DETERMINAÇÃO DO ARBÍTRIO

Determinação do arbítrio

O termo latim arbitrium indica uma arbitragem, um julgamento, uma decisão ou um poder de decidir. Kant, ao se referir ao arbítrio, geralmente o caracteriza em dependência do modo a partir do qual ele é determinado. O arbítrio possui na sua gênese a necessidade de ser determinado porque ele se define enquanto uma faculdade de agir de um modo ou de outro. Daí que para engendrar a conduta a ser efetivada, ou seja, definir o modo a partir do qual a ação se apresenta, ele precisa de determinação. Sendo um poder de escolha, ele carece de determinação para concretizar uma ação em dependência de certos termos, os quais são oriundos de tal determinação. Para que haja tal determinação se faz por suposto necessário a noção de fim.

Pois, sem qualquer relação de fim, não pode ter lugar no homem absolutamente nenhuma determinação da vontade [Willensbestimmung], já que tal determinação não pode ocorrer sem algum efeito, cuja representação precisa ser acolhida se não como fundamento de determinação do arbítrio [Bestimmungsgrund der Willkür] e como fim anterior no propósito, então como resultado de sua determinação, mediante lei, para um fim (finis in consequentiam veniens). Sem esse último, um arbítrio [ Willkür] que não acrescente no pensamento, a uma ação que se propõe, um objeto determinado objetiva ou subjetivamente (objeto que ele tem ou deveria ter), não pode bastar-se a si mesmo, pois sabe como, mas não para onde tem de agir (Rel, 4).

Kant justifica a importância do fim para o operar humano nos termos de que não basta para o arbítrio saber como deve agir (informação oferecida pela moral), mas também para onde deve orientar a sua ação (para o que se requer um fim). Quando afirma que o arbítrio necessita de um fim para ser determinado, Kant não está dizendo que é unicamente o fim que determina a ação, mas que ele faz parte dos elementos necessários para que haja tal determinação, quais sejam: o como e o para onde, o modo e a direção. Isso é tão indispensável a ponto de Kant afirmar que, se da moral não dimanasse um fim, a razão deveria dotar de conteúdo “um algo” que pudesse ser tomado como se fosse um fim, a partir do qual o nosso fazer e deixar de fazer fosse orientado sem deixar de concordar com o reto agir.

Mas da moral [diz Kant] provém um fim; pois a razão não pode ser indiferente a como pode ser respondida a questão: o que resulta do nosso agir reto, e também, mesmo que isso não esteja inteiramente em nosso poder, para o que nós poderíamos conduzir como para um fim o nosso fazer e deixar de fazer e com isso ao menos concordar com o agir reto (Rel, 5 grifo meu).

Nessa passagem Kant justifica que da moral provém um fim porque a razão não pode ser indiferente à resposta quer à questão o que resulta do nosso agir reto, quer ao conteúdo finalístico a partir do qual o arbítrio se determina a uma ação concordando com o reto agir. Aqui, Kant converge a necessidade da determinação do arbítrio por um fim com a questão “que me é permitido esperar?”. Essa última é formulada nos seguintes termos: se faço o que devo, o que posso esperar como contrapartida? Ou seja, qual o resultado ou efeito do meu reto agir?  A importância  de  tal questionamento  é evidenciada na medida em que Kant, relativamente a essa pergunta e às duas questões que a precedem, observa que se constituem em todo o interesse da razão tanto especulativa quanto prática (Cf. KrV, 832-833). Conforme escreve Kant na Fundamentação, “a dependência [Abhängigkeit] de uma vontade contingentemente determinável perante os princípios da razão se chama interesse” (GMS, 413, nota). Os termos a partir dos quais Kant apresenta o conceito interesse não permitem que ele seja aplicado à essência da razão propriamente dita. O interesse se traduz nos termos de uma dependência que um ser sensivelmente afetado encontra perante a razão. No que tange ao questionamento sobre os efeitos de sua conduta, o homem apresenta um interesse, isto é, ele detém a necessidade racionalmente concebida de explicar causalmente o seu agir. O interesse (enquanto dependência) é algo que se afirma sob uma natureza finita, de modo que quando se fala em interesse da razão, não se concebe tal interesse como um aspecto da própria razão strictu sensu, mas enquanto razão de um ser dotado de finitude. Nesse sentido, Jaspers afirma que “a razão conhece, precisamente enquanto razão, a finitude do homem e ela tem a experiência de seus próprios limites” (JASPERS, 1967, p.175). Ou seja, a razão “experimenta” as limitações do ser do qual ela é um elemento constituinte, e integra, como um interesse seu, os reflexos da limitação da natureza de tal ser.

