Ciência e Filosofia
em Jean Piaget
DA CIÊNCIA
Inicialmente,
para falar de ciências, Piaget faz uma análise das ciências humanas e sociais,
afirmando que é difícil estabelecer diferenças significativas entre as ciências
sociais e as que comumente são chamadas de humanas, uma vez que os fenômenos
sociais dependem do homem e de seus processos psicológicos. Isto, em última
análise, implica que todas as ciências sociais são humanas. Neste sentido, na
abordagem piagetiana, a distinção entre estes dois ramos da ciência só seria
possível a partir da dissociação do homem daquilo que é fruto da interação social
e que constitui sua essência universal.
certo que numerosos espíritos continuam ligados a uma tal distinção com
tendência a opor o inato ao adquirido sobre a influência dos meios físicos ou
sociais, fazendo assim assentar a natureza humana num conjunto de caracteres
hereditários.
Na abordagem
construtivista piagetiana, o inato é entendido enquanto possibilidade de
funcionamento que não se traduz necessariamente em estruturas pré-organizadas.
Um exemplo disto, como destacou Piaget, é a linguagem, que, como se sabe,
corresponde a uma parte específica do cérebro, apesar de ser adquirida
socialmente. Caso ocorra um dano cerebral na área específica da linguagem, as
funções danificadas serão supridas por outras regiões do cérebro.
Assim, nada impede admitir que a natureza humana comporte, entre outras,
contrariamente ao que se pensava no tempo de Rousseau, a exigência de se
pertencer a sociedades particulares, de tal maneira que é cada vez maior a
tendência para não conservar nenhuma distinção entre as ciências chamadas sociais
e as designadas por humanas.
Indo ao encontro
desta tendência, Piaget não se esforçará para estabelecer as diferenças básicas
entre as ciências sociais e as do homem, pois ambas, em sua perspectiva, são
humanas. A distinção que Piaget estabelece entre as ciências está voltada para
seu potencial de estabelecer leis, uma vez que existem ciências que podem ser
consideradas nomotéticas, pois procuram estabelecer regularidades
generalizáveis, guardadas as devidas proporções, de forma análoga às ciências
da natureza.
Apesar de
conferir especial importância às ciências nomotéticas, Piaget também admite a
existência de três grandes grupos: as ciências históricas, as ciências
jurídicas e as disciplinas filosóficas.
As ciências
nomotéticas são disciplinas que se esforçam em extrair
[...] leis no sentido, por vezes, de relações quantitativas de certo
modo constantes, exprimíveis sob a forma de funções matemáticas, mas também no
sentido de fatos gerais ou de relações ordinais, de análises estruturais, etc.,
que se traduzam por meio da linguagem corrente ou de uma linguagem mais ou
menos formalizada (lógica, etc.).
Neste sentido, a
psicologia científica, a sociologia, a etnologia, a linguística, a economia e a
demografia são exemplos de disciplinas nomotéticas, pois procuram, mesmo que em
sentido lato, o estabelecimento de leis para os fenômenos.
Diferente das
nomotéticas, as ciências históricas objetivam reconstruir e compreender o
desenrolar das manifestações sociais ao longo do tempo,
[...] quer se trate da vida dos indivíduos cuja
ação marcou esta vida social, das suas obras, das ideias que tiveram qualquer
influência duradoura, das técnicas e das ciências, das literaturas e das artes,
da filosofia e das religiões, das instituições, das trocas econômicas, ou
outras, e da civilização no seu conjunto, a história cobre tudo o que interessa
à vida coletiva, tanto nos seus fatores isoláveis como nas suas
interdependências.
Certamente, tanto
as disciplinas nomotéticas quanto as históricas estudam fenômenos diacrônicos (estudo das sucessões de fenômenos); contudo, a abordagem da história dos fenômenos ocorre de forma
distinta, uma vez que, para as disciplinas nomotéticas, a perspectiva
diacrônica de um fenômeno se refere ao desenrolar de uma sucessão de fatos
históricos que se repetem ao longo de gerações, permitindo, portanto,
verificações e variações de fatores e, logo, o estabelecimento de leis, sob a
forma de leis de desenvolvimento do fenômeno.
