Nina Rodrigues e suas teorias sobre "raça humana"

O texto, postado a seguir, foi extraído do livro “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, escrito em 1894, por Raimundo Nina Rodrigues, que nasceu no Estado do Maranhão, na cidade de Vargem Grande, em 4 de Dezembro de 1862, filho do coronel Francisco Solano Rodrigues.

A obra foi resultado de sua experiência como professor de Medicina Legal, e nela o autor esmiúça suas pesquisas sobre “raças humanas”, defendendo a Eugenia como mecanismo para o “melhoramento da raça brasileira”.

O trabalho de Nina Rodrigues insere-se no contexto histórico de ascensão do famigerado Darwinismo Social, com destaque para os conhecidos autores ingleses: Francis Galton, Herbert Spencer, Thomas Huxley e Charles Darwin.

A obra em si, embora sem nenhum valor científico e totalmente carregada de racismo, serve-nos como referência histórica acerca de uma ideologia que ao seu tempo fora cultivada por grandes intelectuais, que se viam como a “nata da sociedade” ou aqueles que, no processo evolucionário, alcançaram seu máximo grau.

Para melhor entendimento do texto, adaptei a ortografia aos padrões mais modernos da nossa língua, uma vez que o texto original encontra-se no padrão ortográfico da época em que foi escrito, ou seja, fim do século XIX.

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CAPITULO I
"CRIMINALIDADE E A IMPUTABILIDADE Á LUZ DA EVOLUÇÃO SOCIAL E MENTAL"

I. A concepção espiritualista de uma alma da mesma natureza em todos os povos, tendo como conseqüência uma inteligência da mesma capacidade em todas as raças, apenas variável no grau de cultura e passível, portanto, de atender mesmo num representante das raças inferiores, o elevado grau a que chegaram as raças superiores, é uma concepção irremissivelmente condenada em face dos conhecimentos científicos modernos.

Não são tão simples e contingentes as causas do pé de desigualdade em que se apresentam na superfície do globo as diversas raças ou espécies humanas, que disputam a sua posse. Ao contrario, ela reproduzem no espaço, com mais ou menos fidelidade, os estádios ou fases, por que no tempo e sob a pressão de causas inexoráveis e poderosas, passou o aperfeiçoamento evolutivo daquelas grupos antropológicos que conseguiram triunfar pela adaptação e ocupar a vanguarda da evolução social.

Também, suprindo a insuficiência do exame subjetivo, tão caro á metafísica espiritualista, a análise objetiva dos fenômenos psíquicos, iluminada pelos princípios da evolução biológica, veio demonstrar que a inteligência humana tira as suas raízes genealógicas, muito longe e bem em baixo, do atomatismo reflexo dos amimais inferiores.

O aperfeiçoamento lento e gradual da atividade psíquicas, inteligência e moral não reconhece, de fato, outra condição além do aperfeiçoamento evolutivo da serie animal.

Simples funções orgânicas, pressupõem e têm elas o seu substractum material e anatômico no gradual aperfeiçoamento e crescente complicação de textura de um sistema orgânico, o sistema nervoso.

Mas na serie animal as complicações crescentes na composição histológica ou bioquímica da massa cerebral só se operam com o auxilio da adaptação e da hereditariedade, de um modo muito lento e no decurso de muitas gerações. Assim tambem, os gráos sucessivos do desenvolvimento mental dos povos.

Não só, portanto, a evolução mental pressupõe nas diversas fases do desenvolvimento de uma raça, uma capacidade cultural muito deferente ,embora de perfectibilidade crescente, mas ainda afirma a impossibilidade de suprimir a intervenção do tempo nas suas adaptações e a impossibilidade, portanto, de impor-se, de momento, a um povo, uma civilização incompatível com o gráo do seu desenvolvimento intelectual.

"E' um dogma em biologia, escreveu o Dr. Anselmo da Fonseca (Memoria Histo rica da Faculdade da Bahia, 1892) que, ainda que todos os seres vivos — amimais e vegetais — se possam adaptar às condições mais diversas e que, ainda que o homem, particularmente o mais civilizado, seja de todos eles o mais adaptável e o mais perfectível, essas adaptações não se fazem, não se podem fazer senão pouco a pouco, gradativamente e com grande lentidão. A historia mostra que este principio é igualmente verdadeiro no domínio social e que ele se entende com os meios intelectuais e morais, ou superorgânicos, do mesmo modo que com os físicos como o clima... Todavia tem-se pretendido, não obstante o Natura non facit saltus de Linneo, fazer um povo selvagem, ou bárbaro transpor, no curso da vida de uma geração, o caminho percorrido pelas nações civilizadas durante séculos, como se fosse possível suprimir a lei da herança, dispensar as lentas acumulações hereditárias e prescindir da ação necessária do tempo. Houve até quem pretendes-se civilizar os algerinos, fazendo-os conhecer os direitos do homem e do cidadão, cuja Declaração chegou a ser lida publica e solenemente ás massas, que sem duvida nada perceberam, além das pompas do espetáculo."

