Singularidade cultural do povo judeu

Por: Iba Mendes (2002)

INTRODUÇÃO:

Este artigo tem como finalidade primordial abordar os principais aspectos que norteiam a vida do povo judeu ao longo de sua existência: as raízes, os valores, a religião, a cultura, em suma, sua singularidade e continuidade ao longo da história.

Embora seja relevante no estudo da história de um povo, os detalhes de suas origens e os pormenores de sua existência, não há neste trabalho a pretensão de se abordar minúcias desta questão. Todo o trabalho fundamenta-se nas quatro características básicas que distinguem a comunidade judaica, dos primórdios de sua existência aos dias atuais, que são: a étnica, religiosa, social e territorial.

A CARACTERÍSTICA ÉTNICA
A característica étnica é certamente um dos muitos traços que singulariza o povo judeu. É certo que cada povo possui características peculiares ao seu próprio grupo, manifestando sentimentos de distinção em relação a outros, entretanto, no caso do povo judeu, essas características adquirem um aspecto singular no fato de haver uma Aliança ou um Pacto com a Divindade: “O conceito, na verdade, traz o perigo de poder induzir a um sentido de superioridade, e seria ingênuo fingir que os judeus nunca se deixaram levar por isso. Mas por esse mesmo motivo, os mestres do judaísmo, desde os tempos antigos, esforçaram-se em advertir contra tal noção” (GOLDBERG).

Essa Aliança implica em regras e obrigações. O povo judeu foi incumbido de ser um sacerdócio santo, e a desobediência seria punida com severos castigos. De acordo com a Bíblia, o símbolo “material” dessa aliança seria a circuncisão, que sempre foi uma característica étnica permanente dos judeus, perdurando até hoje.

Faz parte também da característica étnica judaica, a proibição de casamentos de judeus com outros povos: “Nem contrairás matrimônio com os filhos dessas nações; não darás tuas filhas a seus filhos, nem tomarás suas filhas para teus filhos” - Deuteronômio 7:3. Uma explicação bem moderna sobre o assunto, é dada pelo o Rabino Henry Sobel:

“O casamento já é suficientemente complicado e complexo quando marido e mulher compartilham a mesma fé. Acrescentar divergências religiosas aos problemas cotidianos só pode gerar maiores tensões e conflitos” (SOBEL).

O Shabat é um dos traços mais distintivo da característica étnica judaica. Sua importância para os judeus é demasiada elevada, e para muitos é o elo que tem mantido unido o povo, e o que há de perpetuar essa unidade: “Se o Shabat continuar sendo guardado pelos que sempre conservaram a sua celebração, e conseguir reconquistar aqueles que dele se afastaram, permanecerá garantido o futuro do judaísmo” (PINKUSS).

As leis dietéticas são também um outro fator preponderante que distingue o povo judeu de outros povos. É praxe entre os povos a manutenção de hábitos alimentares específicos, contudo, para os judeus, esses hábitos devem ser seguidos por se tratar de uma ordem divina. Sua observância consiste muito mais nos aspectos sagrados do que nas características biológicas e sanitárias: se foi Deus quem ordenou, não há porque discutir seu uso do ponto de vista científico ou biológico: “De um ponto de vista ortodoxo, essas leis foram ordenadas divinamente, e é isso que as torna válidas. Aqueles que participam dessa convicção são naturalmente compelidos pela sua consciência a observá-las” (GOLDBERG DINUR).

A especificidade étnica, conforme afirma Ben-Zion Dinur, é atestada também pelos padrões de crescimento nacional e pela terminologia específica que usavam: “o povo era chamado ‘filhos de Israel’ e como um todo é a ‘Casa de Israel’ enquanto suas partes são as ‘Tribos de Israel’ e seus chefes os “Antepassados de Israel’” (DINUR).

Em suma, as características étnicas judaicas são tão diversificadas como são as opiniões a respeito do próprio povo judeu. Elas não são melhores nem piores que as dos demais povos, são apenas singulares, singulares e seculares.

A CARACTERÍSTICA RELIGIOSA
É sabido que a história do povo judeu teve início com Abraão, para quem Deus fez uma aliança dizendo: “Quanto a Mim, eis a minha aliança contigo, e serás pai de uma multidão de nações; (...) E estabelecerei a minha aliança entre Mim e ti, e entre tua semente depois de ti, nas suas gerações, numa aliança eterna, para ser teu Deus, e, de tua semente, depois de ti” - Gêneses 17:1-8.

