Fundamentalismo Científico: uma forma de Pseudo-Ciência

Um belíssimo texto, que merece uma ponderada reflexão:

Por:
Dr. Leonardo Sioufi Fagundes dos Santos (Revista Papiro)

O termo fundamentalismo científico designa a atitude de colocar a ciência e a opinião dos cientistas como verdades incontestáveis. Seus principais representantes não são charlatões ou jornalistas que ignoram mas escrevem sobre ciência. Ao contrário, muitos fundamentalistas científicos são cientistas de renome.

A palavra fundamentalismo tem um sentido parecido com radicalismo. Fundamentalismo é a fidelidade aos fundamentos de uma teoria, ideologia ou crença. Já o radicalismo vem da palavra raiz onde esta última também tem o sentido de fundamento. Os adjetivos fundamentalista e radical são positivos se tomados etmologicamente. Mas o sentido que estas palavras tem hoje em dia é depreciativo. Ser fundamentalista ou radical significa defender uma idéia de forma estreita e irracional, sem adaptações, atacando qualquer pessoa que discorde dela. Destacam-se hoje em dia o fundamentalismo religioso, político e científico. O fundamentalismo religioso moderno caracteriza-se por uma interpretação literal de textos sagrados (Bíblia e Alcorão respectivamente para os fundamentalismos cristão e islâmico). Já o fundamentalismo político é marcado pela tentativa de aplicação de ideologias políticas e sociais por meios não democráticos como golpes de estado, extermínio de populações, sequestros de figuras públicas, etc. No fundamentalismo científico o que mais chama a atenção é a tentativa de qualificar a ciência como perfeita e desqualificar todo e qualquer conhecimento não científico.

O procedimento adotado por teólogos e cientistas políticos no combate aos fundamentalismos religioso e político é exibir os princípios respectivos de suas religiões e teorias políticas. Os cientistas e os divulgadores de ciência precisam seguir os mesmos passos para desmascarar o fundamentalismo científico. Explicando o que é ciência, desmonta-se o discurso fundamentalista. O que é ciência?

A ciência e o método científico
Sem pretensão de fornecer uma resposta definitiva, ciência é o conhecimento obtido graças ao método científico. Esta resposta pode parecer ingênua, mas ela é um lembrete de que a ciência é metódica. Embora a aplicação do método científico seja muito ampla, não existe ciência anárquica ou alternativa. Mas o que é o método científico.

Há muitas definições de método científico. Novamente sem grandes pretensões de fornecer respostas definitivas, o método científico pode ser definido como elaboração de hipóteses para explicar determinado fenômeno seguida de coleta de dados experimentais para confirmar ou negar cada hipótese. As hipóteses confirmadas formam o conhecimento científico. Para ilustrar a ciência e seu método é possível citar a ``lei da queda dos corpos'' e a "teoria atômica''.

O filósofo grego Aristóteles (séc. IV a.C.) acreditava que os corpos mais pesados caiam mais rápido que os mais leves. Já Leonardo da Vinci (sécs. XV e XVI) propôs a hipótese de que o peso não afetava as velocidades dos corpos. Era a resistência do ar que podia tornar a queda mais suave ou até sustentar um corpo. Usando este princípio, Leonardo projetou (sem construir) o para-quedas, o helicóptero e diversas máquinas voadoras. Ele também propôs uma fórmula matemática para descrever como a velocidade de queda dos corpos variava com o tempo na ausência da resistência do ar. Outro italiano, Galileu Galilei (sécs. XVI e XVII), fez diversos diversos experimentos envolvendo planos inclinados. Ele testou e confirmou experimentalmente a hipótese de Leonardo. Mas os experimentos também revelaram que a fórmula de Leonardo para a velocidade estava errada. Galileu supôs outra fórmula que os experimentos confirmaram. Galileu é considerado um dos primeiros cientistas da história, no sentido de pessoa que usou o método científico para tirar suas conclusões. Leonardo também foi um exímio observador da natureza, mas faltou a ele o rigor metódico de Galileu.

