Prelúdio: “retratos” de uma poeta musicista



Prelúdio: “retratos” de uma poeta musicista

Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964) pode ser considerada uma das mais importantes vozes líricas do século XX, compondo cantigas, modinhas e baladas, entre outros gêneros híbridos que conjugam a poesia e a música. Além disso, fez referências à música inúmeras vezes, de modo que esta arte constitui um dos motivos condutores de sua obra poética.

Poeta de uma obra extensa e diversificada no tocante ao gênero textual, ao estilo e à temática, artista plástica e musicista na área do violino e do canto, deixou soar sonoridades variadas nos perfis múltiplos que nos legou, através de uma produção literária intensa, que se estende além de quatro décadas.

Entre esses perfis, ressaltamos a Cecília-menina, ficcionalizada em Olhinhos de Gato (1980), que se deixa encantar pelo mundo do faz-de-conta, pela sonoridade da natureza e pela poesia musical das ruas, especialmente, as cantigas de roda, os pregões dos vendedores ambulantes, as serenatas ao luar, entre outros gêneros. É a menina, que a três por quatro, escutava, recitados ou cantados, de seus educadores informais, textos poéticos e ou musicais, ligados, sobretudo, à tradição oral: orações poéticas, acalantos, modinhas, provérbios, trovas, parlendas, entre outras manifestações culturais que embalaram os seus dias de menina com uma energia misteriosa, irradiando para a vida e para a obra de Cecília mulher, mãe, educadora, jornalista, poeta e cronista, alcançando também, como herança, à vida dos seus leitores.

Paralelo às sonoridades populares, a menina de Olhinhos de gato também se encantava com a magia das sonoridades do piano, instrumento que lhe servia de passaporte a “profundas viagens”, ajudando-a a suportar os tempos difíceis de menina sozinha. Bastava ouvir alguém tocar algumas notas no piano, ou simplesmente ver o instrumento, a menina entrava em estado de devaneio:

A porta já está aberta, esperando-a. E perto do piano, duas moças altas e lindas, paradas num degrau de madeira preta, arregaçam seus vestidos brancos (...).Como ali era um reino encantado, a mocinha disse-lhe: “Feche os olhos!” E ela fechou. Passaram-lhe um vidrinho frio pelo pescoço. E um imenso perfume encheu o quarto, saiu pela varanda, pairou pela rua, partiu pelo mundo. E a menina ia levada dentro dele, como as nuvens. As casas, as pessoas, eram densas, pesadas. Ela, não. Ela voava por cima de tudo. Ia para onde o vento mandava. Nem se movia. Era o próprio ar que a tomava ao colo e a transportava (MEIRELES, 2003, p.115).
E Olhinhos de Gato sonha, com os olhos fechados, cheios de luz cor-de-rosa. Sonha. Há quanto tempo ela sonha com um piano grande como aquele, como o da casa de Orelhinha Peluda! Um piano que tenha aquele misterioso cheiro de madeira, verniz, metal e música... Um piano vibrante, desses que têm vida humana por dentro, que respiram, falam, cantam, choram, quando se calca uma simples tecla... E que depois conservam ainda uma espécie de suspiro esparso, uma espécie de arquejo de alegria ou de mágoa, que paira em ondas pela sala toda (MEIRELES, 2003, p. 179).

Essa atribuição simbólica, concedida ao piano, pode ser interpretada do ponto de vista da relação metonímica piano/música, no sentido de que a música propicia a leveza e o estado de sonho no homem, e em alusão à ampla extensão sonora do instrumento (88 teclas) e sua capacidade harmônica e expressiva: o piano “pode soar dez ou mais notas de uma vez só, e assim permitir a execução de praticamente qualquer tipo de peça da música ocidental”. Além disso, “pode ser tocado tanto de modo piano [suave] como forte, de acordo com o toque”, produzindo “sua vasta gama expressiva” (SADIE, 1994, p. 720). Logo, como o sonho e a fantasia, o piano praticamente não possui limites.

Em Olhinhos de gato, Cecília revela-se a menina que, diferente de “Edmundo, o céptico”, vive a magia da infância, como a garota do poema “Ar livre”, enfeitada de sol, mesmo a despeito de ter vivenciado, desde cedo, experiências dolorosas, especialmente a morte da mãe, superadas pelo cultivo da criança mágica, proporcionado pelo ambiente em que vivera ao lado da avó, Dona Jacinta Garcia Benevides. Neste espaço familiar, Cecília menina pôde enovelar-se com os fios de uma cultura plural: a cultura dos livros e o legado do povo, recebido, sobretudo, por intermédio da babá Pedrina e de outras pessoas agregadas à família, bem como das crianças vizinhas, as quais “lhe ensinaram as palavras e a música, e os movimentos” de muitas brincadeiras cantadas (MEIRELES, 2003, p. 145), experiências que a fizeram estocar tesouros para a maturidade.

