As críticas de Popper ao socialismo e ao pensamento de Marx

“Popper ao discutir o socialismo o faz quase que todo o tempo considerando a forma como Marx desenvolveu suas concepções. Desse modo é difícil fazer uma separação entre as considerações feitas pelo autor sobre o socialismo em geral e o pensamento de Marx em particular. Assim, será feita uma discussão conjunta dos dois temas.

A análise do socialismo por Popper inicia com um resumo do que seriam as principais idéias de Marx sobre o advento do socialismo. A explicação de Marx seria realizada em três passos, sendo o primeiro a análise econômica do capitalismo e a influência que ele produz sobre uma sociedade de classes, o segundo passo apresentaria o processo que leva a uma inevitável revolução social e o terceiro passo seria a predição do surgimento de uma sociedade sem classes ao final deste processo. O autor realça que Marx passou praticamente quase que todo seu tempo elaborando a explicação do primeiro passo, ou seja, a análise do funcionamento do capitalismo que levaria inexoravelmente em direção ao socialismo apresentada em O Capital. Por último o autor nos diz que acredita ser mais claro inverter a ordem de apresentação dos três passos iniciando pelo terceiro. Vamos segui-lo nesta ordem de análise.

“O desenvolvimento do capitalismo conduziu à eliminação de todas as classes, exceto duas, uma pequena burguesia e um imenso proletariado; e o crescimento da miséria forçou esta última a revoltar-se contra seus exploradores. As conclusões são: primeira, a de que os trabalhadores devem ganhar a luta; e segundo que, eliminando a burguesia, devem estabelecer uma sociedade sem classes , visto só uma classe restar”; resume assim Popper a situação inicial de análise. O autor argumenta que considera lógica a primeira dedução aceitando-se as premissas adotadas por Marx, uma classe é exploradora e dependente da outra que é explorada e independe da existência da burguesia em sua sobrevivência. Já a segunda dedução não é certa pelo fato de que só é razoável adotar que as classes terão um comportamento próximo ao comportamento de um indivíduo quando estão muito reduzidas em número, como no caso de burgueses e proletários, e quando estão em luta entre si. A consciência de classe para o próprio Marx é resultado da luta de classes e não seria razoável supor que irá se manter ao termino da luta. Popper acredita que é muito mais razoável considerar que o proletariado se fragmentará e novos conflitos se sucederão do que apontar para uma síntese dialética em que não existam mais classes. Com isso Popper não quer afirmar que o socialismo através de uma sociedade sem classes não acontecerá, mas sim procura alertar para o desenrolar mais provável no qual o surgimento de novos interesses de classe e, portanto, de novas classes depois de uma vitoriosa revolução proletária, aconteceriam.

O autor também coloca em questão a afirmação central em Marx de que o socialismo é uma decorrência inerente do capitalismo. Inicialmente Popper lembra que o capitalismo ao qual Marx se refere é a situação sócio-econômica enfrentada pela Inglaterra entre o último quarto do século XVIII e 1870. A idéia apresentada pelo autor é que dentro do quadro de inúmeras reformas que foram realizadas nas sociedades ocidentais, que poderíamos resumir sob a idéia da construção do Estado de Bem Estar Social, não podemos mais identificar as sociedades atuais com o capitalismo britânico do século XIX. Os desdobramentos do quadro de reformas e mudanças são tão amplos que eles foram, em alguns sentidos, muito além de qualquer uma da poucas formulações concretas que Marx apresentou como programa para mudanças da sociedade após a revolução. Assim, teríamos uma situação social atual na qual não mais é encontrado o capitalismo segundo os moldes apresentados por Marx para identificá-lo e na qual não é possível afirmar que surgiu o socialismo segundo estes mesmos moldes; ou seja, ao capitalismo britânico do século XIX não se seguiu o socialismo como idealizado por Marx, mas sim um novo tipo de arranjo sócio-econômico que muitas vezes busca responder a problemas sequer imaginados por Marx.

