LUDWIG WITTGENSTEIN



Ludwig Wittgenstein

De acordo com uma interpretação sobre Platão, a verdade, para o filósofo, era conhecida sem mediação lingüística sendo a linguagem somente um instrumento posterior ao conhecimento que serviria para comunicar o que foi conhecido. Desse modo vemos a linguagem reduzida à função de designação. Haveria um perfeito isomorfismo entre o âmbito ontológico e o âmbito linguístico, isto é, entre mundo e linguagem. Assim sendo, seria possível – e desejável – conceber um sistema perfeito de sinais que nos permitisse pleno domínio do mundo objetivo; foi o que, posteriormente, Leibniz, o predecessor da lógica contemporânea, pretendeu efetivar conduzindo todo o pensamento humano à univocidade conceitual. Tanto no Crátilo de Platão quanto nos escritos lógicos de Aristóteles, a linguagem se reduz “a um sistema convencional de sinais, usados para designar conteúdos já pensados. A procura de uma unidade da linguagem e da expressão implica sua redução à mera forma representável, paradigmaticamente, pelo Tractatus de Wittgenstein”.

Em Tractatus Logico-philosophicus Wittgenstein concebeu a linguagem como um instrumento do qual nos ocupamos para designar as coisas. Trata-se de uma concepção objetivista na qual a linguagem fica reduzida a um meio que tem a função de comunicar e designar o que já é conhecido sem linguagem. Há um dualismo antropológico (cisão entre o pensar e o falar), isso significa que linguagem e conhecimento acontecem separadamente. Primeiro se conhece algo e depois se utiliza a linguagem para comunicar esse algo, ou seja, a linguagem não é condição de possibilidade do conhecimento, mas sim um instrumento secundário.

Desse modo, Wittgenstein não faz nada mais que explicitar a teoria da linguagem desde o Crátilo de Platão: “para a metafísica clássica, o conhecimento verdadeiro consiste na captação da essência imutável das coisas, o que, precisamente, é depois comunicado pela linguagem”. Ora, se à linguagem cabe simplesmente a tarefa de comunicar, ela não contribui nem para o processo do conhecimento e o acesso à verdade do mundo, nem para a maturação do sujeito envolvido nesse processo, ou seja, para a constituição do si-mesmo.

Porém, o mesmo Wittgenstein percebeu o erro que foi considerar a linguagem desse modo,  Há quatro anos, porém, tive oportunidade de reler meu primeiro livro (o Tractatus Logico-philosophicus) e de esclarecer seus pensamentos. De súbito, pareceu-me dever publicar juntos aqueles velhos pensamentos e os novos, pois estes apenas poderiam ser verdadeiramente compreendidos por sua oposição ao meu velho modo de pensar, tendo-o como pano de fundo.

E, na seqüência, diz ele, “com efeito, desde que há dezesseis anos comecei novamente a me ocupar de filosofia, tive de reconhecer os graves erros que publicara naquele primeiro livro”. Para o escritor do Tractatus a linguagem cotidiana é uma barreira que se deve transpor para alcançar a linguagem ideal cuja estrutura corresponde à da realidade, como se uma fosse o espelho da outra.

Se, primeiramente, Wittgenstein concebe a linguagem humana, cotidiana, ambígua, como um impedimento, um empecilho não só para alcançar uma idealidade e univocidade na linguagem, mas também para alcançar a verdade, a compreensão dos fatos e, conseqüentemente, de si mesmo e dos outros, para o autor das Investigações filosóficas a linguagem é a própria possibilidade do pensamento.

No Tractatus Wittgenstein defendeu a verdade como isomorfia entre o mundo dos fatos e o do pensamento, ou seja, a identidade entre a proposição e o real ao qual a proposição se refere. Havendo equivalência, há a verdade, e, nesse sentido, a concepção wittgensteiniana muito se assemelhou ao modelo tradicional. Como Frege, Wittgenstein acreditava que, ao explicarmos a linguagem, deveríamos partir de uma semântica de dois passos: compreender o conteúdo descritivo e modalizar esse conteúdo. Dessa forma, temos, por exemplo:

A porta está fechada. (declaração);

A porta está fechada? (pergunta);

A porta está fechada! (constatação) etc... 

Todas as sentenças têm o mesmo conteúdo descritivo, o que muda é o modo como elas se apresentam, sua modalização (declaração, pergunta...). Wittgenstein no Tractatus afirma que o princípio de uma análise da linguagem deve partir da proposição declarativa, pois esta é a mais completa, por exemplo: “A porta está aberta”. A crítica da linguagem deve partir então de uma semântica transcendental.

A proposição originária da qual se derivam todas as outras é a proposição declarativa. Por ser bipolar – V (verdadeira) ou F (falsa) –, a proposição declarativa tem conteúdo descritivo de forma a possibilitar a descrição do mundo. Só há conteúdo descritivo, se for possível imaginar o seu oposto. Assim, a porta pode estar aberta ou fechada em potência, mas dizer “o círculo é redondo” é não dizer nada, pois não há conteúdo descritivo, afinal, não posso imaginar um círculo que não seja redondo.

