Jean-Jacques Rousseau e a escrita da interioridade



“O despertar para a subjetividade, evidenciado a partir do desgaste do paradigma do mito como portador do imaginário público fez-se notar num primeiro momento no século XVI, com a difusão da linguagem escrita, dando lugar à “moderna figura do autor”, e ao conseqüente estabelecimento do conceito de ficção. Esta crescente popularidade da enunciação personalizada gerou a necessidade de se criar meios de legitimação do discurso pelo seu conteúdo de verdade. Porém, é no alvorecer do século XVIII, com a literatura revolucionária de Rousseau, que a questão da “verdade ficcional” terá seu primeiro marco expressivo.

Segundo Ângela Maria Dias, em “Memória em ficção”, ensaio publicado pela Revista Tempo Brasileiro,

a grande façanha da identidade consiste na definitiva arquitetura do conceito de ficção, que ultima em pleno século XVIII. Neste momento, a cultura e a arte, porque divorciadas da antiga representividade pública, esclesiástica e cortesã, constituem esferas separadas da reprodução da vida social e passam a servir de suporte ao ‘processo de autocompreensão das pessoas privadas’.
(DIAS, 1995, 97)

Observa-se, a partir daí, uma transformação na relação entre escritor e leitor, e entre leitor e o texto. A exposição da subjetividade, impondo-se através do relato autobiográfico, com o artifício da narração através de cartas e diários simulados, vai-se tornando “critério de validação do romance”, uma vez que vai criando meios de estabelecer empatias e identificações entre autor e receptor, estreitando de tal maneira esta relação que a ficção produzida pelo eu deixou de ser entendida como invenção, passando a ser considerada manifestação da realidade.

Rousseau foi um dos primeiros a experimentar a glória do “pacto autobiográfico”, estudado por Lejeune. Ensinando os leitores a ler, o genebrino solitário, através de suas cartas, tentava tocar suas vidas interiores, abrindo as portas para o romantismo. Esta estratégia requeria uma ruptura com a literatura convencional: em vez de se esconder na narrativa e manipular personagens- fantoches, Rousseau lançava-se em suas obras e esperava que o leitor fizesse o mesmo. E, deste, modo, não podemos deixar de citar os personagens do primeiro e grande romance de Rousseau, Nova Heloísa, que se atiram à leitura com a mesma entrega que o autor dedicou à leitura dos romances que sua mãe lhe deixara. Como se trata de um romance epistolar, a trama desenvolve-se através da troca de cartas. A vida não pode ser dissociada da leitura nem o amor, da escrita de cartas amorosas. Na verdade, os amantes ensinam um ao outro a ler, da mesma maneira como ensinam-se mutuamente o amor.

Nos prefácios desta obra, ele discute a leitura e a maneira de ler seu romance. Uma espécie de defesa pessoal da acusação de estar publicando um romance, tendo em vista que, para a época, os romances eram vistos ainda como perigo moral, especialmente quando abordavam o amor e seus leitores eram as jovens senhoras. No entanto, ali estava ele, exibindo seu nome num obra que falava de um tutor que seduz sua aluna e, mais tarde, reúne-se a seu marido, num verdadeiro menage à trois.

Segundo E. Cassirer,
Antes de Rousseau, a sensibilidade lírica original parecia quase completamente esgotada na França; até mesmo o nome e a peculiaridade do gênero lírico pareciam esquecidos pela estética francesa. (...), e se o verso adquire uma mobilidade e uma leveza jamais obtidas, esta leveza advém justamente do fato de ele não estar mais sobrecarregado com um conteúdo verdadeiramente poético. Ele se tornou um mero invólucro que se submete à idéia; serve como roupagem a uma verdade filosófica ou moral; é um recurso cômodo para se atingir um objetivo didático (...) surge, assim uma época na literatura francesa denominada la poésie sans poésie. (CASSIRER, 1997, p. 82)

Esse problema existente na língua e na literatura francesas é quebrado somente por Rousseau.

Escrito no momento em que rompia com Diderot e o grupo de filósofos, quando gozava do reconhecimento por sua virtuosa moral sobre as artes e as ciências, Rousseau alegou que Nova Heloísa não seria um romance, e sim uma coleção de cartas que ele estaria apresentando na condição de editor, que reproduzia a comunicação de duas almas. Tratava-se da escrita de gente estrangeira, muito humilde, que não interessaria, portanto, ao público sofisticado da elite sócio-cultural. O leitor ideal deveria se despojar das convenções da literatura bem como dos preconceitos da sociedade, o que evidentemente já representava uma provocação política, pois deixava clara a sua insinuação de que a literatura era um instrumento de que se havia utilizado o Antigo Regime. Para ele, a própria filosofia tornara-se um modismo, sinônimo da sofisticação parisiense, então, buscou inventar uma nova fórmula de fazer literatura, na qual pudesse defender a causa da virtude, apelando não para o cidadão mas para o homem.

