Influência bíblica em Gonçalves Dias

O grande poeta brasileiro, Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), autor de “Canção do Exílio”, poema este que influenciou o nosso Hino Nacional, serviu-se também da Bíblia como abundante fonte de inspiração. Nos três poemas, a seguir: “Te Deum”, “Idéia de Deus” e “Deus Irae”, Gonçalves Dias discorre poeticamente sobre a Divindade bíblica. O primeiro, um louvor a Deus como o Todo-Poderoso; no segundo, uma firme declaração de Sua existência; e, no último, a ira desse Deus contra a injustiça e o mal. Veja-se:


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TE DEUM
Nós Senhor, nós te louvamos,
Nós, Senhor, te confessamos.(?)

Senhor Deus Sabaó, três vezes santo,
Imenso é o teu poder, tua força imensa,
Teus prodígios sem conta; - e os céus e a terra
Teu ser e nome e glória preconizam.

E o arcanjo forte, e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita – a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaó, três vezes santo.

Na inocência do infante és tu quem falas;
A beleza, o pudor – és tu que as gravas
Nas faces da mulher, - és tu que ao velho
Prudência dás, - e o que verdade e força
Nos puros lábios, do que é justo, imprimes.

És tu quem dás rumor à quieta noite,
És tu quem dás frescor à imensa brisa,
Quem dás fulgor ao raio, asas ao vento,
Quem na voz do trovão longe rouquejas.

És tu que do oceano à fúria insana
Pões limites e cobro, - és tu que a terra
No seu vôo equilibras, - quem dos astros
Governas a harmonia, como notas.

Acordes, simultâneas, palpitando
Nas cordas d’Harpa do teu Rei Profeta,
Quando ele em teu furor hinos soltava,
Qu’iam, cheios de amor, beijar teu sólio.
Santo! Santo! Santo! – teus prodígios
São grandes, como os astros, - são imensos
Como areia delgada em quadra estiva.

E o arcanjo forte e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita- a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaó, três vezes garnde.

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IDÉIA DE DEUS
Gross ist Herr! Die
Himmel ohne Zahl
Sind seine
Wohnungen!
Seine Wagen die
donnerden Gewölke,
Und Blitze sein
Gespann.
Kleist

I
À voz de Jeová infindos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada.

Luziu no espaço a lua! sobre a terra
Rouqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos
Ao Deus prodigioso.

Hino de amor a criação, que soa
Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante.

A morte, as aflições, o espaço, o tempo,
O que é para o Senhor?
Eterno, imenso, que lh’importa a sanha
Do tempo roedor?

Como um raio de luz, percorre o espaço,
E tudo nota e vê –
O argueiro, os mundos, o universo, o justo;
E o homem que não crê.

E ele que pode aniquilar os mundos,
Tão forte como ele é,
E vê e passa, e não castiga o crime,
Nem o impio sem fé!

Porém quando corrupto um povo inteiro
O Nome seu maldiz,
Quando só vive de vingança e roubos,
Julgando-se feliz;

Quando o impio comanda, quando o justo
Sofre as penas do mal,
E as virgens sem pudor, e as mães sem honra.
E a justiça venal;

Ai da perversa, da nação maldita,
Cheia de ingratidão,
Que há de ela mesma sujeitar seu colo
À justa punição.

Ou já terrível peste expande as asas,
Bem lenta a esvoaçar;
Vai de uns a outros, dos festins conviva;
Hóspede em todo o lar!

Ou já torvo rugir da guerra acesa
Espalha a confusão;
E a esposa, e a filha, de terror opresso,
Não sente o coração.

E o pai, e o esposo, no morrer cruento,
Vomita o fel raivoso;
- Milhões de insetos vis que um pé gigante
Enterra em chão lodoso.

E do povo corrupto um povo nasce
Esperançoso e crente.
Como do podre e carunchoso tronco
Hástea forte e virente.

Oh! como é grande o Senhor Deus, que os mundos
Equilibra nos ares;
Que vai do abismo aos céus, que susta as iras
Do pélago fremente,
A cujo sopro a máquina estrelada.

Vacila nos seus eixos,
A cujo aceno os querubins se movem
Humildes, respeitosos,
Cujo poder, que é sem igual, excede
A hipérbole, arrojada!
Oh! como é grande o Senhor Deus dos mundos,
O Senhor dos prodígios.

II
Ele mandou que o sol fosse princípio,
E razão de existência,
Que fosse a luz dos homens – olho eterno
Da sua providência.

Mandou que a chuva refrescasse os membros,
Refizesse o vigor
Da terra hiante, do animal cansado
Em praino abrasador.