A conjunção entre a necessidade de determinação do arbítrio a um fim com a pergunta “que me é permitido esperar?” não é curiosa porque Kant se serve, nessa investigação, da noção de fim enquanto efeito da conduta. Conforme na passagem inicial: “sem qualquer relação de fim, não pode ter lugar no homem absolutamente nenhuma determinação da vontade, já que tal determinação não pode ocorrer sem algum efeito...”. Essa necessidade de determinação é de tal modo intensa que Kant chega a afirmar que, se a oralidade não oferecesse um fim, outro fim, coerente com o agir moral, deveria ser estipulado racionalmente de modo a suprir a necessidade do arbítrio humano. Tal é imprescindível porque o arbítrio sempre toma um fim para direcionar a sua ação, de modo que, se da moral não procedesse ou a partir dela fosse estipulado um fim com ela coerente, forçosamente, outro (não moral) seria adotado. O arbítrio humano, na medida em que carece de determinação, não pode posicionar-se de maneira “neutra” frente à moralidade, pois ele tem de ser determinado de alguma maneira. O abandono de um fim só é possível na medida em que ele é substituído por outro fim. Nesse sentido (tal como apresenta Kant na Metafísica dos costumes), a moral tem que propor um fim que, por assim dizer, rivalize com os fins advindos das inclinações. Da moral, portanto, provém um fim nos seguintes termos:

Trata-se, na verdade [diz Kant], somente da idéia de um objeto, o qual contém nele reunido a condição formal de todos os fins que nós devemos ter (o dever) concordando simultaneamente com todo o condicionado daqueles fins que nós temos (a felicidade conforme a observância do dever), ou seja, a idéia de um sumo bem no mundo, para cuja possibilidade nós precisamos admitir um ser superior moral, santíssimo e onipotente; o único que pode reunir ambos os elementos do sumo bem. Mas essa ideia (considerando-a de maneira prática) não é vazia: porque ela remedia nossas necessidades naturais necessidade de pensar algum fim último [Endzweck] para todo o nosso fazer e deixar de fazer tomado em sua totalidade, que possa ser justificado pela razão, o que, de outro modo, seria um obstáculo à decisão moral (Rel, 5).

Esse é o momento de distinguirmos os conteúdos e alçadas atribuídos para o termo fim: fim é o agir moral propriamente dito, na medida em que a lei oferece o como nós devemos agir, trata-se do fim que devemos ter; fim também (e esse é aquele que a moral não precisa se valer, mas ao homem é inevitável se furtar) é o resultado da ação, o qual, para ser moralmente bom, deve ser efeito da determinação pela lei – trata-se do fim que efetivamente temos. Esses dois fins são sintetizados de modo a produzir um fim supremo ou objeto a partir do qual o homem deve guiar-se para produzir a sua ação. Kant enfatiza que não se trata de inserir qualquer fim, mas de um que contenha ou reúna o fim que devemos ter (o dever), com o fim que efetivamente ou naturalmente temos (a felicidade). Ou seja, o fim proposto pela moralidade não pode ser um fim qualquer, mas um objeto que, por um lado, seja compatível com a exigência categórica da moral e, por outro, detenha o interesse ou fim último para o qual o humano tende, ou seja, tal fim deve se constituir em uma combinação entre as finalidades da liberdade e da natureza.

