O PROBLEMA DO JUÍZO NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA


O problema do juízo na Crítica da razão pura
  
A terminologia básica da obra é introduzida a partir da distinção entre representações originadas dos sentidos e aquelas provindas da capacidade intelectual. Segundo a KrV, a consciência (Bewuβtsein) ou mente/espírito (Gemüt) funda o conhecimento a partir de dois tipos básicos de representações: intuição (Anschauung) e conceito (Begriff). O único tipo de intuição que a mente humana pode ter é originada da sensibilidade (Sinlichkeit). Esta é definida como a faculdade passiva, que dá lugar a representações singulares e imediatas. Em contrapartida, o entendimento (Verstand) é estabelecido como uma faculdade ativa, que, por meio de seus conceitos, deve atuar sobre o material fornecido pela sensibilidade, propiciando assim, como o autor afirma, “pela primeira vez conhecimento em sentido próprio da palavra.” (KrV, A78/B103).

Ou, nas palavras que Kant utiliza no início da segunda parte da Doutrina transcendental dos elementos, intitulada Lógica  ranscendental:

[s]e chamarmos sensibilidade à receptividade do nosso espírito em receber representações na medida em que de algum modo é afetado, o entendimento é, em contrapartida, a capacidade de produzir representações ou a espontaneidade do conhecimento. Pelas condições da nossa natureza a intuição nunca pode ser senão sensível, isto é, contém apenas a maneira pela qual somos afetados pelos objetos, ao passo que o entendimento é a capacidade de pensar o objeto da intuição sensível. Nenhuma destas qualidades tem primazia sobre a outra. Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas. (KrV, A51/B75)

O autor concilia assim elementos passivos (o que na tradição fora tratado a partir da mera capacidade perceptiva) e elementos espontâneos (associados na tradição ao aspecto ativo da mente) na sua proposta de explicação do conhecimento. Adicionalmente, cabe considerar que, porquanto a distinção entre intuição e conceito tenha semelhança com a distinção humana entre impressões e ideias, esta não é diretamente assumida pelo autor. Provavelmente porque na explicação das espécies de representações e suas relações Kant vai se afastar radicalmente de todos os antecessores.

Entretanto a influência de Hume é assumida de modo explícito no estabelecimento da questão central da filosofia crítica. Foi na esteira da distinção entre relações de ideias e questões de fato (T, 1.1.1.1:2; 2:2-nota6 e EHU, 4.1.17), que Kant estabeleceu, a partir do período crítico de sua filosofia, o que considera o problema fundamental da metafísica: a possibilidade e a extensão do conhecimento a priori. Em outras palavras, como é possível a pretensão de alcançar a universalidade e a necessidade do conhecimento. Problema que, reconfigurado e traduzido no jargão específico utilizado na KrV, se traduz pela questão de como são possíveis juízos sintéticos a priori. A apresentação de sua proposta, porém, pressupõe uma compreensão mais ampla do programa crítico.

Hume, de acordo com o que Kant afirma nos Prolegômenos a toda a metafísica futura (1783, A7/AA, 04:257 e ss.), havia dirigido sua crítica a Locke a partir de um único conceito metafísico, o de causa e efeito. Locke (E, IV, I, 2, 5-7: 525) havia determinado que o conhecimento é uma questão de percepção da concordância ou discordância entre ideias. Ao propor que nas questões de fato não havia percepção imediata da relação das ideias, nem tampouco outra ideia na qual esta relação poderia repousar, Hume acaba por fundar a passagem da causa para o efeito no mero costume ou hábito.

Kant considera que Hume tirara a partir disto a conclusão de “que não há, nem pode haver metafísica” (Prol. A9/AA, 04:258), uma vez que seus juízos não teriam bases racionais. Todos os conhecimentos metafísicos, pretensamente a priori (pois, se dotados de universalidade e necessidade, teriam que ser completamente independentes da experiência) não teriam fundamento para além de bases subjetivas. Expressando grande estima pela proposta humeana, o autor prossegue afirmando que “foi a advertência de David Hume que

(...) interrompeu o meu sono dogmático” (Prol. A13/AA, 04:260).

Ele acrescenta, contudo, que o conceito de causa e efeito não é o único por meio do qual o entendimento conhece a priori. A respeito destes conceitos, que denominou de conceitos puros do entendimento ou categorias, ele afirma que

[p]rocurei assegurar-me do seu número e como, segundo o meu desejo, o consegui a partir de um único princípio, passei à dedução destes conceitos, seguro agora de que eles não derivavam da experiência, como Hume cuidara, mas do entendimento puro. Esta dedução, que parecia impossível ao meu penetrante predecessor, que, além dele, jamais ocorrera a alguém, embora toda a gente se servisse confiadamente dos conceitos sem se interrogar sobre que se fundaria a sua validade objetiva, esta dedução, dizia eu, era o que de mais difícil se podia empreender em vista da metafísica (Prol. A14/AA, 04:260).