Os filósofos gregos Leucipo de Mileto e seu discípulo Demócrito de Abdera (sécs. V e IV a.C.) postularam que todas as coisas eram formadas por partículas indivisíveis, em grego, átomos. O filósofo Epicuro aperfeiçoou a filosofia atomista, mas depois que as idéias de Aristóteles se tornaram mais populares, o atomismo foi abandonado. Retomado por filósofos árabes e posteriormente por alguns alquimistas, o atomismo continuou sendo uma tese filosófica. Foi o inglês John Dalton (séc. XIX) que tratou a idéia de átomo como uma hipótese a ser testada cientificamente. Ao analisar diversos experimentos envolvendo difusão de gases em líquidos e medida da pressão em misturas gasosas, Dalton confirmou a hipótese de que toda a matéria era formada por partículas. Como os experimentos da época não revelavam que estas partículas podiam ser divididas, ele as chamou de átomos. Experimentos posteriores revelaram que a partícula de Dalton não era indivísivel. A partícula ``descoberta'' por Dalton continuou sendo chamada de átomo, mas a hipótese dela ser indivisível foi descartada.

Voltando ao tema deste artigo, o fundamentalismo científico omite a possibilidade e necessidade de experimentação e ainda a revisão das hipóteses por novos experimentos. Nem toda a hipótese pode ser testada experimentalmente. Por exemplo, supondo que Deus existe, como fazer um experimento que teste esta hipótese? A ciência não pode afirmar nem negar a existência de Deus. Questões de cunho religioso em geral não podem tratados pela ciência, nem confirmando, nem negando.

Mesmo as hipóteses que podem ser testadas nem sempre o são, seja por razões tecnológicas, seja pelo custo financeiro do experimento. Para citar um exemplo famoso, Einstein propôs os princípios do que seria o laser em 1916. Mas o experimento só pode ser realizado em 1953.

E até as hipóteses testadas e confirmadas podem ser descartadas, pelo menos parcialmente, por novos experimentos. Todo o conhecimento científico de hoje em dia ``pode'' simplesmente estar errado. Novos experimentos poderão revelar que as hipóteses se confirmaram porque os aparatos experimentais não foram tão precisos. Por exemplo, a lei da queda dos corpos de Galileu continua sendo confirmada em experimentos nas proximidades da crosta terrestre. Já a indivisibilidade do átomo de Dalton foi descartada por experimentos posteriores.

Um jornalista ou escritor que apresenta um tópico de ciência sem fazer referências aos experimentos, mesmo se tratando de fatos devidamente comprovados, não está fazendo divulgação científica. Ele está propagando o fundamentalismo científico!

Precedentes históricos do fundamentalismo científico
O fundamentalismo científico não é um fenômeno novo. O mesmo Galileu Galilei que testou tão rigorosamente suas hipóteses, tratou a afirmação de que a Terra gira em torno do Sol como uma verdade absoluta. O Papa Urbano VIII, considerado pela Igreja Católica Apostólica Romana como representante terrestre de Jesus Cristo (chamado de galileu em alguns trechos da Bíblia), entendeu melhor do que Galileu Galilei o caráter não fundamentalista do conhecimento científico. O Papa propôs a Galileu Galilei que apresentasse o heliocentrismo como hipótese que simplificava cálculos astronômicos. A visão deste papa se adequa a descrição do movimento como dependente do referencial. No referencial da Terra é o Sol que se move. Porém, o visão ampla de Urbano VIII não era a mesma dos inquisidores, mas isso é outra história...

Assim como Galileu Galilei, outros cientistas de renome assumiram uma postura fundamentalista. John Dalton rejeitou a idéia que existissem partículas menores do que seu átomo, Albert Einstein nunca aceitou os postulados da Mecânica Quântica, etc.

