Um pouco da história dos MUSEUS DE CIÊNCIA

Museus: trajetórias entre o templo das musas e a prática social

"Museu palavra latina de origem grega Mouseion, que significa o templo das nove musas que denominavam os diferentes campos das artes e ciências, mas que também está relacionada à Mnemousine, divindade da memória, que era, junto com Zeus, mãe das nove deusas. Ao se buscar no dicionário Aurélio (Dicionário Aurélio Século XXI, versão 3.0 – novembro de 1999) o significado da palavra museu, além da indicação etimológica da palavra, tem-se sua descrição como:

Qualquer estabelecimento permanente criado para conservar, estudar, valorizar pelos mais diversos modos, e, sobretudo, expor para deleite e educação do público, coleções de interesse artístico, histórico e técnico. (DICIONÁRIO AURÉLIO, 1999) 25.

Desta descrição pode-se destacar que um museu é um local que inclui desde a perspectiva preservacionista (conservar e valorizar, interesse artístico, histórico e técnico), passando pela científica (estudar, interesse histórico e técnico) e indo até atividades lúdicas e de transmissão de conhecimentos (deleite e educação). Ou seja, na atualidade uma instituição museal se apresenta como espaço para a investigação, salvaguarda de bens, fruição cultural, conhecimento ou aprimoramento deste e lazer, oferecendo um leque variado de possibilidades de apropriação, percepções e significados.

O uso da terminologia museu somente foi retomado26 no século XV, período em que, devido à expansão marítima européia e ao Renascimento, que propiciaram novas concepções científicas e humanistas - ou releitura de antigas idéias. Neste período houve uma grande mudança no olhar trazido pela revelação ao "velho mundo" do "novo mundo". Isso que dizer que, as novas descobertas ultramarinas que indicavam a existência de outras culturas / outros povos, tiveram como conseqüência um incremento às coleções principescas e/ou a iniciativa de criação de várias coleções.

Durante o expansionismo europeu teve início uma onda colecionista, que passaria a ser prática corrente e incluía desde obras de arte da antigüidade e da produção artística da época (financiadas por mecenas pertencentes à nobreza) até objetos / artefatos ("tesouros") e curiosidades vindas das expedições às Américas e à Ásia. Muitas destas coleções tinham como motivação simbolizar poder econômico e político ou mesmo tentar simular a natureza vista e relatada pelos viajantes, estas últimas eram aquelas formadas por estudiosos que reuniam em sues gabinetes de estudo grande numero de espécies (animais e vegetais) coletadas e de objetos trazidos das expedições. Estas coleções eram também denominadas de gabinetes de curiosidades. Depois de algum tempo as coleções iniciaram um processo de especialização, e passaram a ser organizadas seguindo os critérios ditados pelas concepções científicas que vigoravam entre os séculos XVII e XVIII. Neste sentido, deixava-se de lado uma função de curiosidade e passava-se a uma proposta de investigação científica pragmática e utilitária.

Grande parte destes, então denominados, museus se transformaram, a partir do século XIX, em museus conforme concepção atual, pois, em sua origem não havia visitação pública, e a possibilidade de fruição somente era permitida a alguns poucos: o próprio colecionador e aqueles que lhe eram mais próximos / íntimos. Michael M. Ames traça, assim, um quadro desta situação e sua evolução paulatina em relação ao acesso para pesquisas:

A few hundred years ago in European countries scholarship and museum collections were restricted to a few people, typically only members of the ruling classes or gentry. Public access to writings and works of art was strictly limited to distant viewing in formal institutions such as cathedrals or on formal royal occasions. (...) Many collections of natural and cultural materials began as private trophies, curiosities, and booty of the wealthy; other collections were religiously inspired and were used by the churches more for veneration than for study. (AMES, 1992: 16).

Muitos foram os antecedentes que influenciaram a criação de museus no sentido em que atualmente são compreendidos: a invenção da imprensa, a expansão da educação, o incremento da importância das classes médias, o desenvolvimento da democracia, as recentes buscas por preservação de bens culturais que diziam respeito à uma memória coletiva, a ampliação e crescente complexificação das coleções de artefatos / objetos advindos das colônias européias. Todos estes fatores contribuíram para que se institucionalizassem os antigos gabinetes de curiosidades como espaços acessíveis ao grande público. Cabe ressaltar que, este acesso vai se ampliando paulatinamente durante vários anos até chegar ao século XX. Ainda segundo Ames, naquela mesma publicação, esse fato é perceptível quando se observa que nos dois séculos anteriores havia complicados quadros de horários de funcionamento e muitas restrições ao acesso que serviam muito mais para bloquear a entrada do público do que para permitir sua entrada. Um acesso mais abrangente somente ocorrerá a partir do século XX.

