Sobre a gênese da crença
O capítulo IV do Tratado de Metafísica é um texto
O objetivo aqui não é percorrer todos os passos da resposta de Voltaire a esse problema, percurso que não deixa de ser importante para compreender sua atitude em relação à tradição cética, mas tão somente sublinhar os aspectos que delineiam a concepção voltairiana de crença.
Para Voltaire, a existência do mundo exterior também não pode ser demonstrada, como será o caso para Diderot mais tarde, no entanto, isso não significa que devamos suspender nosso juízo. Existem fortes indícios para crê-la verdadeira. A familiaridade e a força com que os corpos se apresentam e a garantia fornecida pelo tato dispensam demonstrações sobre sua existência. Sobre esse assunto um trecho do mesmo capítulo é bastante eloqüente. Confrontado com a questão de saber o que ele deveria responder a Deus se este último se dignasse a lhe perguntar qual das duas proposições seguintes é falsa, “há corpos exteriores” e “entre um círculo e sua tangente uma infinidade de linhas curvas podem passar”, o philosophe diria:
“Adivinharia que é a última, pois sabendo que ignorei durante muito tempo esta proposição, e que tive necessidade de uma atenção concentrada para compreender sua demonstração; que acreditei aí encontrar dificuldades; que, enfim, as verdades geométricas só têm realidade em meu espírito, poderia suspeitar que este se enganou”.
A proposição sobre os corpos não tem demonstração. A segunda tem. Entretanto sou levado a acreditar na veracidade da primeira e na falsidade da segunda. Por quê? Porque a crença não depende exclusivamente da demonstração, posso crer e normalmente creio sem o auxílio de demonstrações. Para Voltaire, a crença não é do domínio exclusivo da demonstração, a crença não necessita exclusivamente da certeza; a probabilidade também é responsável pelo estabelecimento de crenças, o que podemos constatar na prática jurídica e na história.
« Les vérités historiques ne sont que dês probabilités. Si vous avez combattu à la bataille de Philippes, c’est pour vous une vérité que vous connaissez par intuition, par sentiment. Mais pour nous qui habitons tout auprès du désert de Syrie, ce n’est qu’une chose très probable, que nous connaissons par ouï-dire. Combien faut-il de ouï-dire pour former une persuasion égale à celle d’un homme qui, ayant vu la chose, peut se vanter d’avoi une espèce de certitude?
Celui qui a entendu dire la chose à douze mille témoins oculaires n’a que douze mille probabilités, égales à une forte probabilité, laquelle n’est pas égale à la certitude ».
O verbete « Verdade » do Dicionário Filosófico retoma o problema da demonstração e da probabilidade como já havia surgido no verbete “Certo, Certeza”. Infelizmente, Pilatos ao perguntar a Jesus “O que é a verdade?” não teve paciência para esperar pela resposta. Perdemos assim a oportunidade da verdade nos ser revelada. Já que ela não nos foi revelada, o que nos resta é a demonstração nas matemáticas e a probabilidade jurídica e histórica. Visto que o julgamento dos acusados e o trabalho do historiador pertencem ao reino da probabilidade, qual é o resultado prático da falta de certeza?
Ora, no que se refere à história, a ausência de certeza só faz aumentar a acribia do historiador, agora encarregado de multiplicar os indícios para que a probabilidade também aumente. No caso do julgamento dos acusados, a probabilidade, como já dissemos, interdita a pena capital, pois perante a impossibilidade de estabelecer a certeza jurídica não podemos concordar em trocar a probabilidade da culpa, por maior que seja, pela certeza da morte.
« De ce concours de probabilités, il se formera une opinion très forte qui pourra servir à excuser votre jugement. Mais comme vous n’aurez jamais de certitude entière, vous ne pourrez vous flatter de connaître parfaitement la vérité. Par conséquent vous devez toujours pencher vers la clémence plus que vers la rigueur ».
A crença, então, pode se estabelecer pela demonstração (no caso das verdades matemáticas) e por probabilidades (como no caso da história e da prática jurídica), afora aquela do sentimento de minha própria existência que, apesar de também se fundar no princípio de contradição, não comporta demonstração, a “verdade que conheceis por intuição, por sentimento”. O verbete “Fé” do Dicionário filosófico pode nos auxiliar a compreender a gênese da crença. Lá Voltaire explica que há apenas três modos pelos quais a crença se estabelece.