Rousseau tornou-se, portanto, o descobridor e o reanimador do mundo lírico. Foi a reaparição desta força lírica que tanto impressionou e comoveu os contemporâneos de Nova Heloísa. Eles não consideraram este romance uma obra da imaginação; sentiram-se transportados do círculo da literatura para o centro de uma nova existência. O genebrino solitário despertou antes de todos para esta Vita Nuova a partir da relação imediata com a natureza, e foi o primeiro a despertá-la nos outros.

A retórica de Rousseau abria portanto um novo canal de comunicação entre dois seres solitários, o escritor e o leitor, e reformulava seus papéis. O autor seria o estrangeiro, profeta da virtude, e o leitor seria qualquer um que pudesse entender a linguagem do coração. Há aqui um paradoxo evidenciado: se por um lado ele revolucionava o estatuto da ficção, por outro, deixava clara a exigência de ser lido como o profeta da verdade absoluta, retomando, assim, a maneira de ler que parece ter prevalecido nos séculos XVI e XVII: ler para absorver a palavra de Deus. Este tipo de leitura parecia exigir do leitor um ato de fé, uma fé incondicional no autor, que relacionou toda a sua obra consigo mesmo, com seu eu, iniciando uma nova concepção de autor, que atingiria seu auge em Confissões. O desvelamento de suas falhas morais, a partir da experiência da memória contada, enfatizava sua honestidade, e criava um autor ideal, que falava do fundo do coração, uma espécie de semideus. A partir daí, abria-se o caminho para a época da sensibilidade, e para o Romantismo alemão e francês.

Esta busca desesperada pela verdade do ser, pelo conhecimento de si mesmo e pelo reconhecimento dos outros perpassou toda a obra de Rousseau e somente através do apelo à linguagem pôde tomar corpo o seu projeto de dissolver os obstáculos do mundo exterior; a linguagem será portanto a “potência mágica” que poderá transpor a distância que não consegue atravessar por meio da ação. Se uma das principais características da modernidade é justamente a dessacralização da arte e do artista, é interessante notar o caráter “democrático” das Confissões de Rousseau.

Como assinalou Costa Lima, em Sociedade e discurso ficcional, nesta obra “todos os homens são igua is”. Não devemos lê-la tomando-o como um sujeito autoritário, mas como alguém que queria apenas ser compreendido. Porém, o próprio Rousseau, muito cedo em seu relato das Confissões, perceberá que não basta ser “transparente” para ser bem compreendido, e esta tentativa será realmente frustrada, restando a ele apenas o imaginário, o devaneio, o recolhimento em sua intimidade, o entreter-se consigo mesmo, que consistirá na consciência de sua própria solidão.

Segundo a análise do rousseauísta Starobinski, esse recuo para o imaginário e para a intimidade do eu solitário traz em si “algo de ambíguo”.

De um lado, para Rousseau, é um retorno à independência total, à suficiência perfeita do sentimento imediato. Mas, objetivamente, para nós, há aí um rodeio com a finalidade de captar os olhares por meios que a presença física, por si só, não possuía. Fazendo apelo à linguagem, a alma única de Jean-Jacques recorre à mediação universal para melhor se manifestar em sua singularidade e em sua hostilidade com o resto do mundo (...) tornar-se atraente sem se desprender de si mesmo (...) Obter a atenção, a simpatia, a paixão dos outros, mas sem fazer nada que não se abandonar à sedução de seus caros devaneios. Assim, ele será um sedutor seduzido
. (STAROBINSKY, 1991, p. 181)

A perseguição que enfrentará por parte da sociedade é para Rousseau o próprio aprisionamento, mas percebe-se aqui um jogo duplo: ao expor o seu eu aos olhos dos outros, fica claro o seu desejo de incitar um determinado tratamento, mas provoca essa resposta como se não houvesse feito nada para tal comportamento, fingirá por vezes surpreender-se. Para tal exposição do eu se utilizará de recursos de estilística (como a presença repetitiva do adjetivo ), que darão o tom de súplica, enfatizarão seu desapontamento com o mundo e tentarão explicar seu afastamento. Quisera ser apenas ele mesmo, a sua vida interior. Sua solidão é seu refúgio, mas também é o modo de eximir-se dos meios pelos quais é preciso passar para ir ao encontro dos outros. Ele espera fazer-se amar sem fazer outra coisa senão ser ele mesmo.