Segundo Kant, o fim (que o homem tem) é um elemento de que a moralidade, por si mesma, na prescrição dos seus deveres, não precisa se valer, mas, em contrapartida, é levada a considerar na medida em que o arbítrio do seu agente só opera mediante a noção de finalidade, de um “norte” orientador. Tal “norte” é identificado com a felicidade (fim físico do homem), de modo que a moral compatibiliza a autonomia da sua prescrição com o questionamento de fim inerente à natureza humana, na medida em que concebe esse fim, a felicidade, enquanto uma consequência do agir moral sob o conceito de sumo bem (conjunção hierárquica entre moralidade e felicidade). A noção de sumo bem se apresenta nos termos de que a conduta moralmente boa seja condição sine qua non para a felicidade, de modo que, terminantemente, a suficiência e soberania da lei não são ameaçadas com a inserção da noção de fim. A lei moral permanece sendo o foco imprescindível do agente, na medida em que ela é parte e condição para o alcance de tal fim, ou seja, o fim físico, a felicidade, se dá nos termos de uma conseqüência da determinação pela lei.

O sumo bem sintetiza por um lado o mandamento da moral, ele diz como devemos agir, e também responde o incessante questionamento humano de para onde devemos agir: devemos agir tomando a lei como um princípio incondicional da nossa ação de modo a nos tornar dignos da felicidade. O sumo bem, portanto, não é um reforço ou fundamento auxiliar em nome do qual o indivíduo busca agir moralmente, mas nele mandamento moral e felicidade proporcional à virtude se agregam de tal maneira que ele próprio se converte em um incentivo moral, sem que isso, porém, venha a significar que a consciência do caráter obrigante da lei dependa dele.

Cabe dizer, ainda, que, porquanto a moral conceda a inserção de um fim para atender uma carência própria do humano, tal fim adquire um status genuinamente moral na medida em que é introduzido pela própria moralidade. Ou seja, do fato de o fim proposto pela moral ser imposto como uma consequência do modo humano de edificar e abordar o seu agir, não se segue que a moral, em si mesma, porquanto não necessite de tal fim, deixe de deter uma relação com ele: “essa ideia [diz Kant] provém da moral e não é o seu fundamento; é um fim cuja adoção [sich zu machen] já pressupõe princípios morais” (Rel, 5). Isso ocorre porque o conceito de sumo bem não só contém a lei moral, como também a compreende segundo o seu status de incondicionalidade. A compreensão da lei moral no conceito de sumo bem se dá em dependência de duas exigências: uma, da própria moralidade, que ao conceder um fim para o agir, o concedeu segundo os pressupostos incondicionais da moral, outro, da própria razão humana. Esse segundo ponto, Kant o enfatiza, na primeira Crítica:

A felicidade sozinha está longe de constituir o bem perfeito para a nossa razão. Essa última não aprova a felicidade (por mais que as inclinações também queiram desejá-la) a não ser que esteja unida com o merecimento de ser feliz, isto é, com a conduta moralmente boa (KrV, 841).

Nada muda, portanto, quanto à abordagem que o agente deve ter perante a lei, tão só se acrescenta à incorporação do procedimento moral a noção de fim da qual o sujeito carece. Daí porque agir segundo o pressuposto do sumo bem se constitui em um dever moral. São ilustrativas, nesse sentido, as seguintes passagens da Crítica da razão prática: “é a priori (moralmente) necessário produzir o sumo bem...”; “a promoção do sumo bem é para nós um dever” (KpV respectivamente: 203, 226 - grifo meu).

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Fonte:
LETÍCIA MACHADO PINHEIRO: “O desdobramento do conceito kantiano de comunidade ética: união moral, legislação divina e igreja”. (Tese apresentada ao curso de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do grau de DOUTOR EM FILOSOFIA. ORIENTADORA: Profa. Dra. Sílvia Altmann). Porto Alegre, 2012.

Notas:
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