O tema violência e saúde começa a ser evidenciado nos anos de 1960
e 1970, quando os pediatras, nos EUA e
no Canadá, começam a estudar e diagnosticar a chamada síndrome do bebê
espancado. Após uma década, vários países reconhecem que os maus-tratos à
criança são um grave problema de saúde pública (MINAYO e SOUZA, 1999).
No Brasil, na década de 1980, a contribuição científica sobre o tema
foi enfatizada. Várias pesquisas denunciam o impacto da violência na saúde da população brasileira
(MATA, 1982; PINHEIRO, 1983; BARROS, 1984;
ZWARCWALD, 1986; ZALUAR, 1986).
A violência é um fenômeno social que atinge populações, no espaço
público e privado, tanto global quanto
localmente (ABRAMOVAY, CASTRO, PINHEIRO, et al. 2002). Atualmente, a violência
está presente no cotidiano das grandes cidades e representa uma ameaça à população. Entretanto,
alguns indivíduos e grupos sociais e
étnicos estão mais vulneráveis4 que outros. Minayo, Assis, Souza,
et al. consideram que a violência é um fenômeno de conceituação polissêmica, controversa e complexa e que “não há um fato
denominado violência, e, sim violências, como expressões de manifestações da
exacerbação de conflitos sociais cujas
especificidades precisam ser conhecidas” (1999, p. 14). As autoras enfatizam que
a violência tem profundos enraizamentos nas estruturas sociais, políticas, econômicas
e nas consciências individuais. Adota-se o conceito dessas autoras por considerar que a violência está relacionada às
desigualdades sociais, portanto, decorrente do modo como estão estabelecidas as
estruturas sociais no Brasil.
A violência está incluída na Classificação Internacional de
Doenças (CID) sob denominação de Causas Externas. Nesse
conceito, as causas da mortalidade são os
suicídios, homicídios e acidentes fatais; a morbidade engloba fraturas, queimaduras,
lesões, intoxicações, envenenamentos, agressões interpessoais e coletivas, e
acidentes (SOUZA e MINAYO, 1999).
Deslandes (1999), pesquisadora do Centro Latino-Americano de
Estudos sobre a Violência e Saúde -
CLAVES, da Escola Nacional de Saúde Pública, amplia a denominação de causas externas para outros
eventos, e considera difícil discernir a
especificidade que envolve cada um dos fenômenos causadores da violência. A pesquisadora
pergunta: “externas porque sempre foram um
problema social e não da área da saúde?” (DESLANDES, 1999, p. 84). Seguindo
a idéia dessa pesquisadora, é possível
afirmar que o profissional de saúde está pouco atento para identificar as
várias faces dos atendimentos incluídos na classificação de causas externas,
pois é comum, em atendimentos realizados na emergência, desconsiderar-se a
violência como causa e quando identificada é considerada um evento normal para
o tipo de pessoa que está sendo atendida ou se faz o registro incompleto.
No Brasil, as causas externas constituem a principal causa de
morte nos grupos etários de 05
a 45 anos (MÉDICI, 1992; MINAYO e SOUZA, 1993; CHESNAIS, 1999).
Minayo e Souza (1999) afirmam que a incidência das mortes violentas
recai sobre a população masculina de adolescentes e adultos jovens oriundos das
classes sociais menos favorecidas, de cor negra ou descendentes desta etnia,
com pouca ou nenhuma qualificação
profissional e com baixa escolaridade. Sant’Anna (2000), enfermeira e pesquisadora do Núcleo de Estudos
Interdisciplinares do Gênero, Saúde e
Trabalho, da Escola de Enfermagem da UFRGS, em sua dissertação de mestrado retrata e corrobora a realidade
descrita, a partir de um estudo sócio-histórico
das mortes violentas dos adolescentes na cidade de Porto Alegre, em 1997.
Pesquisa realizada sobre a mortalidade por homicídios em Porto
Alegre, no período de 1998 a
2000, vai ao encontro desses dados (LOPES; SANT’ANNA e AERTS, 2002)
Gomes (1997) refere que o debate contemporâneo sobre a violência
tem uma atitude reducionista quando só a relaciona à criminalidade, à pobreza e
ao plano individual. Concorda-se com o
pesquisador, pois o tema não pode ser discutido desconsiderando-se as questões sociais,
culturais e, principalmente, a grande população
de excluídos, alvo de extermínios, e, ao mesmo tempo, considerada responsável pela geração da violência no
país.
