SOBRE A DIVISÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES

SOBRE A DIVISÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES

Em uma nota na seção III da Introdução à Metafísica dos costumes intitulada Sobre a divisão de uma metafísica dos costumes (MS Ak VI: 218) Kant observa que o conceito supremo dividido na divisão do correto ou incorreto <Recht oder Unrecht> (aut fas aut nefas) é o conceito de ato <Act> do livre arbítrio em geral. De modo análogo ao que representa o conceito de um objeto em geral em sua filosofia teórica – este é o conceito supremo de sua ontologia crítica -, o conceito de ato do livre arbítrio em geral cumpre o papel de conceito supremo de uma Metafísica dos costumes, a partir do qual é possível estabelecer as distinções entre as duas partes da mesma, as doutrinas do direito e da virtude, a fim de articular o sistema de deveres pretendido. A faculdade do arbítrio livre é caracterizada por Kant como um poder racional de escolha que é afetado por impulsos sensíveis, mas não é determinado por eles. Dito de outro modo, o arbítrio humano é um poder de escolha no qual, por um lado, estão implicadas as características de um ser imperfeitamente racional, mas, por outro, se constitui em uma capacidade racional de escolher e agir de acordo com princípios puramente racionais. Quando Kant fala no conceito de ato do livre arbítrio em geral como o conceito supremo da Metafísica dos costumes, entendemos que ele está se referindo a capacidade do arbítrio livre de exercer a sua atividade de escolher e agir tanto interna como externamente segundo leis da liberdade, isto é, se refere aos dois usos possíveis da liberdade desse poder.

Na Introdução geral Kant explica que uma ação que está sob as leis morais “se chama um ato na medida em que está sob leis obrigatórias e, portanto, também na medida em que nela o sujeito se considera à luz da liberdade de seu arbítrio.” (MS Ak VI: 223) As ações que se encontram sob a legislação da razão prática, portanto, atos da faculdade do arbítrio livre, podem ser tanto internas quanto externas. Dito de outro modo, as leis da liberdade chamadas por Kant de leis morais legislam para o poder de escolha humano acerca de suas ações internas e externas. Uma ação externa é aquela que se inscreve no mundo e que, juntamente com seus efeitos, pode afetar, direta ou indiretamente, outras pessoas; é a ação que se relaciona com os outros. Já a ação interna se refere simplesmente a nós mesmos; diz respeito a um ato da liberdade do arbítrio, ao ato de escrutínio interno mediante o qual o poder de escolha adota fins para os quais as suas ações irão se dirigir como objeto.

No domínio prático, tanto o conceito de ações possíveis para o arbítrio humano, quanto o conceito de arbítrio humano, são conceitos que não podem ser conhecidos de modo a priori, mas precisam ser dados empiricamente. O arbítrio humano é uma faculdade prática que pertence ao ser humano enquanto ser racional sensível, e nessa medida pode apenas ser conhecida empiricamente, na experiência prática do ser humano no mundo sensível por meio de seus atos. No entanto, é uma faculdade caracterizada como livre, e isso significa que pode ser determinada a priori por princípios puramente racionais, na medida em que pode tomar tão somente o respeito pela lei moral como fundamento determinante da escolha. Nesse sentido, o conceito de arbítrio humano é um conceito que possui uma referência a elementos empíricos, mas que é determinável a priori (não é puro por si mesmo, em função de seu caráter sensível, afetado; mas, devido ao seu caráter racional, livre, é determinável a priori).

O que queremos destacar aqui é que o conceito de arbítrio livre é o conceito que marca a especificidade da vontade humana. Se uma metafísica dos costumes, ao tratar da questão da aplicação dos princípios práticos a priori, precisa tomar em conta a natureza humana, o conceito de arbítrio livre é o conceito mais geral e que marca a especificidade humana frente a outros possíveis seres racionais. A partir da consideração desse conceito e do conceito de ato do livre arbítrio em geral, é possível indicar os possíveis usos da liberdade desse poder racional, que podem ser traduzidos em ações internas e externas. E, é a partir desses distintos usos da liberdade do arbítrio que Kant poderá avaliar quais são os elementos envolvidos na determinação do arbítrio humano a ação, tanto interna quanto externa, e articular um sistema de deveres internos e externos para seres humanos que agem em um mundo sensível compartilhado.