Um terceiro argumento levantado por Popper aparece ao se discutir algumas conseqüências de profecias históricas de caráter científico e suas influências no próprio decorrer da história. Deve-se aceitar uma situação na qual não exista qualquer influência de fatores morais ou ideológicos no decorrer da profecia histórica realizada por Marx, ou aceitar que é possível agir de alguma forma movido por fatores morais ou ideológicos que teriam, desse modo, influência sobre o curso da história para, ao menos, minorar as dores do parto e, por isso, se mostrariam com certa independência e capacidade de alterar os rumos da história. Popper nos apresenta dois resultados possíveis a partir destas formas alternativas de abordar o tema. Ou se acredita na inevitabilidade e na imutabilidade do decurso histórico e qualquer forma de ação visando alterar a situação concreta seria inócua, ou se acredita em certa capacidade de transformação do presente que é resultado de um decurso histórico aberto a mudança. Assim, ou surgiria uma situação mais racional no mundo através da ação humana utilizando-se de instituições planejadas para alterar a realidade em que vivemos, ainda que estas instituições operem em uma situação de incerteza e impossibilidade de saber-se quais serão todas as conseqüências de nossas ações; ou se espera que um mundo mais racional nasça da ação de forças irracionais da história. Popper ainda alerta para quanto pode ser perigoso apostar na inevitabilidade das predições históricas com o exemplo da influência dos partidos comunistas e social-democratas na Europa central e oriental frente aos problemas políticos do entre guerras, como por exemplo, o que realmente fazer ao se chegar ao poder ou como enfrentar o fascismo em ascensão.

O segundo passo na teoria de Marx é então discutido, relembrando, que uma revolução social é o resultado inevitável do funcionamento do capitalismo. Aqui Popper argumenta que não necessariamente se chegará a uma situação revolucionária ainda que se aceite a hipótese de que o capitalismo leva ao aumento crescente da riqueza da burguesia que é cada vez menor em número e ao aumento crescente da pobreza do proletariado que é cada vez maior em número. São feitas por Marx duas hipóteses a partir desta constatação, a de que todas as classes diferentes da burguesia e do proletariado desaparecerão; e de que a tensão entre burguesia e proletariado não poderá ser resolvida de outro modo que não seja uma revolução social comandada pelo proletariado.

Popper argumenta que não existe certeza aceitável de que a estrutura de classes será simplificada com o avanço do capitalismo como previa Marx. O autor oferece uma lista de novas e velhas classes que se mantém na sociedade capitalista, segundo as próprias suposições de Marx, apresentando a coexistência de burgueses, grandes e pequenos proprietários de terras, trabalhadores rurais, nova classe média, trabalhadores industriais, proletariado ralé e ainda ressalta que combinações entre estas classes poderiam fazer surgir outras estruturas diferentes. Novamente é destacado pelo autor que não é possível negar que a predição de Marx sobre a sobrevivência apenas de burgueses e proletários é possível, mas ela seria apenas uma possibilidade entre outras e essa incerteza inviabilizaria a certeza histórica de Marx afetando as predições a respeito da inevitabilidade da revolução.

Logo em seguida Popper passa a discussão a respeito da revolução social em si. Procura caracterizá-la com algo que possa ser apresentado de forma definível e não apenas como a tautológica afirmação de que a revolução social é aquela que institui o socialismo e enquanto este não advém, as revoluções que ocorrem na sociedade não são a revolução social do proletariado. O autor oferece a seguinte definição para procurar escapar da tautologia no conceito de revolução social: “a revolução social é uma tentativa de um proletariado amplamente unido para conquistar completo poder político, empreendida com firme resolução de não hesitar ante a violência, se a violência for necessária para alcançar esse alvo, e de resistir a qualquer esforço de seus adversários para reconquista da influência política”. Destaca que sua definição de revolução social possibilita que se diferencie esta de qualquer outro tipo de revolução e é razoavelmente indefinida sobre o uso ou não da violência na revolução social seguindo o modo utilizado na predição de Marx. Popper atribui grande importância à discussão sobre o uso da violência na revolução e suas conseqüências para a democracia.