Entre esses bens recebidos na infância, está o valor da leveza, conjugada na vida e na obra poética, presente, especialmente, em poemas como “Ar livre”, de Retrato natural (1949):

A menina translúcida passa.
Vê-se a luz do sol dentro dos seus dedos.
Brilha em sua narina o coral do dia.

Leva o arco-íris em cada fio do cabelo.
Em sua pele madrepérolas hesitantes
Pintam leves alvoradas de neblina.

Evaporam-lhes os vestidos, na paisagem.
É apenas o vento que vai levando seu corpo pelas alamedas.
A cada passo, uma flor, a cada movimento, um pássaro.

E quando pára na ponte, as águas todas vão correndo,
em verdes lágrimas para dentro dos seus olhos.
(MEIRELES, 2001, p. 600)

Notemos que todo o poema se constitui de palavras e sintagmas ligados à semântica da leveza: “translúcida”, “flor”, “pássaro”, “arco-íris”, “fio do cabelo”, “madrepérolas”, “leves alvoradas de neblina”, “É apenas o vento que vai levando seu corpo pelas alamedas”, etc.

A leveza do olhar poético ceciliano sobre a realidade articula-se, muitas vezes, ao tom lúdico que a escritora adota na construção de muitos de seus poemas, notadamente os de Ou isto ou aquilo (1964), livro infantil no qual os poemas são verdadeiros brinquedos sonoros, que deixam entrever a Cecília menina e a poeta-tecelã de um lirismo profundo. Isto porque, como poeta-pastora, ela soube arrebanhar as palavras, com sua flauta mágica, e apanhar a beleza das coisas simples, aspirações inerentes às pessoas que foram tocadas pela beleza da arte e da vida, como sugere a leitura de “Os carneirinhos”.

Nos poemas de Ou isto ou aquilo, notamos, muitas vezes, a escritora projetada no eu da enunciação, trazendo para o espaço do texto poético retalhos ficcionalizados de sua infância, como acontece especialmente com “Figurinhas II” e “O eco”, entre outros poemas. Ao mesmo tempo, percebemos, nesse livro, a escritora da poesia-brinquedo, que prioriza o jogo como procedimento fundamental à comunicação poética com as crianças e à iniciação dessas nos mistérios da poesia, valorizando também a musicalidade das palavras, dos metros e das formas simples, em consonância com os interesses e prazer do leitor infantil.

A Cecília de Ou isto ou aquilo, em consonância com a “menina da varanda,/ com tantas asas nos braços/ e borboletas nas mãos”, para quem “Os sonhos são flores altas/ de umas distantes montanhas/ que um dia se alcançarão” (2001, p. 1096), é a escritora que nutre um otimismo fascinante pela arte, pela infância e pela vida, trabalhando poeticamente “o desejo de existir”, como essência da poesia, conforme atribui Trevisan (1993, p. 47). Essa filosofia resvala para toda a sua produção em verso e em prosa, alcançando até mesmo a Cecília dos “retratos rasgados”, da dispersão e da efemeridade. É a poeta que, à semelhança do eu-lírico de “Tempo viajado”, apanha seus pedaços e vai cantando (2001, p. 616).

Como Orfeu, que nem a morte o impediu de continuar cantando “para os Bem-aventurados” que se voltam para os Campos Elíseos (GUIMARÃES, 1995, p. 239, 240), Cecília Meireles é a escritora que soube cantar a sua “pena/ com uma palavra tão doce, /de maneira tão serena,/ que até Deus pensou que fosse/ felicidade – e não pena” (MEIRELES, 2001, p. 348), como acontece ao eu-lírico do poema “A doce canção”, de Vaga música (1942).

É cantando como Orfeu e como sereia que Cecília Meireles compõe o seu segundo perfil. Neste, vemos a poeta que tem por destino cantar e encantar(se), cantar e morrer de cantar como a cigarra, numa espécie de morte que não se liga, necessariamente, à ideia de finitude, mas de transmutação, afinal, como disse Guimarães Rosa: “as pessoas não morrem ficam encantadas”.

Esse canto, no entanto, só apresenta sentido com o receptor, isto é, se for escutado. Caso contrário, a poeta sente-se como o eu-lírico de “Realejo”, do livro Viagem (1939), quando este diz: “Minha vida bela,/minha vida bela,/nada mais adianta/se não há janela/para a voz que canta...” (MEIRELES, 2001, p. 272), versos que nos fazem refletir sobre o espaço da arte, especialmente da arte poética, na nossa sociedade, notadamente, no período em que viveu Cecília, envolto de guerras e de ditadura.

