IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE: CONFLUÊNCIAS E DISSONÂNCIAS

Immanuel Kant e Paulo Freire: confluências e dissonâncias

Em suas obras Paulo Freire não citou nenhum livro de Kant e também não lhe citou como teórico que o tenha influenciado. Freire anotou a compra de apenas uma obra de Kant, em 1942, Filosofia da história, mas ele lia em diversas bibliotecas e deixou de anotar os livros adquiridos a partir de 1955, de tal forma que não há como saber se ele leu algo mais de Kant, isso segundo Ana Maria Freire.

Freire na obra Medo e ousadia (1987, p. 62s), fala de uma necessária iluminação sobre a realidade que deve ser feita em conjunto por professor e aluno para desocultar a obscuridade da realidade. Usa, portanto, a grande metáfora do iluminismo, que inclusive deu nome ao movimento filosófico da época de Kant. Mas na afirmação de Freire fica claro que o que promove a iluminação, e também o que promove a autonomia, não é a razão com seus atributos transcendentais a priori, como em Kant, e sim a ação e reflexão dialética sobre o mundo.

A relação que há em Freire entre autonomia e libertação, já ocorria no iluminismo, no entanto, o educador brasileiro propõe a libertação em relação às opressões da realidade social injusta causada pelo sistema capitalista, já os iluministas propunham a libertação em relação às opressões causadas pela tradição, pela religião e pelo Antigo Regime. Tanto para os iluministas quanto para Freire, cabe à educação formar um sujeito crítico, que enquanto tal seja capaz de se libertar, se emancipar da condição de menoridade. Nesse sentido Paulo Freire é herdeiro do iluminismo.  No entanto, a concepção de homem de Freire, bem como a de Kant, toma distância da maior parte dos iluministas ao pensar um homem cuja autonomia não se dá apenas pelo progresso da razão teórica. Ainda, a herança iluminista de Freire se dá também pelos pressupostos filosóficos formulados por Kant e que estão presentes em suas obras, como a concepção de sujeito, de racionalidade e de dignidade humana, o que faz do educador brasileiro um herdeiro indireto de Kant. Freire diz se enquadrar em um ponto de vista pós-modernamente progressista (cf. FREIRE, 1999, p. 81), mas possui pressupostos filosóficos modernos, como os acima citados. Ainda, o intuito de formar sujeitos autônomos, característico de Kant, se mantém em Freire, mas reelaborado de acordo com o contexto e especificidade de seu pensamento.

Hoje sabemos que não podemos pensar uma sociedade e indivíduos que se fazem autonomamente a partir de uma racionalidade pura e, nem pensar uma autonomia absoluta que é garantida pela racionalidade. Freire sabe disso, mas também reconhece a importância da racionalidade ao se manifestar tantas vezes contra o irracionalismo. Também afirma que a educação deve ser usada com acento cada vez maior de racionalidade.(cf. FREIRE, 1977, p. 90). O educador brasileiro usa a definição que Popper dá à racionalidade ou racionalismo, resgata o sentido socrático, segundo o qual racionalidade é a consciência das próprias limitações, a modéstia intelectual dos que sabem quantas vezes erram e o quanto dependem dos outros até para esse conhecimento.(cf. idem). Ou seja, não é uma racionalidade auto-suficiente, é uma racionalidade que reconhece o “não saber socrático”, que se coloca em atitude de quem não sabe tudo e muito tem ainda a aprender. A proposta de educação para a autonomia de Freire não faz da racionalidade seu principal meio de realização, pois sabe de seus limites e de sua dupla face que possibilita tanto a libertação quanto a opressão. Para ele, a razão por si só não possibilita a autonomia, no entanto, ele reconhece a necessidade da racionalidade. A partir da análise da proposta freireana, defendemos que ela pressupõe uma razão no sentido dado por Kant. Os iluministas reduziam a razão ao seu sentido instrumental; a autonomia dependia do aumento de conhecimento, da razão científica. Kant mostra que a racionalidade humana não se reduz a isso, ela é “mais ampla”, e a autonomia não pode ser alcançada apenas pela razão instrumental. Freire é herdeiro dessa concepção de razão formulada por Kant.

