"Como já mencionamos, nenhuma obra pode ser compreendida estando dissociada do contexto sócio, histórico e cultural em que foi elaborada. Com a psicanálise freudiana não poderia ser diferente.
Por volta do século XVlll, ganha força na Europa, especialmente na França e na Alemanha, o movimento denominado Iluminismo (em alemão Aufklärung), que teve em Kant sua expressão filosófica maior. Ele ressalta a supremacia da razão, e consequentemente, seu poder e autoridade frente às outras esferas da vida. Em sua mais famosa obra Crítica da Razão Pura menciona:
É necessário um apelo à razão para que assuma novamente a mais árdua de suas tarefas, a do conhecimento de si mesma, e institua um tribunal que a tutele nas suas legítimas pretensões, mas elimine as que são desprovidas de fundamento, não arbitrariamente, mas com base em leis eternas e imutáveis; e esse tribunal não é outra coisa senão a própria crítica da razão pura. Com essa expressão não pretendo aludir a uma crítica dos livros e dos sistemas, mas à crítica das faculdades da razão em geral (KANT apud NICOLA, 2005, p:323)
Como não poderia deixar de ser, o pensamento kantiano também faz sua passagem pela problemática da religião. Para ele, Deus existe, mas a sua existência jamais poderá ser provada pelos ditames da razão.
O Iluminismo, como o próprio nome sugere, tinha como grande objetivo iluminar as trevas, que até então caíam sobre os homens. Desse modo, sua ideologia exerceu uma grande influência nos mais variados segmentos da Cultura, como a ciência, a política, a economia e, particularmente, a religião. No plano da metodologia científica tudo passa, então, a ser submetido ao empirismo; de modo que a ciência torna-se o único veículo de conhecimento e compreensão dos fenômenos. Assim aquilo que não pudesse ser provado cientificamente, não existiria de fato.
Tratando-se da religião, o movimento iluminista tenta destronar, com toda autoridade e vigor, de uma vez por todas, o espírito teocêntrico, substituindo-o pelo espírito antropocêntrico, dominado e manipulado pela razão científica e técnica. Fazendo uso da metáfora bélica, pode-se dizer que, a guerra estava declarada: de um lado os cientificistas com todo rigor empírico e metodológico e do outro os religiosos, a insistirem na crença em um Deus soberano. David Hume, um dos grandes nomes da filosofia iluminista, publica, em 1757, a História Natural da Religião, na qual expõe uma nova visão do fenômeno religioso, pautado pelos princípios do naturalismo. A soberania e a autoridade religiosas são, pois, postas em cheque, e lançadas ante a inquisição cientificista, quase sem direito à defesa própria.
Ao ver que as coisas, que antes precisavam de Deus para sua compreensão, começam a ser entendidas em si mesmas, a reação foi de que Deus era algo inútil, substitutivo da ciência, próprio de um período de imaturidade cultural. Essa é a mentalidade que Freud bebeu na juventude. (DROGUETT, 2000, p. 95)
Não se pode dizer, categoricamente, que os iluministas eram todos ateus. Muitos deles, na verdade, eram deístas, ou seja, possuíam a crença em um Deus, mas sem a submissão aos parâmetros, normas, dogmas e exigências religiosas; para eles Deus não era um ser soberano, mas um ser presente em todas as coisas, em todos os fenômenos; a divindade poderia ser contemplada das mais variadas formas e manifestações.
[...] uma religião não revelada, não sobrenatural, chamada de religião natural ou deísmo. Voltando-se contra a religião revelada e institucionalizada como poder eclesiástico e poder teológico-político, os filósofos afirmaram a existência de um Deus que é uma força ou uma energia inteligente, imanente à natureza, conhecido pela razão e contrário à superstição. (CHAUÍ, 2003, p.264).
Tem-se, então, uma espécie de revolução na compreensão da religião e de sua influência sobre os mais diversos aspectos da vida humana.
Ao chegar à Universidade de Viena em 1873, Freud depara-se com um ambiente dominado pelos ideais iluministas. Embora alguns mestres insistissem em suas crenças e até questionassem as ideologias vigentes, imperavam os princípios cientificistas. Os mestres iluministas provocavam imenso fascínio sobre os jovens universitários, que tanto aspiravam à carreira acadêmica.
