Racismo: ideologia versus consciência histórica

"É possível que a constatada dificuldade da intelectualidade brasileira operar com o racismo enquanto categoria analítica provenha de limitações de ordem epistemológica, que se manifestam já nas tentativas de estabelecer o seu significado. Segundo Guimarães,

[...] foi a adoção de uma visão equivocada da biologia humana, expressa pelo conceito de ‘raça’, que estabeleceu uma justificativa para subordinação permanente de outros indivíduos e povos, temporariamente sujeitados pelas armas, pela conquista, pela destituição material e cultural, ou seja, pela pobreza. A transformação da desigualdade temporária − cultural, social e política − numa desigualdade permanente, biológica, é um produto da ideologia cientificista do século XIX. [...] o racismo, origina-se da elaboração e da expansão de uma doutrina que justificava a desigualdade entre os seres humanos (seja em situação de cativeiro ou de conquista), não pela forca ou pelo poder dos conquistadores (justificativa política que acompanhou todas as conquistas anteriores), mas pela desigualdade imanente entre as raças humanas (inferioridade intelectual, moral, cultural e psíquica dos conquistados ou escravizados)...

No Ocidente, as desigualdades entre os seres humanos foram constituídas de diferentes formas, com base no sexismo, na conquista, na escravidão, no colonialismo e, mais recentemente, na imigração de trabalhadores de diferentes nacionalidades para os países ricos. Ao discutir o sexismo como sendo talvez a primeira e mais duradoura justificativa de desigualdade, Guimarães apresenta uma análise que evidentemente leva em conta a temporalidade e a espacialidade na construção de relações assimétricas entre homens e mulheres. No entanto, o autor parece abandonar esses dois fatores quando se trata de analisar a desigualdade entre os grupos raciais. Datar o racismo no século XIX leva a uma imprecisão, pois, na verdade, nesse período foram sistematizadas diferenças raciais pré-existentes, por meio de um verniz de “cientificidade”, para explicar as desigualdades entre povos fenotipicamente diferentes - brancos/negros, brancos/amarelos, brancos/indígenas.

Vale notar que o primado da racionalidade capitalista intensifica o avanço da base material nas sociedades industriais, através do uso crescente do conhecimento científico na apropriação da natureza. Por meio das leis que validam o conhecimento científico é que se construirá a categoria contemporânea de raça baseada no biológico, para legitimar as desigualdades em razão das diferenças fenotípicas. O que estava em curso, portanto, era um processo de resignificação, de transmutação do racismo - um fenômeno secularmente conhecido - para o conhecimento científico. Desse ponto de vista, o século XIX, marca um ponto de inflexão nas justificativas até então conhecidas para sustentar a escravização dos não-brancos, as quais se tornaram evidentemente insuficientes para justificar a continuidade das desigualdades de tratamento dentro da ordem econômica e política liberal do pós-escravidão.

Conseqüentemente, o esforço de conceituação empreendido por Guimarães não escapa à visão predominante que admite o racismo apenas como uma criação oriunda das sociedades européias do século XIX, assim como reproduz uma visão totalizante da história, cujo ponto de partida se localiza na Europa. Nesse sentido, o chamado racismo científico, proposto pelos positivistas europeus, seria apenas mais uma modalidade de racismo, produzida em sociedades capitalistas do norte da Europa, que teve um grande impacto também no Brasil."

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É isso!

Fonte:
SÍLVIO HUMBERTO DOS PASSOS CUNHA: "UM RETRATO FIEL DA BAHIA: SOCIEDADE-RACISMO-ECONOMIA NA TRANSIÇÃO PARA O TRABALHO LIVRE NO RECÔNCAVO AÇUCAREIRO, 1871-1902". (Tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Economia sob a orientação da Profa. Dra. Lígia Maria Osório Silva). Dezembro, 2004

Nota
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A imagem em destaque não se inclui na referida tese.

Um comentário:

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