Na verdade, Rousseau não quer assumir os riscos e as dificuldades que se interpõem na comunicação direta com o próximo, perde assim a “verdade” de seu contato com o outro, encerrado que está no abrigo inviolável de sua própria consciência. Por não ter encarnado os “fantasmas” da ação mediadora, por não ter tido a vontade de se engajar diretamente no universo do embate com o outro, define-se como escritor, como primeiro romântico, pois não teve que transpor o caminho tortuoso que leva aos corações, não se preocupou em estabelecer laços reais com ninguém, perdendo pois, a capacidade de viver a "pureza de um sentimento" imediato.

Starobinski afirma que graças a esse despojamento, contudo, Rousseau escapa a todo domínio, e torna-se invulnerável.

No momento em que o despojamento é consumado, no momento em que ‘de pior nada mais é possível’, Rousseau recebe a revelação de uma liberdade que nada pode destruir. A consciência permanece intacta, e provida de uma liberdade que nada pode destruir. A perda de tudo transforma -se em posse absoluta, pois o extremismo da adversidade põe em evidência esta parte do ser que jamais lhe será tirada
. (STAROBINSKY, 1991.)

Nesse sentido, pode-se dizer que sua própria alma é a única coisa que os homens não podem dele levar.

Mas é em Os devaneios do caminhante solitário que esta tal liberdade, objetivo maior do escritor romântico, assume sua mais fiel representatividade. Nesta obra, publicada em 1782 como continuação de Confissões, só que orientada para uma nova ótica, ele inovará tanto na forma como no conteúdo, desde a primeira frase: “Eis- me, portanto, sozinho na terra...”(ROUSSEAU, 1986, p. 23), que constitui o cerne deste texto. Nesta obra, dividida em dez Devaneios, a solidão, aqui entendida como liberdade do ser, está expressa na busca de si mesmo, e especialmente da felicidade, a necessidade de amar e ser amado, mas tudo resumido na tranqüilidade de se saber bastar-se a si mesmo. Este eu não é, portanto, totalmente solitário, já que conta com a presença de Deus e seguirá neste eterno caminhar para dentro de si que culminará com o retorno ao seio da mãe que nem mesmo conheceu, evidenciado no décimo e último devaneio.

Segundo Jean Starobinski (1991), nesta obra o eu é sempre protagonista, e é para ele que escreve, pois a palavra aqui não está mais voltada para o exterior e sim para a indagação de seu próprio destino. No entanto, diante da incansável busca de si mesmo, nesta necessidade de isolamento, ele se deparará com os outros, e com o não-eu, seu alterego, que só pode se concretizar no Absoluto, no qual o eu encontra sua plenitude, dirigido apenas pela força de sua intuição.

Ciente de que sua fala é incompleta, mal- interpretada pelos ouvintes, Rousseau escreve suas Confissões, que serão lidas por Jacques Derrida, que a partir delas explicita uma teoria do suplemento, revendo as relações da escrita como complemento da fala. Esta realidade interior desconhecida da sociedade é então partilhada pela escrita que suplementará os signos enganadores da fala. Ele precisa de signos porque as coisas elas próprias não se bastam. Do mesmo modo, alguns objetos se interpõem entre os personagens funcionando como suplementos ou substitutos de sua presença. Se ao escritor parece restar, ainda nesta fase, a esperança, através da escrita como artifício de suplemento, já nos Devaneios, logo na primeira caminhada, datada de 1776, esta remota esperança nas gerações posteriores, se dissipa por completo, como podemos evidenciar na passagem a seguir:

Poucos dias se passaram e novas reflexões me confirmaram como estava errado em contar com a volta do público, mesmo numa outra época, visto que ele é conduzido, no que me diz respeito, por guias que se renovam continuamente nas corporações de que me têm aversão. Os indivíduos morrem, mas os corpos coletivos não morrem.
(ROUSSEAU, 1986, p. 25)

A partir de então ele resigna-se e passa a não mais temer, a nem mesmo esperar a reação dos homens, e, assim, sente-se impassível a ponto de equiparar-se a Deus. Pretende ocupar-se apenas consigo mesmo. Então, fixará pela escrita as felicidades que extraiu da vida em solidão junto à natureza, para que, no futuro, próximo à velhice, ela faça com que ele reviva o sentimento agradável de escrevê-las. Fazendo renascer o tempo passado, ampliando portanto o tempo de sua existência, ressurgiria, pois, o outro (que já foi um dia) em si mesmo.