A consolidação deste sentido em que se emprega o termo museu na era moderna ocorre no século XIX, período de apogeu destas instituições e em que, na Europa, muitas foram criadas, tais como: Museu Britânico (Inglaterra), Belvedere (Viena), Museu Real dos Países Baixos (Amsterdã), Museu do Prado (Madri), Altes Museum (Berlim) e Museu Hermitage (São Petersburgo).

Para os estados nacionais que se instituíam neste período, a criação desses museus tinha como pressuposto demonstrar sua legitimidade, em termos simbólicos, indicando o sentido de antigüidade de sua existência enquanto povo / nação. Outro ponto crucial na institucionalização dos museus, dentro da acepção moderna do termo, é que suas coleções (incluindo botânica, zoologia, mineralogia, etnografia, arqueologia), além de demonstrar sua origem remota enquanto um povo / uma nação única, também serviam para apresentar os acervos adquiridos pelas expedições científicas durante viagens às colônias recém descobertas.

É também no século XIX que, no Brasil, surgem os primeiros museus e os primeiros trabalhos de caráter mais etnográficos, cuja perspectiva era predominantemente colecionista. O primeiro museu brasileiro a ser criado foi o Museu Real (atualmente Museu Nacional da Quinta da Boa Vista), em 1818 por D. João VI, então rei de Portugal, quando da transferência de sua corte para o Brasil. Em fins deste mesmo século destaca-se a criação de outros dois museus – o Paraense Emílio Goeldi e o Paulista (hoje Museu do Ipiranga). Estes dois e o Museu Nacional se caracterizavam pelo alinhamento da perspectiva de investigação em ciências naturais, pela coleta, estudo e exibição de objetos e pelas pesquisas de caráter essencialmente enciclopédico. Esta tríade institucional teve papel importante em relação à preservação da "riqueza local e nacional" bem como em relação à produção intelectual e científica do País, muito ligada a uma interpretação evolucionista e que muito contribuíram para a divulgação das teorias raciais, em voga na época. Este caráter evolucionista e de difusão de teorias raciais ainda perdurou com grande força e com igual ênfase, principalmente, até as duas primeiras décadas do século seguinte, perdendo o vigor somente no período do pós-guerra. A perspectiva destes museus era “encontrar em culturas afastadas exemplos de estágios mais atrasados que comprovassem uma infância da civilização.” (ABREU, 2005: 106).

Cabe destacar que, foi durante o primeiro quartel do século XX, quando da criação do Museu Histórico Nacional, que ocorreu uma grande modificação na proposta museal que até então vigorava. A instituição desse museu traz em seu bojo o rompimento com a tradição anterior e introduz um novo modelo de museu dedicado à história e à pátria e que objetivava a formulação, por meio da cultura material, de elementos que conjugassem uma idéia de nacionalidade. Este período é marcado por uma forte movimentação dos profissionais ligados a museologia brasileira e este novo modelo de museu, que foi repassado para outras instituições museais, incrementou as possibilidades para a área tendo como uma das conseqüências a instalação do curso de museus por Rodrigo Barroso, quando diretor do Museu Paulista (SANTOS, 2004: 56)29. O ponto de vista dessa época era que a instituição museal tinha como destino veicular e legitimar a "história oficial" e, para tanto, deveria ser mais que um espaço de produção de conhecimento e sua proposta institucional deveria conter a perspectiva de ser um local para educar o povo e promover a integração e coesão social.

Durante as cinco primeiras décadas do século passado foram realizadas grandes expedições no Brasil com a finalidade de recolha de objetos dos povos indígenas financiadas ou realizadas parcialmente por grandes museus estrangeiros. Uma outra finalidade destas expedições era documentar materialmente, por meio dos artefatos coletados, culturas que estavam em extinção visando posterior estudo das mesmas. Estes bens culturais tinham como destino os acervos dos museus então existentes, pois, conforme Abreu destaca, “apreender o exótico era, antes de tudo, salvar o que irremediavelmente se perderia; daí a significação de relíquia ou de testemunho, expressos pelo recolhimento de artefatos.” (ABREU, 2005:107).

Cabe destacar que, o trabalho antropológico destas primeiras cinco décadas era, em sua quase totalidade, financiado pelas instituições museais, uma vez que a antropologia não se encontrava institucionalizada frente a órgãos de fomento à pesquisa científica e as organizações de vertente mais antropológica, exceto museus, eram ainda incipientes. Assim, os trabalhos etnográficos que se realizavam nestas expedições eram, em sua maioria, fruto de pesquisas com recursos dos museus (advindos de parcerias com instituições do exterior), que tinham em contrapartida a incrementação de seus acervos com objetos trazidos, principalmente, de tribos indígenas. No final desta fase, a prática de colecionismo não se reduzia a objetos indígenas e com o advento dos estudos da arte e cultura popular, outros tipos de objetos também passaram a ser alvo dessa prática com o intuito de registrar uma alteridade mais próxima (não tão distante / diferente): artefatos dos sertanejos, objetos relacionados aos grupos afro-brasileiros e ao folclore. Com essa inclusão de novos tipos de objetos a serem coletados, surgem no Brasil museus que têm como objetivo o registro das tradições populares.