Em Kant a educação que possibilita a autonomia é a educação racional do homem. A ação racional é o bem constitutivo, só ela tem dignidade. O homem não tem instinto e precisa se guiar pelos projetos de sua própria razão, a ação racionalmente dirigida permite ao homem ser construtor de si. A educação deve acostumar o homem a obedecer aos preceitos da razão para que ele possa ser autônomo. Rousseau já defendia que a razão deveria substituir a autoridade para que a criança aprendesse a raciocinar e assim pudesse desenvolver opinião própria. Kant nos mostrou a necessidade de uma educação que forme para uma vida racional, de uma educação que possibilite aos sujeitos a construção de si, nisso ele possui importância atual. No entanto, esse empreendimento é possível hoje a partir de uma nova concepção de razão, que não a transcendental de Kant, e de uma nova concepção de sujeito. Nesse sentido, Freire apresenta avanços fundamentais por considerar o caráter essencialmente social da constituição do sujeito e por pressupor uma razão que não é transcendental nos moldes kantianos, é encarnada, histórica.

Kant possui um pensamento genuinamente moderno que como tal, está incluso no que é chamado de filosofia do sujeito, ou seja, seu princípio é a subjetividade. Vincenti (1994, p. 7), faz uma explicação etimológica da palavra sujeito. A etimologia latina sub-jectum significa estar submetido, como por exemplo, um súdito estar submetido a um monarca. Mas o significado que esse termo possui na filosofia moderna “adota o contrapé dessa significação”(idem) e em vez de uma subordinação, passividade, acentua o seu elemento ativo, a atividade de sustentação. “O sujeito torna-se, então, aquele que se sustenta ele mesmo na existência. Existir como sujeito significa, assim, que não preciso referir-me a um outro ser, a uma outra existência para definir-me, para compreender-me, para justificar o que eu sou”.(ibid, p. 8). Só é verdadeiramente eu mesmo o que em mim depender de mim, só sou autônomo se me guiar por minha razão, nesse sentido autonomia está vinculada com autenticidade. Vincenti (ibid, p. 10) propõe que é com o sujeito kantiano que a primeira real filosofia do sujeito se impõe, há o surgimento de uma responsabilidade plena e total do sujeito, não apenas em relação ao conhecimento, mas também em relação ao mundo. O sujeito moral passa a ser fundamento também do saber. “Tudo o que o sujeito é, tudo o que o sujeito constitui e tudo o que ele faz depende do próprio sujeito”.(ibid). Nesse sentido pode-se dizer que a concepção de sujeito dos iluministas e também de Kant, é monológica, na medida em que não faz referência a uma segunda pessoa.

Defendemos que o pensamento freireano possui como pressuposto a concepção de sujeito formulado por Kant, na medida em que ambos pensam o homem como sujeito que pela sua liberdade constrói o mundo e a si. Nos textos de Freire perpassa a idéia de que a educação deve tornar o educando sujeito, assim ele será autônomo. Mas, a diferença em relação a Kant é que ele aborda o sujeito considerando seu caráter essencialmente dialógico, a intersubjetividade possui papel estruturante. Pela problematização e decodificação crítica do mundo, o homem se descobre como instaurador do mundo de sua experiência. Segundo Fiori (1983, p. 9), a consciência do mundo e de si crescem juntas e em razão direta, por isso ninguém se conscientiza separadamente dos demais. “As consciências não são comunicantes porque se comunicam: mas comunicam-se porque comunicantes. A intersubjetivação das consciências é tão originária quanto a mundaneidade ou sua subjetividade”.(idem, p.10). Na intersubjetivação as consciências também se põem como consciência de si e consciência do outro. O monólogo é a negação do homem, é o fechamento da consciência, uma vez que a consciência é aberta.(cf. ibid). O diálogo é o movimento constitutivo da consciência, que é consciência do mundo que se busca a si mesma num mundo que é comum. Como o mundo é mundo das consciências intersubjetivas, a sua elaboração é colaboração. “Em diálogo circular intersubjetivando-se mais e mais, vai assumindo, criticamente, o dinamismo de sua subjetividade criadora”.(ibid, p. 12). Freire (1983, p. 43), diz que o objetivo da pedagogia do oprimido é resgatar a intersubjetividade. Isso porque a intersubjetividade é constitutiva, o sujeito não existe aprioristicamente, ele forma-se com o outro. Por isso Freire ilumina o conceito de autonomia especialmente quanto aos aspectos sociais nele envolvidos.