Existiria uma ala radical e uma ala moderada entre os marxistas a respeito do uso da violência na revolução social. A ala radical claramente parte da idéia de que é impossível reformar o capitalismo porque a democracia seria uma mera fachada para a ditadura de classe e a superação do caos gerado pelo aprofundamento da sociedade capitalista só pode acontecer de maneira violenta. Já a ala moderada acredita que é possível utilizar os mecanismos democráticos da sociedade burguesa para reformar o capitalismo construindo instituições que, paulatinamente, caminham na direção do socialismo. As reformas seriam, para os moderados, o caminho da revolução social. Popper afirma que Marx apresenta argumentos em seus escritos que sustentam radicais e moderados em suas opiniões. Todo o problema gira em torno da hipótese de Marx de que a miséria será crescente no desenvolvimento da sociedade capitalista. Como essa hipótese é central para Marx e para ambas as alas de seu seguidores porque ela garante a inevitabilidade da revolução social, surge uma contradição entre aceitar a possibilidade de reformas sociais que caminhem na direção da solução da miséria e acreditar na inevitabilidade da revolução. O problema está no fato de que o proletariado não mais se tornaria a maioria esmagadora da população se for possível realizar reformas sociais bem sucedidas no combate à miséria.

Além da ambigüidade existente sobre o uso da violência no pensamento de Marx e na interpretação de seus seguidores existe a ambigüidade da conquista do poder. Na maioria dos casos em que partidos de orientação marxista moderada alcançam o poder através do voto, isso ocorre devido a suas posições humanitárias, a defesa da liberdade e a luta contra a opressão; o que leva segmentos de classe média a apoiá-los. Porém, como estes partidos sustentam opiniões ambíguas sobre o uso da violência, ao obterem o controle democrático do governo existe a dúvida se eles aceitarão as regras democráticas que envolvem respeito às minorias e aceitação da alternância no poder. As dúvidas derivam do fato de que a conquista do poder político pelo proletariado, como é descrita por Marx, pode envolver ou a aceitação das regras democráticas e a busca por formar governos, objetivo comum a qualquer partido dentro do regime democrático, ou a idéia de que os marxistas irão se entrincheirar no poder e utilizarão métodos violentos ou “legais” contra as minorias que façam oposição, o que destrói qualquer possibilidade de funcionamento da democracia.

Segundo Popper, a democracia depende da adesão dos principais partidos políticos a algumas regras como:

“1) a democracia não pode ser plenamente caracterizada como o governo da maioria, embora a instituição das eleições gerais seja da maior importância, pois uma maioria pode governar de modo tirânico [...] numa democracia os poderes dos governantes devem ser limitados; e o critério de uma democracia é este: [...] os dirigentes – isto é, o governo – podem ser mudados pelos dirigidos sem derramamento de sangue [...]
2) basta distinguir apenas entre duas formas de governo, vale dizer, as que possuem instituições da espécie citada e todas as outras, isto é, democracias e tiranias.
3) uma constituição democrática consistente excluiria apenas um tipo de mudança no sistema legal, a saber, uma mudança que pudesse colocar em perigo seu caráter democrático.
4) numa democracia a ampla proteção às minorias não deve estender-se aos que violam a lei, nem, especialmente, aos que incitam os demais à derrubada violenta da democracia.
5) a política de formar instituições para salvaguardar a democracia deve sempre proceder na suposição de que pode haver tendência antidemocráticas latentes entre os governados como entre os governantes.
6) se a democracia for destruída todos os direitos serão destruídos. E ainda que persistissem certas vantagens econômicas gozadas pelos governados, só persistiriam à custa de seu sofrimento.
7) a democracia oferece campo da maior valia a qualquer reforma razoável, visto como permite as reformas sem violência. Se, porém, a preservação da democracia não se tornar a preocupação principal de qualquer batalha travada nesse campo, então as tendências antidemocráticas latentes, que estão sempre presentes, pode produzir uma derrocada da democracia. Se ainda não se achar desenvolvida a compreensão desses princípios, devemos lutar por seu desenvolvimento. A política oposta pode mostrar-se fatal; pode provocar a perda da batalha mais importante, a batalha da própria democracia”.