Todo  e  qualquer  ato  do  livre  arbítrio  possui  um  fim  para  o  qual  se  dirige.  Na Introdução geral Kant caracteriza o arbítrio como uma faculdade de desejar cujo exercício está ligado à consciência da sua capacidade de produzir objetos mediante a ação. Fim é definido como “um objeto do arbítrio (de um ser racional), através de cuja representação o arbítrio é determinado a uma ação para causar esse objeto.” (MS Ak VI: 381) Por meio da representação de um objeto, que é o fim pretendido por um agente, ele é capaz de, pela atividade do poder de escolha, determinar-se a agir com vistas a sua produção. Essa capacidade de se propor fins e determinar-se a agir a fim de alcançá-los ressalta o arbítrio humano como um poder de escolha livre (a princípio em sentido negativo, como espontaneidade), ou seja, trata-se de uma capacidade racional e de um ato de liberdade do sujeito agente na produção de objetos e não uma ação determinada segundo causas naturais, como são as ações de seres que possuem um arbitrium brutum. Nenhuma legislação externa pode nos forçar a adotarmos determinados fins. A determinação de um fim, qualquer que seja, é um ato da liberdade interna do poder de escolha, e uma coação externa para a adoção de fins seria contraditória (um ato de liberdade que não é livre). Podemos ser externamente obrigados a realizar determinadas ações que não se dirigem a um fim que seja nosso e que servem como meios para o fim de outro agente, mas, somente nós mesmos podemos nos propor algo como nosso fim.

Quanto aos fins possíveis à ação humana, Kant mostra que eles podem ser derivados de nossa natureza sensível (desejos e inclinações sensíveis), e estes são os fins subjetivos, assim como podem derivar da razão pura, os quais se caracterizam como fins objetivos, dados a priori pela razão prática pura e que, em função da nossa natureza racional, somos obrigados a tomá-los como nossos fins. Como os fins derivados da natureza humana sensível e suas inclinações podem ser contrários ao dever, a razão legisladora fornece fins que podem opor-se a eles e, assim, assegurar a possibilidade da moralidade. Tais fins são chamados por Kant de fins obrigatórios ou fins que são em si mesmo deveres, e somente estes podem se chamar deveres de virtude. A adoção de fins que são ao mesmo tempo deveres não é contraditória com a liberdade do poder de escolha, na medida em que tal adoção é autoimposta, ou seja, adotamos tais fins livremente mediante um ato de escrutínio interno; nós mesmos somos os autores da obrigação com relação a eles. Os deveres de virtude ordenam ao agente moral não a execução de ações específicas, como fazem os deveres jurídicos, mas a adoção desses fins da razão prática pura, os quais cumprem a função de regular as ações de acordo com o principio supremo da moralidade.

Kant apresenta dois fins obrigatórios, a própria perfeição, que abarca os deveres para consigo mesmo, e a felicidade dos outros, que diz respeito aos deveres para com os outros.

Os fins obrigatórios, cujo suporte é a lei moral, estão implicados em toda ação racional. Eles possuem a função de regular a moralidade humana e assegurar as condições da agencia racional. Nossos fins subjetivos estão subordinados aos fins obrigatórios, são moldados por eles. Segundo tais fins, o homem está obrigado a pensar a si mesmo e a qualquer outro homem como seu fim, isto é, a tomar a natureza racional como fim em si mesma. Desconsiderar esses fins significa negar a humanidade em si mesmo e no outro, portanto, negar o status de um ser que é fim em si mesmo. É um dever para o ser humano agir sob máximas cujos fins possam ser universalizáveis. É isso que dita o principio supremo da virtude. Para Kant, o agente virtuoso é aquele comprometido com o princípio da doutrina da virtude, isto é, comprometido com a adoção de máximas que o permitam perseguir seus próprios fins de acordo com os fins obrigatórios.

A doutrina dos fins obrigatórios marca a especificidade da doutrina da virtude e sua distinção com relação à doutrina do direito. Somente na doutrina da virtude os fins (matéria, objeto do arbítrio livre) adotados pelos agentes morais são tomados em consideração e somente nela está implicado o conceito de autoconstrangimento de acordo com leis morais.

A adoção de fins é um ato de liberdade do arbítrio; a adoção de fins obrigatórios é um ato da liberdade interna compreendida em seu sentido positivo, isto é, a autoimposição de deveres de virtude derivados da lei moral. Na doutrina do direito importa apenas a forma da relação entre os arbítrios livres, sem consideração do fim contido na máxima. No direito, deixa-se ao arbítrio de cada um decidir que fim se quer propor para a sua ação, importando apenas que a liberdade externa de cada um possa coexistir com a liberdade de qualquer outro, de acordo com uma lei universal.

