DO USO PURO DA RAZÃO


Do uso puro da razão

Como se viu, era necessidade da razão obter um incondicionado. Isso era decorrente do seu uso lógico em procurar o incondicionado de todo o condicionado. Esse incondicionado seria buscado, não na experiência, mas por meio de idéias transcendentais. Portanto, embora a indiscutível base das antinomias realmente seja o uso lógico da razão, há um uso puro que lhe possibilita inferir dialeticamente o incondicionado. Isso foi observado por Allison (1995) e pela maioria dos comentaristas, como, por exemplo, Lebrun (2001).

Deste modo, semelhante à faculdade do entendimento, a faculdade da razão opera mediante conceitos puros. Conceitos esses, essenciais ao seu uso lógico. A causa magna da terceira antinomia, de fato, é o uso lógico da razão. Mas a razão chegaria às antinomias se não tivesse um uso puro? Certamente não. Logo, o uso puro da razão é um meio necessário pelo qual se move o argumento das antinomias no seio da dialética transcendental, uma vez que somente o uso lógico da razão não geraria nenhum pretenso objeto em si mesmo.

Assim sendo, a razão, para chegar aos incondicionados da alma, do mundo e de Deus e procurar a unidade das condições de possibilidade, recorreria a princípios. Deste modo, o uso lógico da razão garante seu uso puro. Do mesmo modo como o entendimento, para unificar o múltiplo da intuição sensível, operou por meio de um uso lógico e puro, a razão para tal pretensão também teria essa dupla dimensão: lógica e pura. Isso porque não bastaria que a razão almejasse unificar o condicionado dado se ela não tivesse os possíveis elementos necessários para isso. Para tal finalidade, ela precisaria ter os necessários conceitos puros que são as idéias transcendentais enquanto princípios em um uso que realmente tivesse validade objetiva. Essas idéias corresponderiam a tantas quantas fossem as espécies de relações que o entendimento apresenta mediante as categorias. Nas palavras de Kant:

“Tantas quantas são as espécies de relação que o entendimento se representa mediante as categorias, serão também os conceitos puros da razão. Portanto, dever-se-á procurar em primeiro lugar, um incondicionado da síntese categórica em um sujeito, em segundo lugar, um incondicionado da síntese hipotética dos membros de uma série e, em terceiro lugar, um incondicionado da síntese disjuntiva das partes em um sistema”.

Assim sendo, as idéias transcendentais estão expostas em três classes pelas quais se busca uma unidade sintética para todo o condicionado dado. Elas se compõem de três distintos sistemas de idéias: paralógicas, antinômicas e teológicas. Assim se lê na Crítica da Razão Pura:

“Ora, todos os conceitos puros em geral têm a ver com a unidade sintética das representações, e os conceitos da razão pura (idéias transcendentais), por sua vez, com a unidade sintética incondicionada de todas as condições em geral. Conseqüentemente, todas as idéias transcendentais podem reduzir– se a três classes, cuja primeira contém a unidade absoluta (incondicionada) do sujeito pensante, a segunda, a unidade absoluta da série de condições do fenômeno, a terceira, a unidade absoluta da condição de todos os objetos do pensamento em geral”.

Desse modo, a terceira antinomia faz parte de um sistema de idéias transcendentais em decorrência de um uso lógico, um uso puro e de sua própria natureza. Então, não se defende aqui que haja uma única causa pela qual Kant tenha exposto as antinomias. Além de haver tais usos racionais geradores dos conflitos antinômicos, também há uma dimensão natural de ela elevar-se a elas, em decorrência de sua própria natureza.

“Tais inferências devem, com respeito ao seu resultado, ser denominadas antes sofismas que silogismos; se bem que, em virtude de sua origem, possam trazer o último nome, pois não foram inventados nem surgiram por acaso, mas se originaram da natureza da razão”.

Como também se observa em B 670, B 697, B 449 e B 825, de fato, a própria natureza da razão a conduz às idéias que ultrapassam os limites de toda e qualquer experiência empírica. Por fim, decorrente das três grandes causas aclaradas, a razão enquanto faculdade, vê-se inevitavelmente envolvida em conflitos que necessitam de uma análise crítica. Um deles é o das antinomias, isto é, idéias puras e involuntárias da própria razão, relacionadas, não aos objetos presentes no conjunto de elementos do mundo natural, mas como uma totalidade das condições.

“Algo totalmente diverso ocorre quando aplicamos a razão à síntese objetiva dos fenômenos, onde ela pensa fazer valer, na verdade com muita ilusão, o seu princípio da unidade incondicionada, envolve-se depressa em contradições”.

Por antinomias cosmológicas entendem-se, assim, os inevitáveis conflitos antinômicos a que chega a própria razão pura quando considera “a unidade da série absoluta das condições do fenômeno”. Ela chega até elas, como se viu, ao se utilizar seu uso puro, a fim de poder desempenhar sua função lógica. Por essa razão eleva-se até o incondicionado do mundo, por exemplo. O incondicionado do mundo, portanto, aqui é entendido como uma idéia enquanto objeto da cosmologia, ou seja, “a soma total de todas as aparências”. Portanto, o mundo, aqui, não é um todo fora de nossas representações e, portanto, não se pode constituir como um objeto legítimo do conhecimento, mas como um todo numênico reivindicado pela própria razão como unificador de todas as categorias a elas relacionadas.

Deste modo, as antinomias se referem à unificação das categorias do entendimento e, por essa razão, são simples idéias que não podem ser dadas (por seu conteúdo) na experiência. Para tanto, elas requerem um incondicionado: “algo como a completude absoluta na série das premissas, que, conjuntamente, não pressupõe mais nenhuma outra”. Logo, este incondicionado é reivindicado pela razão como uma espécie de unificador das categorias e se expressa por meio de idéias transcendentais (conceitos cosmológicos) que têm como finalidade fundamentar a síntese absoluta dos fenômenos e aqui deveriam corresponder aos quatro grupos de categorias: quantidade, qualidade, relação e modo. Dessas quatro categorias Kant extraiu as quatro antinomias. A primeira trata da finitude ou infinitude do mundo no tempo e no espaço (B 454 e B 455); a segunda, se existe ou não uma substância simples no mundo (B 462, B 463); a terceira, se existe uma causalidade livre ou natural (B 472 e B 473) e a quarta, se existe ou não um ser necessário como parte ou causa do mundo (B 480 e B 481).


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Fonte:
Onorato Jonas Fagherazzi: "A questão da possibilidade da liberdade na Crítica da Razão Pura: Uma interpretação de B 560 e B 586". (Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. João Carlos Brum Torres. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação Em Filosofia). Porto Alegre, 2006.

Notas:
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