A tentativa de compreender o papel destes conceitos, e mesmo da própria proposta crítica, pressupõe inicialmente a compreensão da articulação entre as noções de conhecimento a priori e a posteriori e a distinção entre juízo analítico e sintético.

No início da Introdução da KrV (A1/B1 ss.) é tratada a diferença entre conhecimentos ou cognições (Erkenntnis) empíricas e puras. Demonstrando-se contrário ao inatismo de inspiração cartesio-leibniziano e, simultaneamente, ao empirismo moderno, o texto começa enunciando que nenhum conhecimento precede a experiência, mas acrescenta que nem todo dela se origina. É basilar para esta proposta que a capacidade de conhecer possa produzir por si mesma conhecimento, ainda que para isto deva ser estimulada pelas impressões sensíveis. Conhecimento este que é denominado de a priori, em contraposição àquele que depende da experiência sensível efetiva, que é designado de a posteriori.

Um pressuposto explicitado já de início é que o conhecimento é constituído e levado a cabo por meio de juízos (Urteilen). Para o encaminhamento inicial da compreensão da noção de juízo presente na KrV é importante considerar sua adesão à lógica aristotélica. As diversas críticas que a lógica havia sofrido ao longo dos séculos anteriores assumem nesta obra a forma de um argumento em seu favor. Com efeito, no Prefácio da segunda edição encontra-se a afirmação de que a lógica já havia tomado “a via segura” de uma ciência, e “pelo fato de, desde Aristóteles, não ter dado um passo atrás” nem “ter até hoje progredido parece por conseguinte, acabada e perfeita, tanto quando se nos pode afigurar.” (KrV, Bviii) De modo que é razoável assumir que Kant segue de perto Aristóteles no que diz respeito à estruturação lógica do juízo.

A adesão à lógica aristotélica aponta para uma explicação de que o juízo é, em sua forma geral, a atribuição do predicado ao sujeito (S é P), apesar das diferenças terminológicas. Com efeito, adiante na KrV (A77/B103 ss.) a atividade do entendimento é associada à síntese de representações. Embora a alínea dez remeta a “síntese em geral” a um efeito da imaginação, remete a tarefa específica do entendimento a uma síntese. Uma vez que anteriormente (KrV, A68/B93) o texto já havia associado a síntese a funções e, adicionalmente, afirmado a possibilidade de “reconduzir (zurückführen) a juízos todas as ações do entendimento” (KrV, A69/B94, tradução adaptada em relação ao original alemão entre parênteses), a noção de juízo demanda o esclarecimento desta síntese12. Pela explicação de função como a unidade da ação de ordenar representações sob uma representação comum13, a noção de juízo e da “síntese de representações” do entendimento deve ser entendida a partir da subordinação. De onde se chega à compreensão do juízo a partir da visão aristotélica da predicação e da estruturação em superiores e inferiores e/ou gêneros e espécies.

À primeira vista, a ordenação de representações sob outra comum permitiria tanto a subordinação de conceitos sob conceitos quanto de intuições sob conceitos. A discussão exaustiva desta questão será realizada adiante, mas é tempo de apontar para pelo menos uma base textual que parece restringir as representações relacionadas no juízo a conceitos. Afirma o texto que:

como nenhuma representação, exceto a intuição, se refere imediatamente ao objeto, um conceito nunca é referido imediatamente a um objeto, mas a qualquer outra representação (quer seja intuição ou mesmo já conceito). O juízo é pois, o conhecimento mediato de um objeto, portanto a representação de uma representação desse objeto. Em cada juízo há um conceito que vale para diversos (der für viele gilt) e que, nesta pluralidade, abrange (begreift) também uma dada representação, referindo-se (bezogen) esta última imediatamente ao objeto. (KrV, A68/B93, negritos meus, tradução adaptada em relação ao original alemão entre parênteses)

Ainda que a parte inicial afirme que conceitos podem se referir (bezogen) a intuições, a última frase explicita que no juízo (“em cada juízo”) há um conceito que se aplica a outros conceitos. A referência (begreifen) à intuição é de outra ordem, embora o conceito que se aplica a outros conceitos também deva se reportar à intuição para que possa ter objeto. Deste modo, a formulação presente nos transcritos das aulas de Kant, designada de Lógica de Dohna-Wundlacken, onde  se lê que o “juízo é a representação da união de conceitos dados, na medida em que um é subordinado ao outro ou dele excluído” (AA, 24:762, negritos meus), parece expor a compreensão que vale para a KrV.