Exemplo deste tipo de instituição é o Museu do Folclore Edison Carneiro (criado em 1968), que propunha uma contextualização dos objetos museais, que objetivava propiciar a compreensão do contexto social no qual o artefato foi produzido seguindo a proposta expositiva de Franz Boas, muito prestigiada neste período ainda que não tenha sido elaborada teoricamente em nenhum de seus escritos.

Contudo, até meados do século XX, ainda perpassava nos museus, mesmo que de modo mais brando e mais em museus de caráter menos etnográfico, a idéia de representação de uma unidade nacional, o museu ainda representava um discurso único que impossibilitava ao visitante se identificar com o que via, ou seja, o público era pouco mais que um expectador. A partir do final dos anos de 1960, os museus passam para segundo plano, enquanto local de produção científica. Nesse período, ocorreu, no Brasil, a institucionalização e a criação de departamentos das ciências sociais nas universidades, bem como a fundação de organismos de fomento à pesquisa científica. Como conseqüência da diminuição do ingresso de novos objetos nas coleções museológicas, da impossibilidade de interpretação dos significados das coleções pelo público, da idéia de discurso coletivo único e do fato de que os estudos sobre cultura material perdem sua fluidez, os museus sofrem inúmeras críticas de diversos setores e passam a ser vistos como algo a ser superado. Myriam Sepúlveda dos Santos ao realizar um mapeamento geral sobre os museus do Brasil comprova esta crítica relativa aos museus:

Ao longo da década de 1970, foram correntes as críticas, oriundas dos mais diversos campos do saber, aos museus. Dizia-se que os museus representavam os lugares das histórias oficiais, do autoritarismo das elites ou ainda das sociedades sem história. (SANTOS, 2004: 53).

Durante estas duas décadas, entre 1960 e 1980, houve uma mudança de perspectiva dos museus que, influenciados pela prática reflexiva que predominava as áreas das ciências humanas, incluindo a antropologia, no mesmo período e/ou sob os auspícios da Nova Museologia, que propiciou um deslocamento do olhar: de uma alteridade cristalizada, elaborada dentro de um ponto de vista ocidental moderno, para uma alteridade máxima, que vinha a tona pelo auto-retrato que o outro fazia de si mesmo. Esta possibilidade se torna factível a partir das experiências dos museus etnográficos instituídos e gerenciados pelos próprios indígenas. Nesta perspectiva, Abreu destaca que:

De outros do discurso antropológico e museológico, estes representantes de povos indígenas passaram a sujeitos do próprio discurso, evidenciando um processo de construção de alteridade mínima nos museus. (ABREU, 2005: 113 – grifos da autora).

No bojo das transformações relativas ao campo museal, ocorridas nos últimos anos do século XX e no início desse século, a saber: Nova Museologia, ampliação conceitual de patrimônio cultural, deslocamento do olhar museológico, globalização econômica e cultural, os museus passaram a ser compreendidos não mais como locais de guarda de relíquias, mas como peças centrais no panorama político e sócio-cultural dentro e fora do Brasil. Segundo Romero Tejada:

(…) museos en tiempos recientes han dado un viraje que le está separando progresivamente de la sacrosanta relación que les ligaba a las expresiones materiales de la cultura, para dar a conocer por fin otros aspectos, todos también muy significantes, de esa misma cultura, y aunque no pueden abdicar de su deber de memoria sobre los bienes patrimoniales, deben encontrar caminos originales que le permitan abarcar la totalidad cultural que hoy inspira al patrimonio. (ROMERO DE TEJADA, 2005: 05).

A percepção sobre museu se transforma para além da concepção de um local de práticas sociais complexas relacionadas com passado, presente e futuro, passa a ser visto como centro conectado à criação artística e científica, comunicação, produção de conhecimento e preservação da memória (bens e manifestações culturais) não apenas de um grupo social, mas de toda a diversidade social e cultural.

Hoje, os trabalhos nos museus não se restringem a facilitar o acesso do público, mas também se direcionam ao incentivo às pessoas a freqüentá-los. Atualmente são seus objetivos, dentre outros, tornar-se atrativo para o público, a proporcionar a possibilidade de representação dos vários e variados grupos da sociedade e buscar por mecanismos e instrumentos que possibilitem abranger os múltiplos aspectos do patrimônio e da diversidade cultural.”

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É isso!


Fonte:
SANDRA MARTINS FARIAS: “ANTROPOLOGIA E MUSEUS – RECIPROCIDADES: O CASO DO MUSEU DO ÍNDIO". (Trabalho apresentado ao Programa de Pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Antropologia. Orientador (a): Profa. Dra. Ana Lúcia Modesto Área de concentração: Antropologia Social). Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Belo Horizonte, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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