Fundamentalismo Científico e Pseudociência
Um dos objetivos da divulgação científica é denunciar as idéias apresentadas como sendo científicas sem serem de fato. O termo genérico dado a estas idéias é pseudociência, onde o prefixo grego pseudo significa falso. Geralmente apenas as teorias apresentadas por charlatães é classificada como pseudociência. Citando exemplos populares de teorias pseudocientíficas, a realidade é produto de nossa consciência (comprovado pela Mecânica Quântica), a água pode gravar nossos estados emocionais e o congelamento deste líquido fornece provas disso, a água em contato prolongado com ímãs adquire poderes curativos, a teoria do design inteligente, o criacionismo, a teoria da Terra Oca, a origem atlante dos povos indo-europeus, etc. Não existem provas de nenhuma destas hipóteses. E muitas pessoas desonestas lucram alto com estas ``teorias'', vendendo livros, lançando documentários, etc. Mas por que interromper este texto sobre fundamentalismo científico para falar de pseudociência ? Porque o fundamentalismo científico poderia ser classificado como pseudociência.

Ao fazerem afirmações polêmicas como ``Deus não existe'', ``a religião é prejudicial à humanidade'', ``não há vida depois da morte e nem em outros planetas'' entre outras, os fundamentalistas ficam famosos e ganham espaço na mídia. Todos os ativistas anti-religiosos se juntam a eles e a ciência é apresentada como a verdade que veio varrer todas as crenças. Em contrapartida, os fundamentalistas religiosos se aglutinam para contestar os fundamentalistas científicos e apresentam a ciência como algo diabólico. E surgem debates infindáveis onde ninguém quer ouvir, apenas falar. Explode o ódio irracional incompatível tanto com o amor pregado pela religião como pela razão defendida pela ciência. Cada fundamentalista agrada seu respectivo público. Todos ganham exceto a ciência.

Mostrar o fundamentalismo científico como pseudociência é difícil justamente porque o primeiro ataca o segundo. Eis algumas características da pseudociência que também caracterizam o discurso fundamentalista.

  • Respostas prontas para questões que sequer podem ser testadas experimentalmente, como por exemplo especulações de religiosos, dilemas filosóficos, etc.
  • Apresentação da ciência como conhecimento definitivo, ignorando-se a evolução histórica desta.
  • Omissão dos fundamentos filosóficos da ciência ou de qualquer reflexão sobre a mesma como por exemplo as apresentadas por Karl Popper, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, Gaston Bachelard, etc.
  • Apresentação idealizada de cientistas como homens sem crenças, sem ideologias, sem interesses políticos e imparciais cujo o único ponto de partida de suas declarações é a ciência.

Apesar de tudo o que foi escrito neste texto, a grande dificuldade em lidar com o fundamentalismo científico não está em sua caracterização. A tentação narcisista do cientista e do divulgador em apresentar-se como o sábio que tem as respostas é o fundamento do fundamentalismo científico. E "talvez'' a vitória sobre estas tentações sejam um dia alcançadas pela própria ciência.

*
Dr. Leonardo Sioufi Fagundes dos Santos é bacharel, mestre e doutor em Física pelo Instituto de Física da USP e pós-graduado em Matemática Pura pelo Instituto de Matemática e Estatística da USP.

É isso!

4 comentários:

  1. Faz favor Iba comprova o link à revista Papiro. Parece que já não funciona.

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  2. Traduzi este artigo ao castelhano. Podem vê-lo aquí:



    Muito obrigado

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  3. Caríssimo Emilio,

    Excelente sua tradução!

    Quanto ao site da Revista Papiro parece que está momentaneamente com algum problema de ordem técnica.

    Mais uma vez fico muito grato pela sua preciosa visita a este humilde blog.

    Saludo de Brasil.

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  4. EXCELENTE texto, IBA MENDES!

    Deus te abençoe, sempre!

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