As ciências
jurídicas, de acordo com a classificação piagetiana, ocupam uma posição
diferenciada, em função do Direito se constituir a partir de um sistema de
normas, que são descritas como leis sociais.
Uma norma não
provém, com efeito, da simples verificação de relações existentes, mas de uma
categoria à parte, que é a do dever ser. Assim, é próprio de uma norma
prescrever um certo número de obrigações e de atribuições que permanecem
válidas mesmo se o sujeito as viola ou não faz uso delas, enquanto uma lei
natural assenta num determinismo causal ou numa distribuição estocástica e o
seu valor real advém exclusivamente do seu acordo com os fatos.
Na classificação
piagetiana das ciências, as disciplinas filosóficas aparecem como um grupo
particular de difícil classificação, em função da dificuldade de estabelecer o
alcance, a extensão e a unidade das disciplinas que podem ser agrupadas
enquanto disciplinas filosóficas. As disciplinas filosóficas se ocupam da
coordenação geral de todos os valores do homem envolvendo concepções de mundo
que partam não apenas dos conhecimentos adquiridos e de sua crítica, mas também
das convicções e valores do homem em todas as suas atividades, estendendo-se
até as metafísicas.
A classificação
piagetiana das ciências possibilita identificar, até certo ponto, uma
complementaridade das ciências que acaba criando planos intermediários entre a
análise dos fenômenos nomotéticos, históricos, jurídicos e filosóficos.
Contudo, apesar dos planos intermediários de transição, a divisão das ciências
segundo as quatro categorias acima “parece corresponder ao estado atual do
saber, conferindo às ciências nomotéticas do homem uma posição que é, ao mesmo
tempo, natural e relativamente independente.”
No que se refere
ao processo de constituição das ciências e, particularmente, aos fatores que
caracterizam o surgimento e consolidação de uma ciência nomotética, é possível
distinguir cinco elementos básicos que configuram o desenvolvimento de uma
disciplina, do estado pré-científico ao científico: tendência comparatista;
tendência genética; adoção de modelos da ciência natural; tendência para
delimitação dos problemas e suas respectivas exigências metodológicas;
utilização de instrumentos de verificação.
Destas
tendências, existem duas espontâneas, que caracterizam as atividades do sujeito
e que, de certa forma, também caracterizam o pensamento pré--científico. A
primeira é a de colocar-se no centro do mundo e da própria reflexão; a segunda
é de universalizar a própria conduta como se fosse norma universal.
Este pensamento
espontâneo sofre mudanças significativas através da tendência comparatista, que
consiste numa descentração do ponto de vista próprio a partir da comparação de
fenômenos e fatos, que conduz o ponto de vista próprio a subordinar-se a
múltiplos sistemas de referência, ao longo do processo comparativo.
A descentração
que caracteriza a tendência comparatista é um processo que incide diretamente
sobre o egocentrismo do pensamento e, por isto, torna-se um processo difícil,
pois levados por uma dimensão egocêntrica, ao invés de efetiva comparação,
acabamos por impor nossa visão de mundo à reflexão dos fenômenos.
A descentração comparatista é, neste caso, tão difícil, que Rousseau,
para pensar um fenômeno social, procurando as suas referências nos
comportamentos elementares e não civilizados (o que marcava um grande progresso
em relação às ideias do seu tempo), imagina o bom selvagem como um indivíduo
anterior a qualquer sociedade, mas emprestando, sem dar por isso, todos os
caracteres de moralidade de racionalidade e mesmo de dedução jurídica que a
sociologia nos ensina serem os produtos da vida coletiva.