Referindo-se a essa mesma questão, Médici ressalta que “as maiores
vítimas da violência são as classes de baixa renda que cotidianamente são
expostas à própria marginalidade de seu
meio, à polícia ou aos grupos de extermínio” (1992, p. 44). Peralva (2000) considera limitada a
explicação da relação da violência entre desigualdades de renda e pobreza,
entretanto, reconhece a vulnerabilidade dos jovens das periferias às mortes violentas.
Sant’Anna ressalta que os serviços de emergência são a porta de
entrada dos pacientes vítimas de violência e que esses serviços “estão voltados
para a queixa do momento, e a crescente demanda dificulta a oferta de um
atendimento articulado e conseqüente”
(2000, p. 40).
Em Porto Alegre, o Hospital de Pronto Socorro presta serviços de
emergência e atende usuários vítimas de
trauma de toda a região metropolitana e do interior do Estado do Rio Grande do
Sul. No ano de 20015, foram
atendidas 1980 vítimas de agressão por arma branca e arma de fogo, das quais
838 permaneceram hospitalizadas,
perfazendo o percentual de 42,32% dos usuários atendidos nesse hospital. Esses
dados revelam certa incongruência, pois há, também, o registro de 2500
atendimentos por “ferimento por arma de fogo e arma branca”, dentre os quais 116 pessoas permaneceram hospitalizadas. Há,
também, outra classificação:
agressões outras, num total de 9654 atendimentos, com 341
internações. Frente a essa diversidade
de classificações pode-se questionar qual o critério adotado para diferenciar
agressão por arma branca e arma de fogo, de ferimento por arma branca e arma de fogo, e se é comum indivíduos
ferirem-se com arma branca ou de fogo fora de um contexto de violência. Os
dados, aparentemente, revelam que é significativo
o contingente de usuários que procuram esse serviço com uma queixa definida de violência, mesmo que, em alguns
momentos, o fato não seja caracterizado como tal.
Deslandes (2002) diz que, em um serviço de emergência, os
profissionais de saúde convivem
diariamente com a violência na demanda dos atendimentos e ressalta a
importância desses serviços na avaliação da repercussão da violência na saúde:
Defendemos que o serviço
de emergência constitui uma organização privilegiada para a análise do
significado e da dimensão da violência nos
serviços de saúde e na ação de seus agentes: 1) por ser, dentre os serviços,
aquele que constitui o primeiro contato [e talvez o único] da vitima de
violência com um serviço de saúde; 2) por lidar com uma demanda de atendimentos
por violência muito expressiva e com a
parcela que representa maior gravidade, constituindo um campo de intervenção técnica que exige readequação constante dos conhecimentos e recursos
disponíveis; 3) por lidar de forma rotineira e intensa com as vítimas de violência, o que
delimita um campo bem demarcado de interações entre os sujeitos [profissionais,
familiares e vítimas de violência]; 4) por apresentar um espaço intenso e dramático de conflito, muitas vezes de
violência, entre profissionais de saúde e população usuária (DESLANDES, 2002, p.
24).
Concorda-se com a autora porque é nesse contexto em que ocorrem as
relações de trabalho dos profissionais de saúde no atendimento e cuidado às
vítimas de violência, que estão
inseridos os objetivos desta pesquisa.
---
Fonte:
SANDRA MARIA CEZAR LEAL: “VIOLÊNCIA COMO OBJETO DA ASSISTÊNCIA EM
UM HOSPITAL DE TRAUMA: o “olhar” da enfermagem”. (Dissertação apresentada ao
Curso de Mestrado em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial à obtenção do título de
MESTRE em ENFERMAGEM. Orientadora: Profª Drª Marta Júlia Marques
Lopes). Porto Alegre, 2003.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor
estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no
referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da
tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Repositório Digital da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Direitos autorais:
Segundo Portaria n 5068, de 13/10/2010, da UFRS: “Os trabalhos depositados no Lume estão
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Creative Commons.”
Fonte da imagem:
noworkplaceviolence.com
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