Para onde quer que o historiador olhe, ele descobre controvérsias sobre a natureza de Deus e o poder das igrejas durante as décadas em que Freud crescia, entrava para a universidade, estabelecia-se como médico, e desenvolvia a psicanálise (GAY, 1992, p.25)
Dentre os inúmeros nomes ligados ao iluminismo e que exerceram forte influência sobre Freud, podemos mencionar alguns: Spinoza, Voltaire, Diderot, Darwin , Feuerbach, todos pensadores que já haviam se dedicado ao estudo do fenômeno religioso. Dentre esses, destacamos dois especificamente; Darwin e Feuerbach. Em 1859, Darwin publica A evolução das espécies, com seus estudos sobre a seleção natural e sobre a teoria da evolução, que colocaram em cheque a doutrina religiosa, a qual explicava o universo e tudo que nele habita, como uma criação divina.
O evolucionismo além de ser uma teoria científica revolucionária, foi alçado como um estandarte na luta contra o conservadorismo religioso, ao assestar duros golpes contra doutrinas tradicionais como as da providência divina ou da bondade intrínseca da criação (DRAWIN, 2005, p.45)
A teoria de Darwin questionou as concepções mais arraigadas sobre a criação, especialmente aquela exposta no conhecido livro do Gênesis. Podemos constatar a influência darwiniana, nos escritos de Freud, especialmente no seu livro Totem e Tabu, onde utiliza o mito da horda primitiva, inspirado cientificamente por Darwin, para compreender as raízes mais arcaicas do sentimento religioso. Freud explicitamente confessa a grande admiração que tinha por Darwin.
Já Feuerbach, cujo pensamento filosófico foi marcado pelo interesse por Deus e pela religião, causou grande impacto em Freud. A seu respeito, ele declarou ao seu amigo Silberstein em 1875, "entre todos os filósofos este é o homem que mais venero e admiro" (GAY, 1989, p. 43). Não é de estranhar que nutrisse tamanha admiração por Feuerbach, afinal a essência da sua filosofia consistia em afirmar que toda manifestação religiosa não passava de uma ilusão; sendo que Deus não criou o homem, foi o homem que criou Deus. Para Feuerbach, toda consciência que o homem tem de Deus nada mais é do que a consciência de si mesmo. Não é, pois, de estranhar que defina religião como "o conjunto de relações do homem consigo mesmo, ou, melhor, com o próprio ser, considerado como um outro ser" (NICOLA, 2005, p. 367). Em sua obra mais importante, "A essência do Cristianismo", publicada em 1845, Feuerbach expõe a relação da imagem de Deus com o intelecto humano; "como pensas Deus assim pensas a ti mesmo" (FEUERBACH, apud NICOLA, 2005, p.368). Ainda sobre o pensamento desse filósofo Marilena Chauí resume:
No século XIX, o filósofo Feuerbach criticou a religião como alienação. Os seres humanos vivem, desde sempre, numa relação com a natureza e, desde muito cedo, sentem necessidade de explicá-la e o fazem analisando a origem das coisas, a regularidade dos acontecimentos naturais, a origem da vida, a causa da dor e da morte, a conservação do tempo passado na memória e a esperança de um tempo futuro. Para isso, criam os deuses. Dão-lhes forças e poderes que exprimem desejos humanos. Fazem-nos criadores da realidade. Pouco a pouco, passam a concebê-los como governantes da realidade, dotados de forças e poderes maiores dos que os humanos. (CHAUI, 2003, p.264)
Eis, portanto, a síntese da construção filosófica de um dos pensadores, cuja influência sobre o estudo freudiano do fenômeno religioso, é inegável. Veremos, posteriormente, como a construção freudiana acerca das ilusões religiosas se assemelha a essa postura de Feuerbach.
Desse modo, entendemos que é exatamente no período em que Freud se debruça sobre a elaboração da teoria psicanalítica que explode, sob a pressão do Iluminismo, o movimento humano de libertação das amarras religiosas. É aqui que o apogeu da ciência positivista declara a inexistência de um ser superior e põe em cheque qualquer crença que se oponha aos seus parâmetros. Sendo assim é atribuída à religião uma significação de origem repressora, aprisionadora e até castradora. O simples ato da crença passa então a ser percebido enquanto um empecilho ao desenvolvimento da razão e, conseqüentemente à construção científica. As respostas para os mais diversos enigmas da vida, que durante a Idade Média, eram buscadas e encontradas no contexto místico-religioso, são agora dependentes da luz da razão, cabendo ao homem responder a tudo. Sendo assim a religião passa a ser vista sob a perspectiva crítica: deixava o homem em total ignorância e impedia o avanço científico e tecnológico. A respeito dessa crítica Eugenio Trias (2000, p:113) analisando o papel da razão iluminista, escreve: "A religião, na medida em que é cobaia da razão, é conduzida até o tribunal da ciência, da razão (ou da genealogia da vontade de poder), com o objetivo de ser examinada, interrogada, experimentada e questionada".