O hábito de projetar-se para dentro de si mesmo atenuou aos poucos a sensação das lembranças amargas, constituindo portanto um excelente recurso para a evasão da dor.

Esse recurso do qual me lembrei demasiadamente tarde, se tornou tão fecundo que em breve bastou para me compensar de tudo. O hábito de entrar em mim mesmo me fez perder enfim o sentimento e quase a lembrança de meus males; aprendi assim, por minha própria experiência, que a fonte da verdadeira felicidade está em nós e que não depende dos homens tornar verdadeiramente infeliz aquele que sabe ser feliz
. (ROUSSEAU, 1986, p. 31)

Esse sentir-se bem com a solidão, essa felicidade de estar em companhia da natureza, como refúgio da intemporalidade, típica do escritor romântico, inaugura em Rousseau um traço que perduraria em autores da modernidade.

Nessa perspectiva é que estabelecemos a diferenciação do tema da solidão em Rousseau, como recurso na busca da essência do ser, como algo positivo, e no conto de Lygia Fagundes Telles, uma solidão que se reverte por completo em negatividade.

O desafio solitário de Rousseau demonstra de maneira bem clara a referência à solidão como escapismo. Na sua observação da vida, Rousseau concluiu que as paixões, a escassez dos momentos prazerosos e a agitação dos objetos que estão ao redor do homem não lhe permitem reconhecer este “sentimento da existência”, estado de verdadeira felicidade, no qual não necessitamos de nada exterior a nós mesmos, e nem mesmo o tempo é capaz de interferir, neste momento, afirma ele, “bastamo-nos a nós mesmos como Deus”. Como podemos ver na passagem destacada a seguir:

O sentimento da existência, despojado de qualquer outro apego é por si mesmo um sentimento precioso de contentamento e de paz, que sozinho bastaria para tornar esta existência cara e doce a quem soubesse afastar de si todas as impressões sensuais e terrenas que vêm continuamente nos afastar dela e perturbar, na terra, sua suavidade.
(ROUSSEAU, 1986, p. 77.)

Esta subjetividade que se pretende independente, que foi expurgada da sociedade como uma doença contagiosa, encontra nesta solidão, na aversão pela vida ativa, as compensações que o destino dos homens não lhe poderia trazer. Somente através da experiência solitária, da descida ao inferno da própria intimidade, livre de todas as paixões terrenas que a vida social proporciona, o sujeito é capaz de ver-se e de lançar-se nesta busca pela virtude. Na impossibilidade de ser Deus, recusa tudo o que é prejudicial a esse espírito. Fugir da sociedade é uma saída para a virtude, pois é preferível fugir a odiar a humanidade. A partir desta reflexão, relatada na sétima caminhada de Os devaneios, Rousseau reconhece-se portanto como um inadaptado, incapaz de viver entre os homens:

Então, para não os odiar, foi necessário fugir-lhes; então, refugiando-me na mãe comum, procurei em seus braços subtrair-me aos ataques de seus filhos, tornei-me solitário, ou como dizem misântropo, porque a mais selvagem solidão me parece preferível à companhia dos maus, que somente se alimentam de traições e ódio
. (ROUSSEAU, 1986, p. 96.)

A predileção pela botânica para objeto de estudo e deleite parece estar associada ao movimento cíclico da origem, uma vez que faz com que Rousseau retome o tempo da transparência, a sua infância, que nada mais é que o tempo da felicidade e da comunicação verdadeira e livre, e na renovação da memória é possível ser feliz de novo.

Para Rousseau, a sinceridade deveria ser o axioma, a premissa universal. Ele queria dar ao coração a mesma importância que Descartes deu ao cogito. Como assinalou Costa Lima,

A Rousseau ainda não ocorre que a vontade de ser sincero pode ser motivada por algo a ela anterior; que a vontade de destruir todas as máscaras pode alimentar outra máscara. Em suma, que não há um ponto estável, primário, irredutível que possamos conquistar e converter em palavras. (...) Não há dúvida que em Rousseau encontramos o indivíduo que somos. A impossibilidade de Jean-Jacques tornar-se a transparência que desejou ser é o destino comum do indivíduo moderno.
(LIMA, 1986, 295)

Se partimos para o conto de Lygia Fagundes Telles, especialmente para os que consideramos mais representativos da solidão, “A ceia”, “A chave”, “As pérolas”, “O moço do Saxofone”, “Que se chama solidão” e “Pomba Enamorada ou uma história de amor”, vemos que a mesma solidão que é capaz de desvelar a subjetividade é aquela que aponta para o caos, para a decadência do ser. Na obra de Lygia, o sujeito é quase que arrastado numa série de desencontros que irão empurrá- lo para o inevitável abismo da morte.