Pode-se pensar a relação de um fim com o dever de dois modos: ou partindo do fim, descobrir a máxima das ações que são conformes ao dever, ou ao invés, partindo da máxima das ações em conformidade com o dever, descobrir o fim que é ao mesmo tempo um dever. – A doutrina do direito segue o primeiro caminho. Deixa-se ao arbítrio de cada um decidir que fim se quer propor para a sua ação. Mas a máxima da mesma está determinada a priori: a saber, a máxima segundo a qual a liberdade do agente poderá coexistir com a liberdade de qualquer outro, segundo uma lei universal. (MS Ak VI: 382)

Nessa passagem Kant mostra que a relação entre fim do arbítrio humano com os princípios práticos a priori da razão que representam o dever pode se dar de duas maneiras distintas, e que cada uma delas mostra o que se tem em conta no direito e na ética. O direito se ocupa apenas com o aspecto formal da relação prática entre os arbítrios livres sem ter em conta a matéria do arbítrio (o fim proposto da ação). Se um agente se propõe um fim X, a máxima de sua ação para alcançar tal fim deve ser conforme a lei universal do direito, ou seja, sua ação para alcançar tal fim não pode ser um obstáculo à liberdade externa dos outros. O que a lei universal do direito estabelece como obrigatório ou permitido é o acordo da liberdade com ela mesma quando sua máxima é erigida a lei universal. A doutrina da virtude, por sua vez, tem em conta primeiramente não fins efetivos (materiais) dos agentes morais, mas a máxima conforme a lei moral para, a partir dela, derivar os fins obrigatórios que devem ser adotados por eles.

Quisemos ressaltar aqui que na Metafísica dos costumes, ao tomar em conta a peculiaridade da natureza humana, Kant introduz uma referência a elementos empíricos ao tratar da relação entre os princípios práticos a priori e a determinação do arbítrio humano como arbítrio livre. Vimos que o conceito de ato do livre arbítrio é o conceito comum supremo na divisão da metafísica dos costumes, e que o próprio conceito de arbítrio humano é um conceito que não é puro por si mesmo, pois envolve elementos empíricos mínimos (é afetado por impulsos sensíveis). Relativamente à doutrina da virtude, são justamente os obstáculos postos pela natureza humana sensível ao cumprimento do dever que terão que ser vencidos pelo agente moral. É contra esses obstáculos que agente moral constantemente precisa se opor a fim de superá-los para que possa ser considerado virtuoso. No entanto, a virtude não se reduz a uma luta contra tais obstáculos, ela se caracteriza também como uma disposição firme do agente na adoção de máximas cujo fundamento determinante seja o respeito pela lei moral. A virtude, uma capacidade humana fundada na liberdade interna, é apresentada por Kant como “fortaleza”, “força moral”, “firmeza de intenção e de caráter”, isto  é, uma resolução firme de resistir aos desejos e inclinações sensíveis, a tudo o que se opõe à lei moral e agir somente pelo motivo do dever. Nesse sentido, os fins obrigatórios desempenham um papel fundamental, na medida em que a sua adoção garante a regulação dos outros fins possíveis de acordo com o princípio supremo da moralidade.

No que diz respeito ao direito, que por definição envolve a representação da relação recíproca de arbítrios livres, fica evidente que ele pressupõe a coexistência de arbítrios ou agentes morais para se pensar a aplicação de seus princípios a priori. A pressuposição da existência de outros agentes livres precisa ser admitida como a referência a um elemento empírico introduzido na construção do conteúdo - não da sua forma, que já está estabelecida - do princípio e da lei universal do direito, na medida em que a limitação da liberdade do uso externo do arbítrio, tarefa do direito, apenas faz sentido se há uma pluralidade de arbítrios livres. A pressuposição da existência de uma pluralidade de arbítrios livres é o que nos permite precisar o conteúdo da lei universal do direito e de seus princípios a priori, isto é, o que eles descrevem como obrigatório ou permitido. Importante notar que a justificação do caráter obrigatório dos princípios a priori do direito é outra questão, e nenhuma referência a elementos empíricos está envolvido nela, pois se trata de mostrar que eles possuem a forma de leis práticas válidas incondicionalmente para agentes morais. Adiante trataremos mais detalhadamente a questão acerca dos elementos empíricos envolvidos no direito, quando iremos considerar as condições antropológicas implicadas no âmbito de aplicação do conceito moral do direito e de seus princípios a priori.

---
Fonte:
MARA JULIANE WOICIECHOSKI HELFENSTEIN: “ FUNDAMENTAÇÃO MORAL DO DIREITO NA FILOSOFIA DE KANT”. (Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial à obtenção do título de doutora em Filosofia. Orientador: Dr. Denis Lerrer Rosenfield). Porto Alegre, 2013.

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Direitos autorais:
Segundo Portaria n 5068, de 13/10/2010, da UFRS: “Os trabalhos depositados no Lume estão disponíveis gratuitamente para fins de pesquisa de acordo com a licença pública Creative Commons.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!