveriam ser legitimadas pelo  povo,  do  qual  emenaria  todo  o  poder  soberano.  Ao  atribuir  tamanha  importância  ao  povo,  Rousseau  abre  o  caminho  para  o  desenvolvimento  da  democracia republicana. Porém o seu ideal de democracia seria incompatível com a  realidade,  pois ela  seria  constituída  pela  utopia  do  povo  em  assembléia  constante  definindo os seus destinos.
Tomando-se  o  termo  no  rigor  da  acepção,  jamais  existiu  uma  democracia  verdadeira.  É  contra  a  ordem  natural  governar  o  grande  número  e  ser  o  menor  número  governado.  Não  se  pode  imaginar  que  permaneça  o  povo  continuamente  em  assembléia  para  ocupar-se  dos  negócios  públicos  e  compreende-se  facilmente  que  não  se  poderia  para  isso  estabelecer  comissões sem mudar a forma de administração. (ROUSSEAU, 1991, p.84)
Desse  modo,  admite-se  a  existência  de  uma  democracia  ampliada  onde  os deputados exprimiriam  os interesses do  povo,  porém  a  lei  seria  consolidada  mediante a aprovação popular. Os deputados estariam sujeitos ao controle popular,  pois aqueles que os delegaram tal tarefa poderiam revogá-la.
Os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes ; não  passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É nula  toda lei que o povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei. O povo  inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada.  (ROUSSEAU, 1991, p.108)
A  influência  republicana  se  fez presente,  durante  a  radicalização  do  processo revolucionário francês que se iniciou em 1789 derrubando a ordem feudo-absolutista  decadente.  As idéias de  Rousseau  orientaram  as ações dos Jacobinos  que  a  partir  de  1792  se  tornariam  a  corrente  política  mais influente  do  processo  revolucionário  francês.  Os Jacobinos objetivavam  dar  um  caráter  democrático  e  popular  à  revolução,  numa  disputa  aberta  com  os liberais que,  por  sua  vez,   representavam os interesses político-ideológicos da emergente burguesia francesa e  com  os defensores do  absolutismo.  Este  período    deu  origem  a  uma  releitura  republicana da Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada em 1789.  Nela, o direito à propriedade não aparece como sagrado.
A  mesma  declaração  ressalta  ainda  a  igualdade  como  um  direito  fundamental,  não  a  restringindo,  como  na  primeira  declaração,  ao  seu  aspecto  jurídico-formal.  A  concepção  que  pressupunha  a  igualdade  substancial  entre  os  homens como direito é reforçada pelo Artigo 21 que sacraliza o dever da sociedade  em prestar assistência aos setores mais pauperizados da população.
Artigo 21 - A assistência pública é uma dívida sagrada. A sociedade deve a  subsistência aos cidadãos infelizes , seja providenciando-lhes trabalho seja  garantido  os  meios  de  existir  para  aqueles  que  não  estão  em  situação  de  trabalhar.(DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO-1793:2001)
A Declaração de 1793, de clara inspiração republicana, estabelece ainda  o estímulo à instrução como dever da sociedade (Artigo 22) estabelecendo-a como  direito dos cidadãos. Este artigo se desdobrou na criação do ensino público durante  o  período  jacobino.  O  sentido  coletivo  de  liberdade  aparece  no  Artigo  34  quando  este afirma haver  “opressão  contra  o  corpo  social  quando  se  oprime  um  único  dos  seus membros”  (Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão: 2001).  A  Declaração  reafirma  ainda  a  soberania  popular  como  fonte  de  legitimação  do  poder político (Artigo 25) e o direito do povo de reelaborar as suas leis (Artigo 28).   Estes dois artigos sugerem  a  elaboração  de  mecanismos de  democracia  direta  na  condução das questões de caráter público.
As teorias de  Rousseau  ainda  influenciaram    diretamente  a  organização  das instituições modernas. Porém, as suas teses se revelaram frágeis do ponto de  vista da crítica ao Capitalismo emergente. Embora precipite a crítica marxiana no  que  diz  respeito  à  propriedade  privada,  as teses de  Rousseau  não  pressupõem  a  ruptura    com  a  mesma.  Nosso  autor  admite  a  sua  existência  baseada  nas  necessidades de  subsistência.  Nesse  sentido,  as teses republicanas exerceriam  enorme  atração  entre  os pequenos proprietários e  artesãos que  viam  as suas  condições de  vida  sendo  arruinadas pelo  avanço  das relações capitalistas de  produção.
No entanto, o que Rousseau ignorava é que o estímulo à concentração de  propriedade é algo inerente à dinâmica capitalista. Como analisa Coutinho
A  base  econômico-social  de  sua  ordem  democrática  não  implica  a  socialização da propriedade, mas sua repartição igualitária (condição, para  ele, da possibilidade de emergência da vontade geral): ninguém deveria ter  propriedade em excesso nem ser desprovido de propriedade, mas o fato é  que  a  base  econômico-social  vislumbrada  por  Rousseau  continua  a  se  basear na propriedade individual e, desse modo, em última instância, numa economia  mercantil,  que,  com  Marx,  poderíamos  chamar  de    “economia  mercantil simples”, ainda pré-capitalista.(COUTINHO,1996, p.128)  
Assim sendo, a crítica republicana do capitalismo se apresenta de forma  moral  não  levando  em  conta  as  determinações econômico-materiais  da  ação  egoística-instrumental que caracteriza a sociabilidade humana na ordem do capital.