São de uma outra ordem — e sempre incapazes de invalidar estes princípios — os casos de conversão moral em uma só geração, de que fala Tarde. Com inteira aplicação a esta tese escreveu o Dr. Letourneau (Sociologie):

"Para crer que em um tour de main e recorrendo à força, se pode transformar a moralidade de um povo, é preciso ser missionário. O estado mental de uma raça, seus apetites, suas tendências resumem a vida mesma dessa raça, a serie das impressões cerebrais, dos feitos e façanhas de uma cadeia inteira de geração, e para apagar o traço dos séculos, é indispensável uma longa educação, cujo efeito se transmita de pais a filhos."

Ensinado pela experiência das catequeses, nenhum povo mais do que o brasileiro pode dar testemunho das grandes verdades contidas nestes conceitos.

O que é feito hoje das civilizações bárbaras brilhantes, complexas e poderosas que, ao tempo da descoberta da América, ocupavam o México e o Peru?

Dissolveram-se, desapareceram totalmente na concorrência social com a civilização européia, muito mais polida e adiantada. Onde estão as colônias prosperas e civilizadas dos selvagens brasileiros que a abnegação sincera e convencida dos nossos missionários se gloriava, em santa ingenuidade, de haver conquistado para o rebanho do Senhor?

A verdade é que o selvagem americano erra ainda hoje nos centros desertos das nossas florestas virgens, sempre refratário e sempre a fugir da civilização européia, que de todos os lados o assedia e aperta, preparando ao mesmo tempo a sua próxima extinção total. A verdade é que apenas pela mestiçagem se pode ele incorporar á nossa população, incapaz como estava socialmente, de receber e adotar por si a civilização européia importada com os colonizadores.

Ninguém irá acreditar agora que o insucesso tremendo dessa campanha gigantesca de civilização e conversão, sustentada por homens de levantados intuitos e de cada um dos quais a fé, a convicção religiosa, que os animava, fazia um herói, tivesse sido ocasionada apenas por erros e defeitos de orientação e modo de conduzi-la.

As concepções errôneas da psicologia espiritualista haviam, de fato, preparado, em suas falsas promessas, o insucesso de tão infundadas esperanças.

A causa foi, pois, positiva e material — a necessidade de tempo e a incapacidade orgânica dos aborígines para a adaptação social que se exigia deles.

"Se a natureza moral de um povo, escreveu dos indígenas brasileiros um homem profundamente convencido de sua educabilidade (Couto de Magalhães, O Selvagem, pagina 191), fosse como uma tira de papel, onde se escreve quanto nos vem á cabeça, então seria tão fácil mudar-lhes os costumes como é fácil escrever. Feliz ou infelizmente não- é assim. Esses costumes rudes são mais tenazes do que os de um povo civilizado; entrelaçam-se com seus sentimentos, suas necessidades e até suas crenças e superstições religiosas. O mais rudimentar conhecimento da natureza faz ver que é impossível alterar essas cousas sem o decurso de algumas gerações e por outro meio que não seja a educação do menino, especial e dirigida para esse fim e com vistas de reduzi-lo a interprete que sirva de laço entre o índio e o cristão." O estudo das raças inferiores tem fornecido à ciência exemplos bem observados dessa incapacidade orgânica, cerebral.

A resistência oposta por ela é quase invencível, mantendo-se latente mesmo naqueles casos em que o sucesso pareceu mais completo. "Às vezes, diz o Dr. Letoumeau (Sociologie), nos polinesianos educados á européia, o instinto selvagem, a tenaz influencia ancestral acabam por predominar e, uma vez chegado à idade adulta, o neófito, para voltar aos bosques, sacode, mau grado seu, o jugo da civilização estrangeira. Marsden observou um fato destes na, Nova Zelândia em um Taitiano, educado nas escolas de Port-Jackson, para onde tinha sido levado na idade de onze anos."

Qualquer que seja a reserva com que tenhamos de aceitar narrações desta natureza, pois vemos o Dr. Letourneau afirmar, sob a informação de Peschel, o caso inexato de um botocudo doutorado em medicina por esta faculdade, e que, num momento dado, abandonou tudo para voltar às selvas, sempre é indiscutível que nelas se contem muita verdade.

Conhece-se bem no Brasil quanto é forte a influencia ancestral nos indígenas e a facilidade com que os já reputados civilizados voltam à vida de selvagem. Pessoalmente conheço fatos desta espécie, ocorridos no Estado do Maranhão, onde a cargo de pessoa de minha família está a direção de uma das colônias dos indígenas soidisant civilizados.

Mas todos estes facos são apenas documentos comprobatórios das leis gerais do desenvolvimento mental no seu mecanismo filogenético.