E prossegue em sua análise:
Toda a riqueza e variedade da experiência religiosa e dos “jogos lingüísticos” por ela promovidos é então reconduzida, seguindo sua inconsciente verdade, até essa via de mão única que, de maneira autoritária, se estabelece em tais discursos da razão exclusiva. (op.cit.)
Os ideais iluministas, sem dúvida, fizeram parte da formação do cientista Freud, instigaram-no para a pesquisa, sendo que suas marcas e indícios parecem estar presentes em toda sua obra. Conforme Drawin (2005, p.36) "a influência cientificista na formação e na obra de Freud salta aos olhos". Tamanha influência aparece em vários dos seus escritos acerca da religião, porém, de modo mais nítido e veemente, em dois deles: O futuro de uma Ilusão (1927) e, uma das Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1933) denominada A questão de uma Weltanschauung. Nesses escritos, podemos constatar de maneira mais nítida, a grande influência que a ideologia cientificista exerceu sobre o pensamento de Freud, posicionando-o, na linha de frente, contra os ideais religiosos e a favor da ciência. Posteriormente retomaremos a temática da influência positivista sobre o pensamento freudiano; incluindo um comentário mais detalhado sobre essas obras.
Estamos cientes de que Freud foi marcado pelos ditames da ciência positivista de sua época, em busca da compreensão do aparelho psíquico, mas essa não foi, de modo algum, a única influência a qual recebeu ou que esteve sobre ele. Que Freud foi um filho do iluminismo por ter absorvido muitos dos seus ideais, especialmente a crítica à religião, não resta dúvida. "É muito compreensível, portanto, que, sob vários aspectos, Freud possa e deva ser considerado como um verdadeiro Aufklärer. O seu espírito iluminista transparece do modo como olha a razão, concebe a ciência e critica a religião" (ROCHA, 1994, p.466).
Todavia não podemos deixar de mencionar que ele também foi um crítico desse mesmo movimento, quando descobriu que a maior parte da vida psíquica é inconsciente e que a razão não tem tanto controle assim, como se pensava. De acordo com Rocha (1994, p.466) "... este filho da modernidade é igualmente um dos seus críticos. [...] quando descobre que grande parte da vida psíquica tanto das pessoas sadias quanto dos doentes mentais é regida por forças que não são controladas pela razão". Tal descoberta lhe custou caro e colocou a psicanálise sob a feroz crítica dos cientistas mais arraigados. De certo modo, Freud subverteu a cultura filosófica de seu tempo ao declarar que a razão, na verdade, não domina todas as instâncias da vida psíquica. O feixe de luz da razão, até então venerado, não conseguia anular a importância que tinha o lado sombrio do psiquismo, sobretudo na elucidação do conflito psíquico que estava na base dos distúrbios e das doenças psíquicas. Nas palavras do próprio Freud (1917, p. 336): "o ego não é senhor nem mesmo da sua própria casa".
No que diz respeito à religião, especificamente, o que nos chama a atenção em Freud, é o fato de que mesmo sob a influência cientificista de sua época, conseguiu dar um passo à frente, elaborando a teoria psicanalítica, demonstrando independência de tal influência. O que fica inquestionável em Freud é a sua grandeza em ser um filho do seu tempo e, igualmente, um homem além do seu tempo.
Acreditamos que a partir de seu tempo e de sua vida, Freud começou a tecer sua construção sobre o estudo da religião em toda complexidade e grandeza, ou mesmo, foi sob essas influências que ele pôde elaborar seus possíveis discursos utilizados na elucidação de tão importante tema.”
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É isso
Fonte:
Karla Daniele de Sá Araújo Maciel: “O PERCURSO DE FREUD NO ESTUDO DA RELIGIÃO: Contexto histórico e epistemológico, Discursos e Novas Possibilidades. (Dissertação entregue ao Mestrado em Psicologia Clínica, da Universidade Católica de Pernambuco, como requisito à obtenção do título de Mestre em Psicologia. Orientador Profº Drº Zeferino de Jesus Barbosa Rocha). Universidade Católica de Pernambuco. Recife, 2007.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Freud e o cientificismo de sua época
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