Este mesmo
fenômeno que acometeu Rousseau, de acordo com Piaget, se repetiu no século XIX,
quando Taylor, fundador da antropologia cultural, concebeu um filósofo selvagem
para explicar o animismo da civilização primitiva que, apesar de não
civilizada, raciocina a partir das exigências que caracterizavam a filosofia do
século XIX.
A descentração da
reflexão sociológica rumo à análise nomotética se consolidou a partir de Comte,
Marx e Dürkheim, pois em cada um destes autores a descentração comparatista
consistiu em não partir do desenvolvimento individual como fonte das realidades
coletivas, mas em ver no indivíduo o produto de socialização.
De acordo com a
perspectiva piagetiana, a descentração, que possibilitou o estabelecimento da
psicologia enquanto ciência, criou preocupações normativas para se distanciar
da psicologia filosófica centrada no “eu” como expressão da alma e na
especulação como método, a partir de comparações sistemáticas
[...] entre o normal e o patológico, entre o adulto e a criança, e entre
o homem e o animal, o ponto de vista geral que acabou por prevalecer na
psicologia científica foi o de que a consciência só pode compreender- se na sua
inserção no conjunto da conduta, o que supõe, então, os métodos de observação e
experimentação.
Outro ponto
importante para a passagem de um conhecimento pré-científico para um científico
é a tendência genética, que tomou conta de uma série de disciplinas. Esta tendência
se expressa na aceitação de que os estados individuais ou sociais diretamente
vivenciados, que dão origem a uma consciência intuitiva ou imediata, são um
produto diacrônico do desenvolvimento.
A tendência
genética, na abordagem piagetiana, foi decisiva para constituição das ciências
do homem a partir da teoria da evolução das espécies de Darwin, pois os
problemas em relação à atividade humana foram colocados sob nova perspectiva.
Com base na influência que a teoria darwinista exerceu nas disciplinas, quer
sejam pré-científicas ou científicas, juntamente com a filosofia positivista,
surgiu uma terceira tendência, que se configurou como um fator relevante para o
desenvolvimento das ciências nomotéticas. Esta tendência se efetivou pela
tentativa de adoção
dos modelos das ciências naturais, com a expectativa que estes pudessem obter o
mesmo êxito nas ciências do homem.
No processo de
desenvolvimento científico, Piaget destaca como fator essencial a crescente
tendência de delimitação dos problemas, com suas respectivas exigências
metodológicas, como um ponto crucial para o surgimento de uma disciplina
científica. Foi a partir desta tendência que disciplinas como a psicologia e a
sociologia, a exemplo de muitas outras, puderam se desvencilhar da filosofia
para se constituírem enquanto ciências.
Indo de encontro
ao postulado positivista da existência de fronteiras precisas que demarcam os
problemas científicos, Piaget acreditava, tendo por base o desenvolvimento
histórico das ciências, que as fronteiras científicas, ao longo do tempo,
sofrem constantes deslocamentos e que, por conseguinte, são abertas. Uma
verificação importante decorrente desta permeabilidade das fronteiras
científicas é que estas não são fruto de uma cisão a priori entre
problemas científicos e filosóficos, pois
a filosofia, ao visar a totalidade do real, comporta necessariamente
dois caracteres, que constituem a sua originalidade própria: o primeiro é que
ela não poderia dissociar as questões umas das outras, uma vez que o seu
esforço específico consiste em atingir o todo; o segundo é que, tratando-se
duma coordenação de conjunto das atividades humanas, cada posição filosófica
determina valorações e uma adesão, o que exclui a possibilidade de um acordo
geral dos espíritos, na medida em que os valores em questão permanecem
irredutíveis (espiritualismo ou materialismo, etc.).
Na abordagem
piagetiana, o processo de constituição de uma ciência, impreterivelmente, deve
passar por uma delimitação dos seus problemas e métodos de forma precisa, para
que os mesmos não se confundam com a especulação filosófica. Neste sentido, os
problemas científicos devem possibilitar averiguações e soluções que possam ser
reproduzidas pela comunidade científica, independente de valorações e
convicções.