Essa tonalidade menor de “Realejo” configura-se, no entanto, como uma nota de passagem para a fase solar da escritora, uma vez que, em outro momento de sua produção poética, ela expressa claramente, através do eu-lírico, que cantar é preciso, pois “Uma voz seria raiz perfurando cegueiras” (MEIRELES, 2001, p. 419).

Cecília Meireles, sendo poeta e musicista, é também a nossa Penélope, a que “bordava cantando”, num intricado de fios verbais e musicais. De sua tapeçaria poética, portanto, nascem não apenas poemas, mas também canções, como acontece em “A dona contrariada”:

Ela estava ali sentada,
do lado que faz sol-posto,
com a cabeça curvada,
um véu de sombra no rosto.
Suas mãos indo e voltando
por sobre a tapeçaria,
paravam de vez em quando:
e, então, se acabava o dia.

Seu vestido era de linho,
cor da lua nas areias.
Em seus lábios cor de vinho
dormia a voz das sereias.
Ela bordava cantando.
E a sua canção dizia
a história que ia ficando
por sobre a tapeçaria.

Veio um pássaro da altura
e a sombra passou no pano,
como no mar da ventura
a vela do desengano.
Ela parou de cantar,
desfez a sombra com a mão,
depois, seguiu a bordar
na tela a sua canção.

Vieram os ventos do oceano,
roubadores de navios,
e desmancharam-lhe o pano,
remexendo-lhe nos fios.
Ela pôs as mãos por cima,
tudo compôs outra vez:
a canção pousou na rima,
e o bordado assim se fez.

Vieram as nuvens turvá-la.
Recomeçou de cantar.
No timbre da sua fala
havia um rumor de mar.
O sol dormia no fundo:
fez-se a voz, ele acordou.
Subiu para o alto do mundo.
E ela, cantando, bordou
(MEIRELES, 2001, p. 384).

“A Dona contrariada” constitui, a nosso ver, um dos mais belos “retratos” de Cecília Meireles, tanto do ponto de vista do lirismo e das imagens evocadas, como da perspectiva da inter-relação poesia e música na composição poética. Nele, a sua Penélope, à semelhança da personagem de Odisséia, de Homero, faz a apologia à resistência, ao enfrentamento das situações adversas com otimismo, serenidade e perspicácia, situação que encontra respaldo na própria história de vida de Cecília, na sua atuação profissional e na sua produção estética. Toda a caminhada de Cecília Meireles esteve pautada sob o signo da resistência, do crédito ao poder da arte, da educação e das ações humanísticas.

Como poeta que borda cantando, Cecília aproximou-se também dos trovadores, numa reiteração de formas, gêneros e temas da lírica medieval. Assim, em sintonia com a arte dos trovadores, especialmente, dos portugueses, Cecília Meireles compôs cantiga de amor, como Amor em Leonoreta (1951), cantiga de amigo, como “A amiga deixada”, do livro Vaga música (1942), e “Cantar de vero amor” do livro Dispersos (1918-1964), e canção de gesta como a Crônica trovada da cidade de Sam Sebastiam, (1965), entre outras composições.

A presença da lírica medieval portuguesa na obra de Cecília reflete um pouco seu conhecimento da poesia medieval e suas relações com os portugueses, tanto no âmbito da vida pessoal, quanto no campo da produção literária: revela também seus vínculos genealógicos e afetivos com os lusitanos, uma vez que, além de descender de portugueses açorianos, como lembra Oliveira (2007, p. 187, “casou-se com o artista plástico português Fernando Correia Dias, ilustrador de vários periódicos e livros em Portugal e no Brasil”, e denota também a sua afinidade com a cultura literária portuguesa que fruiu desde a infância e as suas ligações com alguns tecelões dessa cultura, como Fernando Pessoa, João de Castro, Osório Carlos Queiroz, Fernanda de Castro, José Osório, entre outros “intelectuais portugueses que foram seus contemporâneos” e com quem Cecília Meireles se correspondeu por quase 30 anos. Alguns desses nomes foram motivos de referências em sua obra poética, seja em dedicatória de livros, como acontece com Viagem, no qual escreve: “A meus amigos portugueses”, seja em dedicatória de poemas diversos, como é o caso dos 19 poemas de Vaga música, seja na evocação à lírica medieval portuguesa (OLIVEIRA, 2007, p. 187-189).

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Fonte:
JAQUELANIA ARISTIDES PEREIRA: “DE VERSOS (E) ACORDES: O (EN)CANTO DO VERBO EM CECÍLIA MEIRELES”. (Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Literatura. Orientador: Prof. Dr. José Helder Pinheiro Alves). João Pessoa – PB, 2010.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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