Outro  elemento  que  evidencia  a  fragilidade  da  crítica  de  Rousseau  ao  capitalismo emergente é a sua análise a respeito da formação da “vontade geral”. O  nosso autor  possui grande  reticência  a formação  de  grupos particulares no  interior  da  “assembléia”  compreendendo-os como  um  obstáculo  à  formação  da  “vontade  geral”.  Apesar  de  recomendar  a  criação  de  inúmeros grupos para  que  se  evite  a  sobreposição dos interesses de um grupo particular, Rousseau não deixa claro como  tais grupos se  articulariam  para  formar  a  vontade  geral.    Nesse  sentido,  podemos afirmar  que  Rousseau  não  dá  a  merecida  atenção  à  formação  de  identidades e  agrupamentos políticos   baseados em  diversos elementos da  realidade  sócio-cultural.  As identidades religiosas,  nacionais,  de  gêneros,  territoriais,  por  exemplo, não  são  compreendidas como  um  elemento    legítimo  e  positivo  de  qualquer  processo político que se proponha democrático.  
Contudo,  ao  apontar    as contradições  sociais que  se  desdobrariam  da  efetivação do direito à propriedade privada, Rousseau antecipa também Marx no que  diz  respeito  aos fundamentos políticos e  econômico-materiais   da  luta  de  classes.  Embora  não  lançando  mão  de  um  maior  rigor  teórico-metodológico,  no  “Discurso  sobre  a  origem  e  os fundamentos da  desigualdade  entre  os homens”  é atribuído  à  propriedade a divisão dos seres humanos  entre “ricos” e “pobres”.
Apesar  das limitações espaço-temporais com  que  se  defrontou,    a  formulação  de  Rousseau  é,  sem  dúvida,  uma  das mais importantes  obras do  pensamento  moderno  ocidental.    Ressaltamos o  debate  Republicano  acerca  da  democracia, este que certamente é a sua  principal contribuição teórico-ideológica.  O  seu grande mérito reside na universalização da proposta democrática, onde todos os  membros de  uma  determinada  comunidade  são  compreendidos como  sujeitos históricos, portanto com real poder de decisão sobre o seu destino.
Durante  a  primeira  metade  do  século  XIX,  quando  as teorias socialistas  ainda  caminhavam  a  passos lentos,  as teorias republicanas tiveram  uma  grande  influência  no  embrionário  movimento  operário.  A  sua  discussão  a  respeito  da  democracia  repercutiu  diretamente  nas lutas operárias   do  século  XIX,  fornecendo  subsídios teórico-ideológicos para  a  defesa  do  sufrágio  universal.  Outro  momento  em  que as  influências    das teses de Rousseau  se fizeram  presentes foi  durante  a  Comuna de Paris, em 1871. Embora sendo realizada em um contexto onde as teses  socialistas  se  consolidavam  como  a  principal  referência  teórico-ideológica  do  movimento  operário,  a  tese  da  democracia  direta  defendida  claramente  por  Rousseau foi aplicada na prática. Durante o período em que a  Comuna resistiu à repressão político-militar, os interesses da coletividade  operária e pequeno-burguesa de Paris se sobrepuseram aos interesses de classe da  burguesia.
  O  pensamento  republicano  fundamentou  uma  nova  concepção  de  Direitos Humanos. Enquanto para os liberais a esfera privada e individual é o locus da  realização  dos  Direitos Humanos,  o  Republicanismo  estabelecerá  a  esfera  pública  e  coletiva  como  o  verdadeiro  espaço  da  sua  efetivação.  Para  esta  perspectiva,  o  homem  não  pode  ser  concebido  isoladamente  do  seu  semelhante,  pois ele  atinge  o  seu  estágio    civilizatório  quando  estabelece  através do  contrato  social  a  ação  individual-comunitarista  como  mediação  da  relação  entre  indivíduo  e  coletividade. Esta  se caracterizaria por ter como fim o bem-estar coletivo, pois sem  este seria impossível atingir tal estado no plano individual.  Dessa forma, Rousseau  concebe o homem civilizado como um indivíduo social, portanto,  que constrói a sua  singularidade  a  partir  das relações   sociais estabelecidas com  outros homens.  Conseqüentemente,  a  teoria  republicana  antecipa  a  crítica  ao  ethos  individualista-liberal que caracterizaria a sociedade capitalista emergente.   
Portanto, ao contrário do que uma leitura superficial poderia sugerir, não  há nenhuma perspectiva totalitária 
Assim  sendo,  ao  compreender  a  vida  em  sociedade  como  o  espaço  de  fundamentação da condição humana, Rousseau inaugurou a crítica a universalidade  abstrata dos Direitos Humanos buscando a sua efetiva realização universal.”
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Fonte:
BRUNO JOSÉ DA CRUZ OLIVEIRA: “DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: LOCKE, ROUSSEAU E MARX”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação 
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público 
 
 
 
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