Outro fator
crucial para a constituição das ciências nomotéticas, em termos piagetianos,
decorre da adoção de instrumentos de verificação, que está diretamente voltada
para a delimitação do problema científico, pois envolve uma abordagem
experimental do problema, numa perspectiva sistemática de formalização dos seus
termos.
De acordo com
Piaget, é possível perceber que, historicamente, as ciências experimentais se
desenvolveram demasiadamente mais tarde que as disciplinas dedutivas. A
tendência de intuir o real e deduzir sem experimentação, de encadear relações
assimétricas ou coordenar simetrias e fazer correspondências, assim como a
dificuldade de desenvolver experiências partindo de quadros lógicos e ou
matemáticos, fizeram, ao longo da história, prevalecer a tendência de deduzir e
especular, em detrimento da necessidade de experimentação.
De modo geral, as
dificuldades próprias das ciências do homem circunscrevem problemas em torno da
adoção ou criação de métodos de pesquisa, haja vista que, em boa parte dos
casos, o objeto das ciências humanas torna difícil a experimentação, no sentido
que ela assume para as ciências da natureza, pois não temos o direito de
sujeitar o homem à experiência ou às exigências da experiência. Esta
dificuldade metodológica advém do fato de que o observador é parte da
coletividade observada; contudo, como diz Piaget:
A dificuldade é primeiramente de ordem mais geral e resulta da
impossibilidade de agir à vontade sobre os objetos da observação quando estes
se situam em escalas superiores à da ação individual: ora, este obstáculo
relativo à escala dos fenômenos não é peculiar das ciências sociais e
observa-se já nalgumas ciências da natureza, como a astronomia e, sobretudo, a
cosmologia e a geologia, que são também disciplinas históricas.
As dificuldades
metodológicas que concernem às ciências humanas giram em torno da
experimentação e da medição que se perfilam no confronto entre os dados da
experiência e sua fundamentação teórica. Não obstante, apesar de todas as
dificuldades, as ciências humanas conseguem, no plano das sucessões diacrônicas e das regulações sincrônicas, construir uma
metodologia que permite progressos significativos.
No processo de
desenvolvimento das ciências, destacadamente as nomotéticas, Piaget destaca o
último obstáculo no processo de transição de um saber pré-científico para um
científico. Este obstáculo supremo, pois é assim que ele se refere, é a
influência da filosofia sobre o sujeito cognitivo que constrói a ciência, pois
esta influência reforça ou deforma uma determinada orientação durante o
processo de investigação, podendo ocultar aspectos importantes de um fenômeno
que divergem das orientações filosóficas que norteiam uma pesquisa, podendo,
inclusive, impedir o desenvolvimento de uma ciência.
Estas influências
filosóficas e ou ideológicas podem ser bem mais amplas do que comumente
imaginamos. Em meios não favoráveis à especulação metafísica, como os países
anglo-saxônicos, o problema decorrente das relações entre as ciências humanas e
as da natureza não apresenta a mesma importância que costumam ter em países
germânicos, sensíveis às orientações metafísicas, que costumam insistir na
diferença entre as Naturwissenschaften (Ciências Naturais) e as
Geisteswissenschaften (Ciências Humanas).
Tendo em vista o
debate que se estabeleceu em torno das diferenças entre as Naturwisenschaften e
as Geisteswisschaften, Piaget expõe exemplos de disciplina que oferecem certas
dificuldades para serem classificadas como, por exemplo, a lógica.