Mandou que a brisa sussurrasse amiga,
Roubando aroma à flor;
Que os riachos tivessem longa vida,
E os homens grato amor!

Oh! como é grande e bom o Deus que manda
Um sonho ao desgraçado,
Que vive agro viver entre misérias,
De ferros rodeado;

O Deus que manda ao infeliz que espere
Na sua providência;
Que o justo durma, descansado e forte
Na sua consciência!

Que o assassino de contínuo vele,
Que trema de morrer;
Enquanto lá nos céus, o que foi morto,
Desfruta outro viver!

Ho! como é grande o Senhor Deus, que rege
A máquina estrelada,
Que ao triste dá prazer; descanso e vida
À mente atribulada!

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DIES IRAE

Já o mundo corrupto! – a terra ingrata
Frutos de maldição produz somente;
E enquanto os homens ao mercado afluem,
Vazio o templo do Senhor se enluta,
Empoeira-se o altar, e pelas naves,
Gretadas, rotas pela mão do tempo,
De cânticos e preces deslembradas,
A voz de Deus já não reboa imensa!

Tudo porém conserva o manso aspecto:
O sol girando, e na aparência o mesmo,
Do ano as quadras compassado alterna;
E os astros, seus irmãos, gravitam sempre
D’abóbada celeste. A terra é a mesma;
As águas pelos vales se deslizam,
Ou d’alpestres montanhas se despenham
Co’os mesmos sons, co’a mesma queda: as brisas
Inda conversam nos soturnos bosques;
A mulher, a mais bela criatura,
Nas suas próprias perfeições compraz-se,
Como quando, no Éden, as pulcras formas
Pasmou de ver representadas n’água,
E de as ver se ufanou. Inda conserva
O mesmo orgulho e inteligência o homem,
O rei da criação, o deus criado,
De quando vinham, por pedir-lhe os nomes,
Cetáceos, aves e os répteis e aquelas
Criaturas-montanhas, que passaram
Entre Adão e Noé à flor da terra!

Tudo o mesmo se mostra; mas a alma,
Esse mundo interior, esse outro templo,
Onde gravara o próprio Deus seu nome,
Como os templos de pedra, jaz sem lume,
Jaz como o prédio a desfazer-se em ruínas.
Onde um guarda solícito não mora,
E entregue às aves más, que em chilros pregam,
Que ali, na ausência do Senhor imperam.
Da divina bondade cheio o vaso
Já transborda de cólera e justiça
E o largo rio do perdão saudável,
Que mais não corra, empece: Santas águas
Por cuja causa os séculos já viram,
Sem justa punição, ofensas graves;
Que o Senhor consentisse persistirem
Os maus no mal, à espera d’emendá-los;
Que triunfasse a malvadez; e o crime,
Vexando os bons, senhoreasse a terra.

Mas Deus, que fora outrora pai clemente,
Dando começo ao reino da justiça,
Em austero juiz se há convertido.
Como um carro, que vai d’encontro ao abismo,
Perfaz o sol precípite o seu giro,
Indo a tocar a temerosa meta
Prevista dos profetas. Um arcanjo
Como mão robusta inda retém os elos
Da cadeia do tempo, enquanto a outra
Da vida o livro volumoso sela
Com sete brônzeos selos. Deus ofeso
Tira os olhos do mundo, e o mundo há sido!

Quem pudera pintar as discordâncias
Em que labora a natureza! Crescem
Da terra ígneos vapores, sufocando
O que respira, o que tem vida: os montes
Em crateras se rasgam, que vomitam
Fumo e lava incessante; o mar s’empola
E em fúria ardendo, arroja os altos cimos
Cruzados vagalhões, qual se tentara
Sovertê-los; os ventos se contrastam!
Novos prodígios, novos monstros surgem!
O mar se torna em sangue, o sol em fogo,
O Universo em mansão d’aflitas dores,
O homem sofre, blasfema e desespera,
E vendo os mundos desabar precípites,
Um grito solta d’horroroso transe,
Como de nau, que em alto mares afunda
E rola os restos n’amplidão das águas.
Satisfaz-se o Senhor. Que resta? – o caos,
O horror, a confusão, o vulto enorme
Do tempo, que escurece o fundo abismo,
Onde por todo o sempre jaz cativo;
E da morte o cadáver gigantesco
Quase ocupando a superfície inteira
Dum mar de chumbo, escuro e sem rumores.
Da glória do Senhor um raio apenas,
Fere da morte o rosto macilento
De tudo quanto foi, o quanto existe!

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