Tanto para Freire quanto para Kant o homem é construtor de si. A diferença é que para Kant, o homem retira de si, da própria razão, os meios para se fazer homem, já em Freire é a ação dialógica feita no mundo com os outros que possibilita a própria construção. Há em Kant intersubjetividade na medida em que o sujeito pensa o universal, o imperativo categórico busca a intersubjetividade e, ao agir por dever já estou com os outros. Assim, a partir do pensamento de Kant, o homem autônomo ao obedecer aos preceitos da razão universal estaria sendo espontaneamente intersubjetivo. Mas nesse caso, a intersubjetividade não é constitutiva do sujeito, ela é atingida pelo sujeito enquanto participante da universalidade. Em Freire fazer a si implica em fazer-se intersubjetivamente. “O sujeito, em todas as suas dimensões, constrói-se na relação coletiva, sem nada subtrair da dimensão individual. Ao contrário, o coletivo realiza o individual assim como o individual realiza o coletivo”.(BECKER, 1998, p. 53). A proposta freireana enfatiza a constituição social do sujeito, com isso há uma superação (no sentido clássico da Aufhebung hegeliana) em relação à idéia de sujeito de Kant, e diferentemente de certas correntes pós-modernas, preserva a idéia de sujeito, havendo a possibilidade da autonomia.

Inspirados em Freire e Kant, podemos pensar a educação para a autonomia como processo de formação em que o homem faz a si próprio de acordo com projetos que estabelece racional e livremente para si. O homem só pode ser livre, autônomo, se formado, espontaneamente não o será. A educação entendida como processo de formação é indispensável para um homem conquistar sua autonomia. Podemos dizer, que a possibilidade de formação do sujeito, constitui o núcleo do pensamento educacional de ambos. Isso afirma a importância de que todos tenham acesso à educação humanizante e de qualidade.

Kant discriminou três faculdades na mente humana: conhecer (entendimento), querer (razão que orienta a vontade) e julgar (julga o verdadeiro, o útil e o belo). Por isso escreveu as três críticas: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática e Crítica da faculdade do juízo.

Subjacente a cada uma das três instâncias encontra-se um princípio a priori, assim o entendimento não teria condições de elaborar conceitos se não partisse do princípio a priori da causalidade, o juízo não teria condições de julgar se não partissem da finalidade e a razão não poderia exprimir a sua vontade se não aceitasse a idéia de “último fim”.(cf. FREITAG, 1991 p. 46-47). Para Piaget essas faculdades não são inatas, elas resultam de um processo de construção e reconstrução permanente, decorrente da ação e interação do indivíduo com o mundo.(cf. idem, p. 50). Em Piaget, a autonomia não é pressuposto da razão prática que tem como princípio o imperativo categórico, mas a autonomia é o resultado de um processo de desenvolvimento. Quanto a esse aspecto Freire se diferencia de Kant e se aproxima de Piaget, pois não pensa nenhuma faculdade a priori, todas são constituídas nos processos históricos de interação, processos que são intersubjetivos e elaborados em colaboração pelos homens. Por isso Freire enfatiza os aspectos históricos, sociais, que possibilitam ou limitam a autonomia.

Ciente da distância que há entre teoria e prática no domínio pedagógico, na obra Sobre a Pedagogia, Kant preocupa-se menos em estabelecer um sistema de educação a priori, mas  em unir as lições da experiência com os projetos da razão, pensamento e experiência se enlaçam, se esclarecem mutuamente. Em Kant, uma educação que vise formar para a autonomia deve envolver a experiência concreta aliada aos projetos da razão. Por isso não pensa uma escola utópica, mas racional (cf. PHILONENKO, 1966, p. 53), embora há em seu pensamento educacional um aspecto utópico, a orientação em vista ao ideal de humanidade65. A metafísica intervém na pedagogia, mas não para propor caminhos abstratos e sim para reconduzir ao concreto. Mas, a mediação entre teoria e prática feita pelo juízo, nesse caso pelo juízo reflexivo do trabalho, permanece problemática, pois fica apenas como exigência do dever, havendo primazia do dever. Kant lança bases para a compreensão do projeto moderno como projeto educativo do esclarecimento, mas ele mantém o dualismo sujeito-objeto, natureza e liberdade, ser e dever ser, determinismo metódico e indeterminismo prático, separando as esferas da cultura nos domínios da ciência, da moral e da arte.(cf. MARTINI, 1996, p. 20).

Já em Freire não há essa separação. A educação, o processo de aprendizagem e a própria relação do homem com o mundo é visto como práxis. Na visão freireana a educação e as relações humanas devem ser dialógicas, o que permite a superação das contradições. O diálogo é constitutivo do sujeito que se faz intersubjetivamente. A educação que busca promover a autonomia do sujeito deve ser dialógica, para que o próprio sujeito refaça o mundo e se faça pela ação e reflexão.