Já a forma de agir dos marxistas pode ser caracterizada como a de fazer com que os trabalhadores suspeitem da democracia, pois o Estado é apresentado como uma máquina para a opressão de uma classe sobre outra. Segundo Popper, tal concepção resulta em:

“a) uma política de culpar a democracia por todos os males que ela não impedir, em vez de reconhecer que os democratas é que devem ser censurados, e não menos, normalmente, os da oposição que os da maioria (Toda oposição tem a maioria que merece).
b) uma política de educar os governados a considerarem o estado como não seu, mas como pertencente aos governantes.
c) uma política de dizer-lhes que só há um meio de melhorar as coisas, o da completa conquista do poder. Mas isto esquece a única coisa realmente importante relativa à democracia, o fato de que ela controla e equilibra o poder”.

Popper lembra que este modo é o caminho mais rápido para auxiliar aos inimigos da democracia e ressalta que toda essa forma de agir dos marxistas está ligada a uma questão muito anterior relacionada a tradição instaurada por Platão de analisar o problema da política perguntando: quem deve governar? Para o autor as questões realmente importantes são: como é exercido o poder do estado e quanto poder é exercido?

O passo seguinte da análise das idéias de Marx por Popper é a discussão sobre a interpretação marxista do capitalismo. O autor procura esmiuçar quais seriam as verdadeiras conseqüências dos estudos sobre economia realizados por Marx e se esses estudos sobre economia podem sustentar as opiniões que Marx emite sobre os destinos do capitalismo. Para Popper, as críticas feitas por Marx à situação econômica da Europa de meados do século XIX são totalmente justificáveis, sendo quase que impossível discordar do repúdio que Marx exprimiu àquela situação. O grande problema da argumentação marxista, porém, encontra-se no fato de que as condições materiais foram melhorando continuamente para os trabalhadores e para a população em geral. Longe de ocorrer um aumento progressivo da miséria, como é necessário para que a argumentação marxista se mantenha, a riqueza foi mais bem distribuída dentro da sociedade européia. Popper procura realizar uma crítica às principais idéias de O capital realizando análise similar a feita das idéias políticas de Marx, ou seja, mostrando que os resultados apontados como inevitáveis conseqüências do funcionamento da sociedade capitalista não são inevitáveis. Essa situação acontece porque o capitalismo que Marx analisou mudou e as mudanças ocorridas não sustentam os argumentos econômicos que indicariam a inevitabilidade da revolução social. A linha de argumento popperiana parte para apresentar que a concentração do capital nas mãos de um número cada vez maior de capitalistas é inconclusiva e não oferece suporte a suas afirmações de caráter profético. De modo semelhante, Popper também procura apresentar erros e inexatidões na teoria do valor, na teoria do mais-valia e assim sucessivamente. Ao invés de procurar apresentar os argumento de Popper, creio ser mais interessante considerar que todos eles apontam para a mesma direção indicando que os fatos não precisam se desenvolver como Marx supunha que se desenvolveriam e, na realidade, não se desenvolveram do modo que Marx supôs.

Como é fácil de aduzir, dada a concepção de Popper a respeito de como se produz conhecimento científico e sobre o modo como o conhecimento científico aumenta, é descartada toda e qualquer possibilidade de realizar profecias como as feitas por Marx. Esse é o teor das considerações desenvolvidas por Popper sobre historicismo em A miséria do historicismo. Como as predições de caráter científico são refutáveis e o conhecimento científico provisório e em contínuo aperfeiçoamento, qualquer tentativa de indicar quais serão os destinos da sociedade é anticientífica. Além de ser anticientífico, também acaba sendo antidemocrática as tentativas de construir profecias. Isto porque, como foi discutido acima, o profetismo de caráter historicista acaba se tornando justificativa para ações antidemicráticas."

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É isso!


Fonte:
Luiz Gustavo Martins Serpa: “A SOCIEDADE ABERTA E SEUS AMIGOS: O CONCEITO DE SOCIEDADE ABERTA NO PENSAMENTO POLÍTICO DE POPPER, SCHUMPETER, HAYEK E VON MISES”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Ciência Política. Orientador: Prof. Dr. Cláudio Vouga). Universidade de São Paulo. São Paulo , 2007.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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