A proposição declarativa compreende a proposição atômica (que equivale aos fatos atômicos) que gera o fato complexo (situação) que constitui a realidade. O que garante a perfeita adequação entre a proposição atômica e o fato atômico é a equivalência entre o signo simples e o objeto simples que se encontram no nível transcendental, “qualquer linguagem capaz de descrever a realidade deve ser governada pela sintaxe lógica, que é uma ‘imagem especular do mundo’”.

O que amarra a linguagem à realidade é a lógica. É no nível transcendental (lógico) que se encontra a adequação, o “espelhamento” entre proposição e fato. Assim, Frege, Russel e o primeiro Wittgenstein estão buscando a linguagem ideal, universal, a própria essência da linguagem através de uma análise lógica. No Tractatus, Wittgenstein está preocupado com a linguagem como um instrumento de dizer o que pode ser dito. O que a linguagem dá conta de dizer? Quais as condições transcendentais de possibilidade da linguagem? Os valores não estão no mundo, mas sim no sujeito transcendental, ele é quem dá sentido ao mundo.

Nas Investigações filosóficas, Wittgenstein criticou toda a tradicional teoria sobre a linguagem, inclusive sua própria concepção expressa no Tractatus. Afinal podemos fazer muito mais com a linguagem do que designar coisas já apreendidas pelo pensamento. A linguagem, desse modo, é vista como a própria condição de possibilidade do pensamento; assim, o objeto de investigação de Wittgenstein deixa de ser uma “suposta” linguagem ideal para se tornar o uso situacional que os seres humanos fazem da linguagem.

O segundo Wittgenstein percebeu na retidão da proposição fregeana, tendo sua essência determinada pelo “ajustamento” à bipolaridade (V, F), sua insuficiência, pois

o que é uma proposição é num sentido determinado pelas regras de construção da proposição (...) e, num outro sentido, pelo uso dos signos no jogo de linguagem. E o uso das palavras ‘verdadeiro’ e ‘falso’ pode ser também uma parte constituinte desse jogo; e então pertence à proposição mas não se ‘ajusta’ a ela.

O uso adequado da linguagem é verificado pelo contexto no qual se usa e por um acordo lingüístico preestabelecido em uma determinada comunidade, “as expressões lingüísticas têm sentido porque há hábitos determinados de manejar com elas, que são intersubjetivamente válidos”. Ele percebeu que tanto o sujeito quanto o predicado necessitavam do contexto de uso para atingirem sua significação, isto é, as palavras dependeriam, em última instância, de um contexto de “relação” (atuais ou possíveis). Essa foi uma de suas principais contribuições para o que se chamará, posteriormente, reviravolta lingüístico-pragmática da linguagem.

Nas Investigações filosóficas Wittgenstein afirma que o filósofo metafísico e, conseqüentemente, sua linguagem metafísica, devem “descer das alturas” para a linguagem cotidiana. A linguagem é uso da linguagem (gramática profunda), é um fenômeno público. Enquanto no Tractatus a lógica deriva de estruturas metafísicas que a linguagem tem em comum com a realidade, nas Investigações “as proposições necessárias são verdadeiras em virtude de convenções lingüísticas arbitrárias”.

Wittgenstein se pergunta sobre qual seria a forma lógica de apontar o polegar para cima. É linguagem e não pode ser dita pela lógica. Disso ele conclui que há formas de linguagens que escapam à lógica. Através dessa crítica, Wittgenstein começa a perceber a linguagem como fenômeno social: ela é seu uso e o uso é mutável. Ele passa então de uma análise semântica transcendental para uma análise pragmática da linguagem que é sua gramática profunda. 

A linguagem tem funções que extrapolam o conteúdo descritivo, ela inclui muitos outros usos de palavras além de nomear ou de solicitar um objeto, afinal, há “inúmeras espécies diferentes de emprego daquilo que chamamos de ‘signo’, ‘palavras’, ‘frases’. E essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e são esquecidos”. Para Wittgenstein a pessoa já fala entendendo o que diz, não necessitando de um pensamento que a preceda.

Nas Investigações Wittgenstein dirá que a linguagem tem uma variedade da qual o Tractatus não deu conta. “Em seu retorno à filosofia, Wittgenstein abandonou não somente o atomismo lógico, a idéia de que a possibilidade da representação calca-se na existência de objetos eternos, mas também a idéia de que a representação pressupõe um isomorfismo entre uma proposição e um estado de coisas possível”. Da pergunta o que é a linguagem? Wittgenstein passa para a pergunta como se usa a linguagem?

O modo primário em que a linguagem acontece é o uso, o modo pragmático, afinal a linguagem é um fenômeno público. “Quando falo da linguagem (palavra, frase, etc.) devo falar a linguagem do cotidiano”, afirma o filósofo. Para que se compreenda o que uma palavra quer dizer, deve-se entender como ela funciona no uso cotidiano e não procurar por uma significação única, por uma essência.