“Não podemos crer senão naquilo que parece verdadeiro; nada parece verdadeiro a não ser por três maneiras, ou pela intuição, o sentimento, eu existo, eu vejo o sol; ou por probabilidades acumuladas que têm lugar de certeza, há uma cidade chamada Constantinopla, ou por via de demonstração; os triângulos que têm mesma base e mesma altura são iguais”.
A demonstração é apenas um dos modos pelos quais a crença se estabelece. Há coisas não passíveis de demonstração, a existência de Constantinopla por exemplo, mas dignas de crença. O conhecimento intuitivo de minha existência também não precisa de demonstração; e, como vimos, este conhecimento é um conhecimento certo. Exigir que todos nossos conhecimentos tenham caráter demonstrativo é algo desarrazoado. Ao analisar a crença Voltaire apresenta os elementos que podem engendrá-la: demonstração, mas também intuição e sentimento, colocados na mesma classe por assim dizer, e as probabilidades acumuladas, que têm aspecto de certeza. Estas são as vias pelas quais as crenças se estabelecem. É preciso, entretanto, não confundir crença com fé. Voltaire deseja distingui-las nitidamente. De acordo com ele, a fé não é uma crença precisamente porque não se estabelece a partir de nenhum dos três modos: intuição/sentimento, probabilidades acumuladas e demonstração. A fé é, na verdade, “incredulidade subjugada”.
Para Voltaire, então, a fé não é identificável a uma crença, simplesmente porque o autor faz da crença algo razoável, vinculado ao verossímil, enquanto que o artigo de fé, por definição, não tem nenhuma verossimilhança. “O que é a fé? É crer naquilo que parece evidente?”. A resposta é não. “A fé consiste em crer, não naquilo que parece verdadeiro, mais naquilo que parece falso a nosso entendimento”. A fé não é uma crença, ela é “aniquilação da razão, um silêncio de adoração perante as coisas que parecem incompreensíveis”. Ela é “o respeito pelas coisas incompreensíveis”, em uma palavra, a “fé é obediência”. Aquele que a tem deve “cativar seu entendimento sob o jugo da fé”. A fé não necessita do auxílio da razão. Mais que isso, ela é contrária à razão. Desse modo, de acordo com a perspectiva de Voltaire, não há sentido para os preambula fidei. Parece que temos aí uma concepção fideísta. Não encontramos justamente em Montaigne e Bayle, autores conhecidos por Voltaire, a articulação fideísta entre razão e fé? Desprezando a tradição cética, principalmente aquela legada por Montaigne e Bayle, mas também por Pascal e
O verbete “Crer” do Dicionário já sugerira a distinção entre crença e fé. O religioso, um muçulmano no caso, confunde crença com fé. Ele toma algo absurdo, sem a menor verossimilhança, como algo em que ele crê. Todavia, o que acontece é que ele apenas tem fé, ele repete passivamente algo absurdo. Como diz Voltaire:
« Le fond du discours de Moustapha est qu’il croit ce qu’il ne croit pas. Il s’est accoutumé à prononcer, comme son molla, certaines paroles qu’il prend pour des idées ».
Toda fé é submissão à autoridade, toda crença é verossímil. O que constatamos então é a independência da crença em relação à demonstração e à certeza. Estas duas têm apenas um pequeno lugar na vastidão dos nossos conhecimentos, a maioria deles fundados sobre a probabilidade e a verossimilhança. Afora a crença estabelecida por demonstração e aquela da existência de mim mesmo, que são poucas comparadas às restantes, há sempre uma grande dose de dúvida, por não se basear numa demonstração, certas crenças nunca são inabaláveis, sempre abertas a novas dúvidas, ou como diz o autor: “Croire, c’est très souvent douter”.
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Fonte:
RODRIGO BRANDÃO: “A ordem do mundo e o homem: estudos sobre metafísica e moral em Voltaire”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras, e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof.ª Dra. Maria das Graças de Souza, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Filosofia). São Paulo, 2008.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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