De acordo com os
critérios piagetianos de classificação das ciências, a lógica pode muito bem
ser classificada como pertencente às ciências exatas e naturais, tendo em vista
sua dimensão axiomática e algorítmica ligada à matemática. Porém, do ponto de
vista da teoria científica, a lógica não pode negligenciar o sujeito lógico,
uma vez que sua semântica geral diz respeito a um sujeito humano. Existe, para
além da lógica do lógico, a lógica do sujeito e, neste sentido, ela se aproxima
das ciências do homem, pois a lógica dos lógicos, em última instância, não pode
se dissociar das ciências humanas, uma vez que se constitui em um prolongamento
formalizado e enriquecido das estruturas lógico-matemáticas do sujeito da
lógica.
Neste sentido, a
lógica pertence às ciências exatas, naturais e do homem e, dada a conexão que
ela estabelece entre as ciências, torna-se difícil sua classificação.
A crítica
piagetiana em relação à dificuldade de classificar as ciências gira em torno da
perspectiva linear tradicionalmente utilizada para efetuar as classificações,
pois a tentativa de situar as ciências humanas no conjunto das ciências de
forma linear, seguindo o modelo comtiano de acordo com a complexidade crescente
e generalidade decrescente, seria praticamente impossível. Por isto, Piaget
admite a existência de uma circularidade das ciências, pois, na realidade,
nenhuma das ciências pode estender-se num plano único e cada uma delas comporta
os seguintes níveis hierárquicos:
O seu objeto ou conteúdo material do estudo;
As suas interpretações conceituais ou técnica
teórica;
A sua epistemologia interna ou análise dos seus
fundamentos;
A sua epistemologia derivada ou análise das
relações entre o sujeito e o objeto, em conexão com as outras ciências.
Caso levemos em
consideração apenas os níveis B e C das ciências, a ordem linear de
classificação torna-se aceitável e a lógica abriria a classificação, porque os
logicistas não recorrem a outras ciências para sua axiomatização; porém, se
levarmos em consideração as dimensões A e D, a lógica enquanto disciplina não
pode ser desvencilhada do sujeito, pois formaliza estruturas operatórias. Desta
forma, a ordem das ciências é circular, porque diz respeito ao círculo
fundamental que caracteriza as interações entre o sujeito e o objeto. O sujeito
conhece o objeto através das suas próprias atividades, mas “só aprende a
conhecer-se a si próprio agindo sobre ele. A física é, assim, uma ciência do
objeto, mas só atinge este por intermédio das estruturas lógico-matemáticas
devidas às atividades do sujeito.”
De forma geral,
nesta abordagem, as ciências se organizam em uma espiral cuja circularidade
expressa a dialética. Neste sentido, as ciências humanas têm uma posição
privilegiada, pois são as ciências do sujeito que constroem as outras ciências.
Na abordagem construtivista
piagetiana do desenvolvimento científico não é possível distinguir, dentre os
polos subjetivo e objetivo, qual seria o mais relevante para explicar as
sucessivas construções mentais durante o processo de construção do
conhecimento, seja científico ou do sujeito, uma vez que, para esta abordagem,
todo progresso intelectual é explicado a partir da inter-relação dos referidos
polos.
Apesar de não
fixar o primado de um polo sobre o outro, o construtivismo piagetiano destaca
que a construção do conhecimento não se processa em um único plano, mas sim que
ocorre através de níveis diferenciados de interação que demandam, além da
abordagem genética do processo de desenvolvimento das ciências e do sujeito,
uma perspectiva interdisciplinar do fenômeno do desenvolvimento.
Quando se faz
referência à construção do conhecimento ou à interação, naturalmente se está
referindo a um processo que tem início e se estabelece a partir de um sujeito
ou de um conceito acerca da subjetividade. Este sujeito piagetiano será o foco
das análises do próximo capítulo. Por hora, o que se quer é destacar dois
pontos em relação à subjetividade.
O primeiro é o
importante papel atribuído à intervenção do sujeito na construção do
conhecimento; o segundo é certa homologia entre o desenvolvimento do sujeito e
o desenvolvimento das ciências, tendo em vista as ligações entre os princípios
funcionais da vida orgânica e o poder construtivo do sujeito, que se coloca
como uma condição necessária para o desenvolvimento científico.