Ao que tudo indica, é a síntese, explicada em termos de subordinação, que caracteriza de modo geral o juízo. A decisão de que a subordinação seja única e exclusivamente de representações conceituais depende ainda de considerações adicionais. Contudo vale notar já de início que ela é compatível com a terminologia e com a explicação do conhecimento que o autor oferece.

Os conhecimentos a priori são distinguidos por Kant pela necessidade e/ou universalidade irrestrita dos seus juízos. Os juízos analíticos são explicados como aqueles nos quais o conceito predicado pertence ao conceito sujeito como algo contido nele. Estes são todos juízos a priori, não só porque seu alcance não ultrapassa a mera explicação do que já era pensando no conceito sujeito, mas principalmente porque seu fundamento é o princípio de não contradição. A possibilidade de um juízo analítico no qual o conceito predicado estivesse contido ou fosse extraído por contradição de uma intuição, além de não ser compatível com a caracterização oferecida pelo texto, desencaminharia as distinções fundamentais entre lógica e estética e pensamento e percepção.

Aqueles juízos, ao contrário, onde a ligação não é pensada por identidade são denominados de juízos sintéticos. Nestes, o conceito predicado acrescenta algo ao conceito sujeito que nele não estava pensado e que dele não poderia ser extraído por decomposição ou assumido a partir do princípio de não contradição. São estes os juízos que têm segundo o autor um caráter ampliativo para o conhecimento.

Os juízos sintéticos podem ser a posteriori ou ainda a priori. Para os primeiros, o fundamento da relação envolvida no juízo é a experiência, uma “contínua adição (síntese) das percepções” (Prol.

A40/AA, 04:275). Mas, nestes casos, onde é sobre “a experiência que se funda a possibilidade de síntese do predicado” (KrV, A8/B12) com o sujeito, um pertence ao outro de modo contingente.

São os juízos sintéticos a priori que traduzem o problema fundamental que a filosofia crítica pretende investigar. O autor assume que sua possibilidade não está em discussão, assim o programa de investigação não é se são possíveis, mas como são possíveis, e se estabelece porque nestes casos faltaria a ajuda da experiência. O problema é posto nos seguintes termos:

[s]e ultrapasso o conceito A para conhecer outro conceito B, como ligado ao primeiro, em que me apoio, o que é que tornará a síntese possível, já que não tenho, neste caso, a vantagem de a procurar no campo da experiência? Tomemos a proposição: tudo o que acontece tem uma causa. No conceito de algo que acontece concebo, é certo, uma existência precedida de um tempo que a antecede, etc. e daí se podem extrair conceitos analíticos. Mas o conceito de causa está totalmente fora desse conceito e mostra algo de distinto do que acontece; não está, pois, contido nesta última representação. Como posso chegar a dizer daquilo que acontece em geral algo completamente distinto e reconhecer que o conceito de causa, embora não contido no conceito do que acontece, todavia lhe pertence e até necessariamente? Qual é aqui a incógnita X em que se apoia o entendimento quando crê encontrar fora do conceito A um predicado B, que lhe é estranho, mas todavia considera ligado a esse conceito? Não pode ser a experiência, porque o princípio em questão acrescenta esta segunda representação à primeira, não só com generalidade maior do que a que a experiência pode conceder, mas também com a expressão da necessidade, ou seja, totalmente a priori e por simples conceitos. (KrV, A9/B13, negritos meus)

Mesmo que a explicação da tripla distinção dos juízos em analíticos, sintéticos a posteriori e sintéticos a priori aponte para a interpretação do juízo como relação entre conceitos, a interpretação do problema da possibilidade dos juízos sintéticos enfrenta a dificuldade de explicar qual é o papel da intuição (repetidamente assumida na literatura secundária como o “x” em questão). Esta dificuldade parece, via de regra, encaminhar os intérpretes para a tese de que a predicação de singulares está envolvida ou suposta na concepção de juízo de Kant. De modo que o ônus de assumir que o juízo se estabelece como a relação exclusiva entre conceitos – como o texto recém-citado também parece encaminhar, vide negritos –, é a imposição da explicação do papel da intuição em relação aos juízos.

Com vistas a viabilizar uma análise minimamente abrangente das interpretações acerca deste papel, o próximo subcapítulo apoiar-se-á fortemente na apreciação de Codato (2004). Sua análise reconstrutiva das interpretações contemporâneas evidenciará uma aposta generalizada na concepção de juízo como subordinação de intuições e conceitos. Como, de modo geral, todas propõem a presença de intuições na extensão dos conceitos, serão consideradas sob o título de interpretação do juízo como subordinação extensional. No entanto a análise vindoura evidenciará a insuficiência e a incompatibilidade com o texto da KrV destas propostas.


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Fonte:
Evandro Godoy: “O juízo como subordinação intencional e a Analítica transcendental da Crítica da Razão Pura”. (Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para obtenção do grau de Doutor em Filosofia). Porto Alegre, 2014.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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