A Lei Natural segundo Agostinho

“Segundo Agostinho, o homem só pode conhecer a normatividade expressa na lei eterna porque ela está impressa em seu espírito na forma de lei natural. Sendo assim, não seria errado afirmar que da universalidade da “lex aeterna” sobre a obra criada emerge com toda limpidez a lei natural, que ordena intimamente o criado e, por isso mesmo, deriva da lei eterna. Aliás, não existe nada que seja bem regulado na ordem universal ou na ordem mundana que não traga em si o espírito da lei eterna. A este respeito nos diz Agostinho: “... na lei temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna”. Como se vê, são dois domínios de ordens, a saber, a ordem natural regida pela lei natural e a ordem da conduta humana regida por uma lei temporal, de modo que o homem deve agir conforme a lei a fim de que a ordem seja conservada (conservatus).

Vale lembrar que Agostinho não confunde a “ordem natural” com a “ordem sobrenatural”, ainda que ele passe de uma ordem à outra. A afirmação de que a “lex aeterna” reflete-se na natureza criada, especialmente na alma racional, caracterizaria no limite o dinamismo próprio da hierarquia cosmológica, tal como nosso filosofo concebe. Com efeito, o caráter dinâmico da cosmologia agostiniana e a sua concepção de uma ordem rigorosamente racional apontam para uma diferença de grau em cada ser. O degrau inferior aponta para um superior no qual se encontra sua causa e regra de ser. “Cada degrau proclama que ele mesmo não é sua própria causa nem sua regra de ser”. Ademais, cada degrau é também signo de uma causa que lhe é superior e assinala precisamente que sua causa deve ser procurada em outro degrau acima dele. Num movimento dinâmico, de degrau em degrau, necessariamente ascende-se, consoante as imperfeições cada vez menores, até a perfeição suprema, coincidindo com o bem supremo, com a verdade suprema.

De fato, cada ser está ordenado no nível a que pertence, mas este nível sempre remete ao princípio de ordenação, princípio que cada bem particular não pode por si mesmo conter. De modo análogo, há uma hierarquia estabelecida entre a lei natural e eterna – esta constitui a verdadeira lei, isto é, lei das leis. Dessa Lei deriva tudo o que é justo e legítimo.

Dado que Agostinho não confunde as ordens, então, conseqüentemente, ele também não confunde a Lei eterna com a lei natural. Esta difere daquela, pois a lei natural remonta à criação da criatura e, conseqüentemente, ela principia no tempo, na criação. Não obstante, a lei natural é imutável, embora não seja eterna. Ela é imutável porque não repousa sobre convenções estabelecidas pelos homens, mas repousa sobre a própria natureza.

Com base nisso, pode-se afirmar que a lei natural trás em si o princípio de justiça, que é o princípio segundo o qual se ordena dar o que é devido a cada um. Vale dizer ainda que, a criação é ordenada a partir de um princípio sumamente justo, que é a lei eterna. Esta expressa a norma de seu legislador. Em outros termos, a lei aqui é ordem, “emanação”
da vontade divina.

Sabemos isto: a lei eterna ordena a criação. Ora, a lei natural reflete a lei eterna na ordem natural. Logo, a lei natural reflete o princípio de justiça da lei eterna.

Como se pode concluir, a lex naturalis é condição que possibilita ao homem a justiça interior à medida que ordena harmonicamente o homem consigo mesmo, com a natureza e com Deus. Dessa maneira, o homem participa da lei eterna pela lei natural. Disso se segue que, estando dependente de algo exterior, a saber, a lei eterna, a alma racional não faculta a si mesma a justiça. Pelo contrário, entendemos que a alma racional humana participa da justiça à medida que participa racionalmente da ordem universal estabelecida pela lex aeterna.

Dado que a alma racional seja incapaz de conceder a si mesma a justiça, pois ela é transcendente, como sabemos o que seja o justo? Além do mais, como determinar qual ordenamento efetivamente justo de acordo com a natureza? Estas questões fundamentais não visam outra coisa senão compreender como o homem sabe o que é justo. Certamente é com base em uma regra externa a natureza humana que auxilia no discernimento do que
seja o justo natural.

Estamos prontos a admitir que haja uma ordem inscrita na natureza. Entretanto, uma coisa é admitir existência da ordem, outra é poder conhecê-la e derivar dela um ordenamento efetivamente justo. Segundo compreende Agostinho, a alma racional não vê a ordem natural de maneira clara, mas a vê de maneira tortuosa, confusa e opaca. Ver a ordem natural depende de certo movimento que podemos caracterizá-lo como a condição a partir da qual se pode compreender o que seja a ordem natural. Mas qual é essa condição que possibilita o acesso à ordem natural e, por conseguinte, à lei natural?

Em primeiro lugar devemos dizer que Agostinho não busca um conhecimento especulativo da natureza externa ao homem, muito pelo contrário. Ele visa o conhecimento de si mesmo - “Nosce te ipsum”.108 Este é o ponto de partida de Agostinho, isto é, ele parte da interioridade para estabelecer a condição possível para o conhecimento da ordem natural e da lei natural.

De fato, o conhecimento de si mesmo o conduziu a perceber pela intuição interior de si mesmo uma luz imutável que se encontra acima da alma racional. Uma Luz que ilumina o intelecto a fim de que este possa descobrir a ordem natural de cada ser criado. Não há dúvidas de que o “conhece-te a ti mesmo” é, para Agostinho, um preceito dado à alma racional para que ela saiba o que é. E ao saber o que é, viverá de acordo com sua verdadeira natureza. Viver segundo a natureza é, nas palavras do filósofo, deixar-se “... governar por aquele a quem deve estar sujeita, e acima das coisas que deve dominar. Sob aquele por quem deve ser dirigida e sobre aquilo que ela deve dirigir.” É no conhecer a si mesmo que a noção de justiça vem à tona. Isto é, a própria natureza aponta para essa prova: Deus manda no homem, a alma manda no corpo, a razão manda na libido e nas demais paixões. Eis o que ele denomina como “verdadeira justiça”.

Agostinho argumenta que sabemos o que seja o justo não porque vemos corpos justos, como vemos um corpo branco, preto, quadrado ou redondo. Se não é por ver corpos justos que sabemos o que é o justo devemos afirmar que somente a alma é justa, de modo que “quando se afirma que um homem é justo, afirma-se a respeito da alma e não do corpo” . Conseqüentemente, a justiça é “certa formosura (da alma) que faz as pessoas parecerem belas, ainda que os corpos sejam por vezes disformes e aleijados”. Como a justiça não tem relação com o corpo, segue-se que, é na alma racional humana em si mesma que conhecemos o que seja o justo.

A noção de que “é justa a alma que segundo os ditames da ciência e da razão dá a cada um o que lhe pertence, na vida e nos costumes” não tem origem no conhecimento sensível ou por uma imagem produzida ao ouvirmos esta definição. Segundo Agostinho, esta é uma noção impressa em nós mesmos como algo sempre presente. O problema que se impõe, no percurso dessa dissertação, é saber: o que possibilita aos homens ver em si mesmos o justo, a despeito de não serem justos?

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É isso!

Fonte:
Wanderly Alves de Sousa: “ARTICULAÇÃO ENTRE JUSTIÇA DIVINA, NATURAL E CIVIL EM AGOSTINHO”. (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre do Curso de Mestrado em Filosofia do Setor de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador (a): Prof.ª Dr.ª Isabel Limongi Co-orientador: Prof.° Dr° Alfredo Carlos Storck). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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