Esta homologia
postulada por Piaget permitiu-lhe estabelecer uma concepção circular de ciência
que em última instância, possibilitaria explicar o desenvolvimento científico
pelo desenvolvimento do pensamento e o pensamento pelo desenvolvimento da
ciência.
Esta concepção de
circularidade das ciências, segundo Brandão da Luz, já estava presente em Recherche,
porém, naquela ocasião, exibia uma conotação diferente da até aqui apresentada,
pois a concepção de círculo das ciências representava um limite imposto ao sujeito
que o impedia de conhecer de forma profunda a realidade.
Nesta
perspectiva, o polo subjetivo pouco podia intervir no conhecimento científico.
O corpo das ciências constituía um círculo autossuficiente e o papel que era
reservado à filosofia consistia numa avaliação das diversas interpretações da
realidade. Esta perspectiva era fundamentalmente realista e não reconhecia ao
sujeito qualquer papel na construção do conhecimento científico. Pelo
contrário, era no polo objetivo que se garantia a construção do saber.
A guinada na
forma como Piaget entendia a circularidade das ciências, rumo à concepção de
círculo das ciências que começamos a analisar anteriormente, ocorreu pelo
contato com o pensamento de Kant, mediado pelo acesso a Brunschvicg, já em seus
primeiros trabalhos.
De acordo com
Brandão da Luz, a influência de Brunschvicg vai possibilitar ao pensamento
piagetiano um novo enquadramento, não apenas do conceito de círculo da ciência,
mas da própria teoria, pois fez com que Piaget entendesse a relevância de
trazer para suas pesquisas os problemas relativos à gênese do conhecimento,
através do relativismo crítico.
Desta forma, a
incorporação do relativismo crítico de Brunschvicg como uma interação
totalizante, que ocorre através da afirmação recíproca e simultânea do sujeito
com o objeto, fez com que a explicação das atividades do sujeito se expandisse
da esfera nuclear das ciências particulares para uma abordagem reflexiva e
regressiva de análise do conhecimento, provocando significativas mudanças na
concepção de ciência para o pensamento piagetiano e culminando em profundas
reformulações teóricas.
O círculo das
ciências, tal qual concebido por Piaget após a influência de Brunschvicg, traz
para o centro das discussões acerca do desenvolvimento do conhecimento
científico o papel importante das atividades do sujeito, reafirmando a ligação
entre a vida e a inteligência a partir do estudo das homologias funcionais
entre a vida orgânica e a atividade cognitiva do sujeito.
Sobre o círculo
da ciência, diz Piaget que
[...] longe de ser surpreendente, a existência de tal círculo, é, de um
lado, muito explicável e comporta, de outro, consequências aceitáveis, no que
se refere às duas direções essenciais do pensamento científico. Como
explicação, ele se atém ao círculo do sujeito e do objeto, inevitável em todo
conhecimento e sobre o qual Hoeffding insistiu profundamente: o objeto jamais é
conhecido senão através do pensamento de um sujeito, mas o sujeito só conhece a
si mesmo adaptando- se ao objeto. Assim, o universo só é conhecido do homem
através da lógica e da matemática, produto de seu espírito, mas não pode
compreender como construiu a matemática e a lógica, senão estudando-se a si
mesmo psicológica e biologicamente, isto é, em função do universo inteiro.
Portanto, aqui está realmente o sentido do círculo das ciências: chega à
concepção de uma unidade por interdependência entre as diversas ciências, tal
como as disciplinas opostas, nesta ordem cíclica, sustentam entre si relações
de reciprocidade.
Ao correlacionar
a formação dos conceitos científicos e as noções lógico--matemáticas com a
atividade coordenadora da inteligência, Piaget avança na hipótese do
paralelismo entre esta atividade e a própria atividade dos organismos vivos, ou
seja, na hipótese da homologia entre estas atividades.