Segundo Ângela Maria Dias, em ensaio sobre a irônica melancolia do tempo na obra de Lygia,

a obsessiva insistência no tema da fugacidade corrosiva e predatória do tempo, bem como na implausividade dos caminhos da vida, de um lado, tornam a rememoração uma espécie de saída obrigatória para desobstrução da perplexidade e do espanto, de outro, esterilizam-na como possibilidade de renovação. Assim, não existe a possibilidade de enriquecimento existencial ou da sabedoria trazidos pela memória da experiência, já que, ao contrário de ser encarada como a aventura solidária entre o homem e a sua circunstância, ela será exercida pela ironia do narrador enquanto recuperação distanciada de um enredo como busca degradada
. (DIAS, 1990, p. 22)

De fato, no universo ficcional de Lygia, o sentimento da passagem do tempo é algo degradante. Nessa perspectiva, a narrativa reminiscente funcionará como o revide do sujeito ante o inevitável apagamento de sua existência. Como “pão a se dissolver na água” (TELLES, 1982, p. 49), à subjetividade só resta este refúgio: o sentimento interior, e a liberdade de escrever.

Se o êxito do relato autobiográfico está justamente na diafaneidade do narrado, no grau de autenticidade do discurso, que linguagem seria tão fiel a ponto de transmitir o sabor incomparável da experiência pessoal? Rousseau resolveu isso assim: “Terei sempre o estilo que me vier”, isto é, sua fórmula deixava implícita uma vontade de ceder à iniciativa da linguagem, sua obra se faria como fosse possível, e nisso residiu sua verdade: a linguagem era a própria emoção expressa, em vez de meio ou ferramenta, para revelação de uma realidade oculta; ela era o próprio segredo revelado. Ainda que a memória de evocação seja falível, a cadeia dos sentimentos poderá reconstruir os fatos materiais esquecidos. O que importa, de fato, não é a verdade histórica, mas a emoção de uma consciência deixando o passado emergir e representar-se nela. Saímos do domínio da verdade e passamos então à ordem da autenticidade. Segundo esta “lei da autenticidade”, a palavra não precisa reproduzir uma realidade prévia, mas produzir uma verdade. Notar-se-á, pois, uma nova concepção de linguagem, que permaneceria até o surrealismo.

De modo análogo, este reviver (ou refazer-se) pela memória afetiva se faz notar na obra de Lygia, principalmente pelo fluxo da consciência. Presente, passado, reminiscências, falas e ações podem aí misturar-se numa sintaxe descontínua, como num jorro de pensamento, em livre expressão, que nos remetem irremediavelmente à escrita de Clarice Lispector, amiga e contemporânea da autora.

Na ficção moderna de Lygia, vemos que essa mesma busca de Rousseau (pela verdade do ser) é conduzida tão magistralmente que é capaz de revestir o signo lingüístico de uma densidade que nos faz duvidar dos limites da representação. O mundo criado simbolicamente passa a competir, portanto, com o real, e faz com que o protagonista se enrede nas teias da linguagem, “esse terceiro elemento que se interpõe entre o sujeito e o mundo, e que, ao mesmo tempo em que o afasta da experiência concreta da vida, é sua única possibilidade de relação com o outro” (RÉGIS, 1998, p. 85). Assim, podemos dizer que a autora logra o projeto máximo da literatura: a transgressão dos limites da palavra.

Em entrevista à revista Psicologia, a autora diz- nos:
Eu nunca sei o que é deste ou do outro mundo. Nós o tempo todo fazemos ficção em cima da realidade e realidade em cima da ficção. O real e o fictício estão tão misturados. É como a pele que aderiu à noz. Você tira a noz da casca e aquela pele está tão aderida à semente que você não consegue separar mais. Assim eu vejo a ficção e a realidade. Há ficções em que há verdades tão acreditadas, tão aceitas, tão impregnadas de verdade que viram verdades. (...) você não consegue mais descolar a pele do que é verdade e do que é fantasia."

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Fonte:
Fabiana Cristina de Camargo e Silva: “Escrita de melancolia e solidão: O conto de Lygia Fagundes Telles”. (Dissertação apresentada à banca examinadora do Mestrado, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Subárea: Literatura Brasileira e Vida Cultural, pela Universidade Federal Fluminense. Orientadora: Profºa. Dra. Ângela Maria Dias). Niterói, 2006.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público.

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