As crônicas poéticas de Cecília Meireles

Leitura de “Evocação Lírica de Lisboa”

Com a intenção de demonstrar que Crônicas de Viagem podem ser denominadas de crônica poéticas, nesse capítulo escolhemos quatro textos como objeto de análise. São eles: “Evocação lírica de Lisboa”, “Madrugada no ar”, “Luz da Holanda” e “Índia Florida”. Em nossas leituras, abordaremos aspectos que são caros à poesia: o trabalho artístico com a linguagem, a presença da metáfora e o rebuscamento sonoro.

Sabemos que a produção textual de Cecília Meireles tem, em sua grande maioria, ampla expressão em poesia. Mas, a poetisa também escreveu ensaio, peças de teatro, crônicas. Já mencionamos que Cecília Meireles foi tradutora, ensaísta, jornalista. Essa versatilidade de expressão mostra-nos que seu talento também domina o campo do teatro e da prosa, contudo,notamos que as crônicas que escolhemos analisar estão destinadas a enveredarem para o território da poesia. Nesse encontro entre os dois gêneros (crônica e poesia), vemos o surgimento de uma obra híbrida, dotada de características peculiares, e mesmo dificultosa em termos de definição precisa. O que prevalece é volubilidade no estilo da escrita, ora repleta de símbolos, alegorias, musicalidade, ora demarcada pelo caráter denotativo.

Em “Evocação Lírica de Lisboa” a linguagem é embrenhada pela polissemia, pela correspondência entre forma e sentido e seus aspectos convergem com a finalidade de provocar o efeito poético.

Nos parágrafos seguintes, podemos notar que o uso do pronome tu proporciona um distanciamento das experiências estritamente pessoais em favor do que há de universal:

Obrigam-te a chegar perto, a pisar um chão que não sabes bem se existe: e em tudo percebes a respiração e o alimento do mar. Entras numa torre que está mergulhada n’água. E pensas em condenados que se puderam desfazer em limo, em alga, cujosuspiros devem andar incorporados ao lamento das ondas, cujas lágrimas se foram como ribeiros ao rio, e do rio a todos os oceanos onde estarão até quando nunca mais se chorar. (MEIRELES, 1947, p.231)

A contemplação e o olhar subjetivo são características próprias dos meditadores e a narradora é o porta-voz do questionamento comum sobre a essência dos seres e dos objetos pelo mudo. A mistura proposital das ações do escritor e do leitor a partir do emprego ambíguo do pronome “tu” demonstra como a autora desvencilha-se das situações pessoais para expressar experiências universais. Cecília parece chamar os leitores, evocá-los para virem viajar com ela por Lisboa e assim, através das comparações entre homem e os dados da paisagem, descobrir um sentido maior para existência.

Não podemos esquecer de mencionar a recorrência dos verbos ver e olhar, que são retomados por Cecília em diversos parágrafos:

Chegas a um mosteiro, e vês o mar encrespando-se em pedras, vês um lavor só de água formando grutas, contorcendo-se em todas as cristalizações que pertencem às planícies submarinas: vês a medusa e a estrela, e o copiosonascimento do coral”. [...]
E olhas para o interior de casas que são como aquários, onde uns altivos camarões estendem seus lisos bigodes mongóis e gigantescas lagostas meditam sobre a fina cerâmica da sua arquitetura. (MEIRELES, 1947, p. 232)

Ao mesmo tempo em que as repetições conferem um ritmo circular à escrita, a forte recorrência do verbo ver mostra-nos que a ação do olhar subjetivo é responsável pela transformação do ambiente. A autora observa o mundo externo de forma imaginativa e sua ação de contemplar (diferente da visão pouco profunda do turista) desvenda o caráter surpreendente da cidade.

Outra questão que não podemos deixar de abordar é o forte emprego dos artigos e dos pronomes indefinidos. Frases como: “Acordas num lugar de brumas”; “sentes em redor de ti um arejado bocejo d’água”; “São tudo espumas de aurora”; “É um caramujo de outros tempos”; “um chão que não sabes bem se existe”; “é uma água mais longa”; “ um movimento sonhado, um entendimento sem palavras”; “roupas que não pertencem a nenhuma época”; “em cujas mesas todos os poetas da Lusitânia” ; “em todos os planetas” “e descobrirás em alguma taverna o homem que está cismando coisas difíceis”; “o peso de um velho destino épico”; “Tens vontade de estar em todas as varandas”. Essas formas são combinadas a substantivos (abstratos, ligados à natureza, à paisagem, às reminiscências) e a adjetivos que conferem ao texto uma atmosfera vaga,imprecisa, volúvel. O substantivo “certeza” e o advérbio “claramente”, elementos que norteiam a apreensão objetiva, vêm modificados pela negação: “Não tens certeza do céu”; “Não podes ainda ver claramente”. A cidade de Lisboa é descrita a partir de uma atmosfera fugidia, imprecisa, como um lugar que não pode ser demonstrado de forma objetiva, mas revelado através do olhar inspirado. Além disso, Lisboa vem destacada por vírgulas e por letras maiúsculas, o que enfatiza seu aspecto incomparável.

Nem todos os substantivos são acompanhados pelos artigos indefinidos. O mar, as cristalizações, a medusa, a estrela são elementos bem definidos. Isso demonstra-nos que esses objetos têm valor diferenciado para a cronista.

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Fonte:
MÁRCIA ELIZA PIRES: “CRÔNICAS DE VIAGEM: O OLHAR POÉTICO DE CECÍLIA MEIRELES”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de Pesquisa: Teorias e Crítica da Poesia Orientador: Adalberto Luis Vicente). Araraquara – SP, 2008.

Nota
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