Ambos pensam uma educação ativa, repudiam o verbalismo, mas não se igualam a Rousseau que pensou uma educação totalmente fundada na experiência e que negava qualquer educação formal. Kant pensa uma educação baseada na experiência, mas a concebe em referência ao ideal de humanidade, segundo o qual a educação é experiência de toda a humanidade. Já Freire enfatiza a educação que leva em conta a experiência concreta do aluno para que ele possa aprender o mundo, fazer-se consciente de sua realidade e transformá-la. A passividade é uma forma de heteronomia, a autonomia supõe a atividade humana no sentido de ampliar a compreensão do mundo.

Também aparece como ponto em comum entre ambos, o repúdio à memorização mecânica, ela nega a condição humana de ser construtor de si, nega o pensar por si mesmo, essencial para a autonomia, nega a curiosidade humana que sempre está aberta a aprender. Tal educação “formará” seres humanos dependentes e acríticos, incapazes de assumir seu papel de sujeitos na história. Não se trata de banir a memorização, pois ela é necessária, se trata de atribuir-lhe uma importância auxiliar, já que o objetivo da educação que pensamos, é formar homens que sejam autônomos e não autômatos.

Tanto em Freire quanto em Kant, o conhecimento técnico deve ser ensinado com vistas à promoção do ser humano, com vistas à promoção da autonomia. O conhecimento é importante para que se tenham meios para realizar os projetos estabelecidos para si, portanto, o conhecimento pode proporcionar autonomia. Mas a educação não deve ser apenas treinamento, pois assim sendo, o homem dificilmente terá disposição para se dar os próprios projetos. É preciso educar para a liberdade para que o ser humano possa propor o que há de propor livremente. É preciso educar para que o ser humano seja capaz de exercer racionalmente sua liberdade. Por isso educação é formação e muito mais que treinamento envolve ética, estética, política, deve envolver o ser humano em sua totalidade.

Kant (2005c, p. 63-64) em Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento[Aufklãrung]?, afirma que o homem é culpado pela própria menoridade se a causa dela não for a falta de entendimento e sim, a falta de coragem, a preguiça, a covardia. Ele usa a expressão sapere aude, ouse saber, tenha a coragem de saber, a qual já havia sido usada por Horácio. Há nesse texto uma recusa ao conformismo, um clamor para que o homem abandone sua cômoda situação de menor, tenha coragem de se responsabilizar por sua própria história, o que é condição para o esclarecimento e para a maioridade. A proposta é que o homem saia do estado de menoridade culpada. A menoridade é um estado de heteronomia já que é a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a direção de outro. Kant percebeu que é mais cômodo ser menor, pensar por si implica na coragem de superar o medo de criar algo por si. Em Freire, como já vimos, a alienação (ser para outro), é uma das principais formas de heteronomia. Ele (1981, p. 25) identificou que a alienação funciona como um inibidor que gera timidez, insegurança e um medo da aventura de criar. A alienação provoca o medo da liberdade que na verdade é o medo de se ver livre da consciência hospedeira que o aliena. Nesse sentido, é necessária coragem, porque a superação da alienação, a construção da autonomia envolve riscos. Por isso a esperança é tão necessária, é ela que estimula a coragem a superar o medo. No entanto, é preciso esclarecer que apenas a coragem não consegue tudo transformar, embora ela seja necessária para que o sujeito se comprometa, a transformação de uma situação sócio-histórica de heteronomia depende da transformação da totalidade, dos meios pelos quais a sociedade produz seus modos de vida. Freire concebe a transformação de forma dialética, os indivíduos interagem com a totalidade agindo reciprocamente um sobre o outro, por isso há um espaço de ação subjetiva que é condicionado, mas não determinado.

É preciso coragem para superar a menoridade, para superar o medo da liberdade, para assumir o próprio caráter inconcluso humano e a partir daí produzir um sentido próprio. Ambos os autores partem do pressuposto que o ser humano se faz, diferentemente dos animais que possuem instintos, os homens, como diz Freire, precisam produzir a própria existência. É devido a essa incompletude que os homens podem ser formados pela educação e, é também devido a ela que os homens podem ser livres e autônomos.

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Fonte:
VICENTE ZATTI: “A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA EM IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE”. (Dissertação em Filosofia da Educação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Dr. Laetus Mario Veit). Porto Alegre, 2007.

Notas:
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