Desse modo, a necessidade a priori é descartada, pois ao perguntar-se pelo uso abandona-se a noção de essência, “se acreditamos que devemos encontrar aquela ordem, a ideal, na linguagem real, ficaremos insatisfeitos com aquilo que na vida cotidiana se chama ‘frase’, ‘palavra’, ‘signo’”. Ou seja, a linguagem da lógica (como compreendida pelo Tractatus) não é a linguagem cotidiana e o encontro de ambas é conflitivo exatamente pelo excesso de exigência da lógica,

quanto mais exatamente consideramos a linguagem de fato, tanto maior torna-se o conflito entre ela e nossas exigências. (A pureza cristalina da lógica não se entregou a mim, mas foi uma exigência.) O conflito torna-se insuportável; a exigência ameaça tornar-se algo vazio. – Caímos numa superfície escorregadia onde falta o atrito, onde as condições são, em certo sentido, ideais, mas onde por esta mesma razão não podemos mais caminhar; necessitamos então do atrito. Retornemos ao solo áspero!

Wittgenstein não está rejeitando a lógica, ele está pretendendo lhe dar maior maleabilidade, maior proximidade com a linguagem cotidiana inserindo-a, para tanto, no espaço e no tempo; se, por um lado, o primeiro Wittgenstein pressupunha um sujeito transcendental e uma linguagem ideal fora da história e do mundo, para o autor das Investigações a lógica deve inserir a linguagem no espaço e no tempo.

O que ocorre é que em cada circunstância joga-se um jogo de linguagem, e que cada palavra utilizada para referir-se a alguma coisa forma-se por características mais ou menos comuns que se sobrepõem numa “(...) rede complicada de semelhanças, que se envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanças de conjunto e de pormenor”. Desse modo não há uma essência da linguagem, pois esse jogo compreende a circunstância, as pessoas que estão envolvidas, a situação. A propósito, Wittgenstein escreve:

em vez de indicar algo que é comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que não há uma coisa comum a esses fenômenos, em virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra, - mas sim que estão aparentados uns com os outros de muitos modos diferentes. E por causa desse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de ‘linguagens’.

Essa é a explicação wittgensteiniana do conceito, não mais pela sua causa formal, por sua essência – como foi tratado em toda história da filosofia -, mas pela semelhança de coisas entre si, de forma que, quando perguntado sobre o que é a linguagem, ele responde através de exemplos. O exemplo não congela a coisa, ele é maleável, ao contrário da essência. Os casos particulares são excluídos por uma lógica das essências, e é contra isso que Wittgenstein vai se debater nas Investigações. Como exemplo, Wittgenstein usa o conceito de jogo: não há uma essência do que seja o jogo, mas sim algumas características comuns que permitem sabermos que o tênis, o xadrez e outros jogos são jogos; há algo que os une,

não por um único traço definidor comum, mas por uma complexa rede de semelhanças que se sobrepõem e se entrecruzam, do mesmo modo que os diferentes membros de uma família se parecem uns com os outros (...). O que sustenta o conceito, conferindo-lhe sua unidade, não é um ‘fio único’ que percorre todos os casos, mas, por assim dizer, uma sobreposição de diferentes fibras, como em uma corda.

Analisar o conceito não como o que especifica uma definição unívoca, mas sim como uma “rede de semelhanças” que se justifica pelo modo como é usado no cotidiano, é se desfazer da noção de essência, de idealidade, de imutabilidade da linguagem. O autor explica: “quando os filósofos usam uma palavra – ‘saber’, ‘ser’, ‘objeto’, ‘eu’, ‘proposição’, ‘nome’ – e procuram apreender a essência da coisa, deve-se sempre perguntar: essa palavra é usada de fato desse modo na língua em que ela existe?”.

A pragmática contribui consideravelmente para se pensar a linguagem, o sujeito, a compreensão do mundo, dos outros e de si mesmo, pois ela remete o sujeito à linguagem e possibilita que toda a ambigüidade que a linguagem traz consigo no uso cotidiano, seja vista não como um entrave na busca da verdade, mas como a própria condição de possibilidade da constituição da identidade.

A hermenêutica, por sua vez, explicitará o fato de que, quando se descobre algo, quando se interpreta um texto, quando se é interpelado pelo outro, ou seja, no processo interpretativo e ético, explicita-se conjuntamente o Dasein, o ser-aí do homem, e então, ao conhecer algo, se conhece também a si mesmo. Heidegger contribuiu para essa diferente forma de conceber a linguagem e, conseqüentemente o sujeito e o mundo de várias maneiras. Sua dúbia relação com Husserl – de filiação e de parricídio –; seu desvelamento da noção de logos; sua análise do sujeito como histórico e finito e, primordialmente, sua noção de linguagem como a “casa do ser”, são algumas contribuições do filósofo que interessam a essa dissertação.


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Fonte:
JAQUELINE STEFANI: “A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO EM PAUL RICOEUR: UMA PROPOSTA ÉTICA E HERMENÊUTICA”.  UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS - CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS - Dissertação de mestrado em filosofia - Professor Orientador: Luiz Rohden. São Leopoldo, 2006.

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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