De forma
sintética, Piaget explicava o círculo das ciências a partir das relações
existentes entre a matemática, a física e a psicologia. Segundo ele, a
matemática enquanto ciência exige muito do sujeito, pois é essencialmente
dedutiva. Já a biologia faz o movimento contrário, uma vez que é essencialmente
experimental.
Do ponto de vista
piagetiano, a matemática, apesar de existir a partir da atividade do sujeito,
está voltada para os objetos exteriores, assimilando-os ao pensamento pela
dedução. Ao contrário, a biologia submete-se a seu objeto, que é o sujeito,
seja ele enquanto ser vivo ou ponto de partida orgânico do desenvolvimento da
vida mental.
Destarte, o
objeto da biologia, em última instância, é o sujeito, que possibilita a
construção da matemática, que é concebido em sua realidade material em função
do objeto. Ou seja, enquanto a matemática faz um movimento de redução do objeto
ao sujeito, a biologia trabalha numa lógica inversa.
Para Piaget, a
matemática e a biologia representam os dois polos do círculo da ciência e
simultaneamente delimitam o seu diâmetro vertical. Já na sua bissetriz de 180°
estariam a física e a psicologia, participando do círculo de forma
complementar, ao mesmo tempo da abordagem idealista da matemática e da realista
da biologia.
Na concepção
circular piagetiana, a física, apesar da matematização que utiliza, não pode
prescindir, em linhas gerais, da experimentação. Portanto, a física se utiliza
tanto da dimensão idealista da matemática quanto da realista da biologia. Já a
psicologia se vale do realismo da biologia para explicar o aparato cognitivo. Na
expectativa de procurar entender as etapas do desenvolvimento mental, ela
procura explicar também as operações que constituem a matemática e a física,
aproveitando assim a redução idealista do objeto ao sujeito utilizada pela
matemática pura.
Segundo Brandão
da Luz, a psicologia, ao explicar os sistemas formais do pensamento a partir do
dinamismo do organismo, cria uma ligação da lógica e da matemática com a
biologia que possibilita uma epistemologia que se estabelece a partir de duas
orientações do processo, redução do sujeito ao objeto pela orientação biológica
e do objeto ao sujeito em função das explicações das noções matemáticas e
físicas do sujeito.
Certamente que a
concepção piagetiana de círculo da ciência apresenta profundas lacunas que dão
margem a uma série de críticas acerca da validade de tal constructo piagetiano.
Infelizmente, não será possível desenvolver uma explicação exaustiva e
minuciosa do círculo das ciências e das críticas decorrentes, porém é
importante salientar que o próprio Piaget também foi um crítico de seu conceito
quando o retomou, desta vez de forma mais modesta, em um trabalho desenvolvido
em parceria com o físico Rolando Garcia, ao buscar estabelecer comparativos
entre a história da ciência e o desenvolvimento infantil.
Embora o círculo
da ciência tenha sido uma bandeira que Piaget defendeu durante muitas décadas,
neste trabalho em comum com Garcia ele procurou detalhar
tendências e mecanismos do desenvolvimento que estão presentes simultaneamente
no desenvolvimento da criança e das ciências naturais.
As preocupações
epistemológicas decorrentes desta circularidade das ciências possibilitaram uma
reflexão e, ademais, uma crítica acerca das relações entre sujeito e objeto que
proporcionaram as mais variadas manifestações científicas, possibilitando,
assim, o surgimento de uma nova concepção de sujeito e, consequentemente, uma
nova concepção de psicologia científica.
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Fonte:
Fonte:
MIGUEL ANGELO SERRA DOURADO: “A
CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA TEORIA DE JEAN PIAGET: CORRELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA
E FILOSOFIA”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pesquisa e Pós-Graduação
em Educação, Faculdade de Educação (UFBA), como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. Kleverton Bacelar). Salvador,
2009.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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