É impossível desassociar o povo judeu das figuras bíblicas: Abraão, Isaque, Jacó, Moisés, Davi e outras que são mencionados na Bíblia. O caráter religioso é sintetizado especificamente pelo monoteísmo ético judaico. Como é consensual, o povo judeu foi o único, na antigüidade, que acreditava na existência de apenas um Deus: “A idéia básica da religião israelita é que Deus é supremo. Não há nenhum reino acima ou além dele que limite a sua soberania absoluta. Ele é completamente distinto e diverso do mundo; não está sujeito a quaisquer leis, compulsões ou poderes que o transcendem. É, em suma, não-mitológico. Esta é a essência da religião israelita, e o que coloca à parte de todas as formas de paganismo” (KAUFMANN).

A síntese da história judaica fundamenta-se na Bíblia. É através dela que conhecemos os primórdios da civilização judaica: o pacto já citado, entre Deus e Abraão; a libertação de Israel do domínio e escravidão egípcia; a conquista da Terra Prometida; o estabelecimento da monarquia, enfim, os triunfos e os fracassos que decorreram da obediência ou desobediência aos mandamentos divinos. Toda vida judaica foi norteada pela noção do divino. A Torá e as obrigações advindas dela são partes intrínsecas da comunidade ao longo de sua existência. Mesmo durante as dispersões, os valores sagrados jamais estiveram ausentes. O próprio fato de o Estado de Israel voltar a existir depois de séculos em decadência, pode, pelo menos parcialmente, ser atribuído à fé do povo e ao anseio de se estabelecerem na “Terra Prometida”, de seus antepassados. As lutas existentes atualmente fundamentam-se muito mais na questão religiosa do que na acumulação de todos os outros fatores: “Um dos principais componentes da personalidade judaica, o único verdadeiramente essencial do ponto de vista dos crentes, foi, durante muito tempo, a religião: esta implica um modo de vida e, quando levada aos seus extremos, deve impregnar todos os atos da existência quotidiana. (...) Ainda que na maioria sionistas de tendência socialista e desligados da religião, os fundadores do Estado, por complexos motivos em que se enredavam o coração e a razão, a ligação com as tradições e as necessidades políticas, não deixaram de colocar o Retorno no centro de exaltantes perspectivas bíblicas” (FRIEDMANN).

O profetismo foi outro fator preponderante para a continuidade e manutenção dos valores da religião judaica. “No trabalho dos profetas literários, a religião israelita atingiu um novo apogeu. Foram os primeiros que conceberam a doutrina do primado da moralidade, a idéia de que a essência da exigência que Deus faz ao homem não é cultural, porém moral” (KAUFMANN).

O que dizer do monoteísmo ético que serviu de base para as maiores religiões do mundo e que influenciou culturas, modificando-as ao longo dos séculos? Em suma, o fator religioso foi e continua sendo imprescindível para a manutenção e unidade das comunidades judaicas em todo o mundo, às que ainda estão dispersas e mesmo às que estão concentradas na Terra de Israel.

A CARACTERÍSTICA SOCIAL
“Quem pode, quer e deve desaparecer, desapareça! Mas a personalidade do povo Judeu não quer, não pode, não deve desaparecer. Não pode, porque inimigos exteriores contribuem a mantê-lo. Não quer e isso provou durante dois mil anos, no meio de padecimentos inomináveis. (...) Ramos inteiros de judaísmo podem perecer, destacar-se: a árvore vive” (HERZL).

Uma das grandes características sociais dos judeus são as comunidades. Desde os tempos mais remotos eles sempre estiveram sob a égide da “congregação”, não simplesmente pelos valores patriarcais, como normalmente se supõe, todavia, uma gama diversificadas de outros fatores dirigiram por prolongados tempos as vidas das pessoas, tais como os chefes das congregações, as assembléias, os juízes, os mensageiros, os profetas etc.

Não se pretende afirmar com isso que sempre houve uma unidade imaculável. Pelas mudanças históricas pelas quais foram submetidos, experimentaram modos de vida amplamente diversificados, porém, sempre houve em comum o respeito pelas tradições, e de alguma forma essa unidade prevaleceu: “...o que os distingue é uma fé comum e crenças comuns, um estilo de vida, desejos, idéias e aspirações. A base desta entidade reside no homem mais do que no lugar; seu alvo não é tanto manter a unidade organizacional quanto a aspiração de mudar a realidade, criar uma realidade social mais desejável do que a já existente” (DINUR).

Mesmo quando o reino fora dividido, e prevalecendo a supremacia de um, ainda assim, havia, não em todos os aspectos, é óbvio, mas no essencial, uma certa unidade que os tornavam “espiritualmente” unidos. Quando vencidos pelos babilônios e submetidos ao cativeiro, tendo o templo, o símbolo máximo da presença divina, destruído, superaram as adversidade, reconstruíram o templo, mantendo-se novamente unidos, congregados.

Na Idade Média, vivendo sob a ameaça das grandes religiões, e mesmo dispersos, conseguiram manter, se não fisicamente, ao menos pela fé, a continuidade de seus mais sagrados valores.

Onde quer que houvesse judeus havia comunidades que sempre mantinham intactas as tradições, e isso mesmo em meio a perseguições e atrocidades. Os judeus russos, talvez sirvam como um grande exemplo de unidade. Mesmo realizando todos os esforços no sentido de destruir o separatismo judeu, o governo russo fracassou ao tentar acabar com as kehilot: “...sob Nicolau I, a burguesia recorreu à conscrição, à perseguição, às escolas da Coroa e à abolição do Kahal; nos primeiros tempos do reinado de Alexandre II, recorreu-se a lisonjas e recompensas. Mas fosse qual fosse o disfarce que o assédio czarista assumisse, os judeus da Rússia preservaram a sua integridade comunal persistentemente e com êxito” (SACHAR).

O sionismo também representa de algum modo o espírito de perseverança e unidade dos judeus, é claro, não no seu aspecto imperialista e capitalista, mas na essência dos propósitos.

Os kibutzim, assentamentos agrícolas, é também uma característica social moderna que tipifica a unidade judaica. Embora já não tenha a mesma importância que teve no passado, ainda assim é muito significativa do ponto de vista social para Israel.

A língua hebraica foi e é outro fator de grande relevância para a comunidade judaica. Por durante toda a dispersão serviu apenas como veículo de comunicação litúrgica, ressurgiu e hoje é língua de estado, falada pelos judeus, e estudada nos grandes centros universitários em todo o mundo.

Enfim, onde houver judeus haverá a manutenção das mais antigas tradições. Não obstante vivendo sob culturas paradoxal à sua, os judeus conseguiram, conseguem e hão de conseguir manter intrínseca sua singularidade e unidade cultural: Shabat, Chanucá, Pessach e tudo que os faz singulares há de permanecer mesmo ante a fúria dos mais atrozes inimigos.

A CARACTERÍSTICA TERRITORIAL
A Terra Prometida, onde mana leite e mel, para muitos é apenas um anseio social daqueles que não tem onde viver, dos que querem plantar mas lhe é negado esse direito. Para os judeus, a Terra Prometida é muito mais que isso: é um cumprimento da vontade soberana de Deus. Para Theodor Herzl, o idealizador do sionismo, a Terra Prometida poderia ser na Argentina, na Palestina ou em qualquer outro lugar onde os judeus pudessem exercer livremente sua soberania e vontade. Todavia ficou evidente sua predileção por esta última: “A Palestina é a nossa Pátria histórica inolvidável. O simples ouvir citar o seu nome é um chamado poderosamente comovedor para nosso povo” (HERZL).

Durante todo o tempo em que estiveram dispersos, sempre houve, se não pela maioria, pelos menos para uma boa parte de judeus, o desejo de retornarem à Terra Prometida. Afinal, foi lá que viveram os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó! Foi lá onde os seus antepassados viveram e construíram os pilares de sua cultura: “Levando-se em consideração a continuidade da história judaica devemos sempre ter em mente a constante influência do caráter único da nação no seu nascimento” (DINUR).

Discute-se hoje se os judeus têm ou não direito de viverem na Palestina. Para alguns eles estão lá por servirem de instrumentos para propósitos de países imperialistas, contudo, sem entrar no mérito da questão, o fato de terem sua origem lá, significa para eles muito mais do que ter uma Pátria: é, acima de tudo o cumprimento do desejo de Deus.

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BIBLIOGRAFIA:
1. GOLDBERG, J. David e RAYNER, D. John. Os Judeus e o Judaísmo. Rio de Janeiro, Xenon, 1989.
2. SOBEL, I. Henry. Os “Porquês” do Judaísmo. São Paulo, Congregação Israelita Paulista, 1983.
3.Compilação de: PINKUSS, Fritz. O Shabat. São Paulo, Fundação Fritz Pinkuss - Congregação Israelita Paulista, 1961.
4. Vida e Valores do Povo Judeu. DINUR, Ben-Zion. História Judaica: Singularidade e Continuidade. São Paulo, Perspectiva, 1972.
5. KAUFMANN, Yehezkel. A Religião Judaica. São Paulo, Perspectiva, 1989.
6. FRIEDMANN, Georges. Fim do Povo Judeu? São Paulo, Perspectiva, 1965.
7. HERZL, Theodor. O Estado Judeu. São Paulo, Consulado Geral de Israel em São Paulo, 1987.
8. Textos para História Moderna do Povo Judeu. SACHAR, Moley Howard. Aspectos da Vida Judaica na “pele”. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1975.

Nota:
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Fonte da imagem:
http://www.shabes.net

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