Constituem os princípios básicos e fundamentais da psicologia moderna, que o másculo esforço da escola inglesa destacou da biologia comtista e concedeu foros de ciência distinta.

Cultivada e considerada hoje condição imprescindível de toda boa instrução fundamental, eles devem ser do domínio comum e não requerem, por isso, especial e maior desenvolvimento para as aplicações que passo a fazer.

II. Aplicado à gênese das idéias do bem e do mal, do justo e do injusto, do direito e do dever — base da moral e suposto fundamento do direito de punir na escola criminalista clássica — , o método comparativo, que vimos operar tão grande revolução na psicologia, demonstra que, longe de uma procedência sobrenatural ou supra-sensível, essas idéias não são mais do que o resultado ideal da elaboração psíquica por que passou o sentimento instintivo de defesa fatal e mesmo inconsciente nas suas manifestações reflexas precordiais.

A ineidade delias, verificada pela análise subjetiva nas raças superiores e que pareceu justificar a crença na sua proveniência extra natural, se explica ao contrario muito naturalmente pela procedência hereditária, legado que foi de muitos séculos de repetição e aperfeiçoamento, o que acabou por identifica-las e torna-las inerentes ao aperfeiçoamento psíquico da humanidade.

Todavia, nos domínios das legislações penais reinam ainda como princípios soberanos os velhos conceitos metafísicos da filosofia espiritualista.

Escolhida dentre muitos outros exemplos que fora descabido citar agora, a recente declaração de Frank, autor da Philosophie du droit penal, basta para no-lo demonstrar. "Não quero tocar na lei penal escrita, diz ele na introdução da sua obra, senão para submete-la á verificação dessa lei eterna de que fala Cicero e que é a mesma em Atenas como em Roma e cujo texto não se acha em parte alguma a não ser na razão divina e na consciência do gênero humano." "Esta velha doutrina da ineidade e uniformidade das idéias do bem e do mal, do justo e do injusto em todos os cérebros humanos, quaisquer que sejam o país e a raça, observa Letourneau (L'évolution juridique, etc), é ainda, como sabemos, ensinada oficialmente em toda a Europa; mas ela não se poderia manter um instante em face dos grandes fatos de observação, postos em evidencia pela antropologia, e para acredita-la fundada, é preciso não ter em menor conta três quartas partes da humanidade."

Com efeito, a universalidade e a identidade dessas idéias e sentimentos são desmentidas de um modo formal pelo exame comparativo do critério de reprovação ou louvor, de criminalidade ou permissão, de punição ou de premio, que em uma época dada emprestaram os diversos povos a certos atos, ou que, para um mesmo povo, tiveram eles no decurso da sua evolução social.

"Que as diversas famílias antropológicas mostram um modo diverso de compreender as idéias morais e jurídicas e tenham por isso uma delinqüência especial, escreve Ziino (Medicina Legale), é um fato que só pode contradizer aquele que, submisso a velhos prejuízos de escola, considera o crime como alguma cousa de imutável, de absurdo, uma ofensa á Divindade, uma contravenção ás leis eternas que o Criador imprimiu na consciência humana. Para um observador atento e despido de prejuízos, o crime não é mais do que um conceito relativo, à semelhança do direito de que é a negação; resulta daí que o que é para nós ação delituosa pode não ser tal para outros povos da terra; que ato merecedor de castigo em tempos idos pode bem ser tido hoje por digno de econômicos: nos elementos constitutivos dos crimes em particular. E a mim me parece tão evidente este principio que não insisto em demonstra-lo: dele terei de dar exemplos luminosos quando me ocupar do homicídio, do aborto, do infanticídio, dos atentados contra os bons costumes, etc."

"Retenhamos, sobretudo, este fato, escrevia Tarde na Criminalitê Comparêe, que a gravidade proporcional dos diversos crimes muda consideravelmente de idade em idade. Na idade média, o maior dos crimes era o sacrilégio; depois vinham os atos de bestialidade ou de sodomia e bem longe em seguida o homicídio e o roubo. No Egito e na Grécia era o fato de deixar os pais sem sepultura. A preguiça, nas nossas sociedades laboriosas, tende a tornar-se o atentado mais grave, ao passo que outrora o trabalho era degradante. Talvez venha ainda um momento em que o crime capital, num globo excessivamente aglomerado, seja ter uma família numerosa, ao passo que outrora a vergonha era não ter filhos. Nenhum de nós pode se lisonjear de não ser um criminoso nato relativamente a um estado social dado, passado, futuro ou possível."

"Passando de uma civilização a outra, ou percorrendo as fases sucessivas de uma mesma civilização, afirma ele na Philosopie pénale, vemos certos fatos cair da categoria dos grandes crimes na dos delitos mais pequenos e tornar-se por fim lícitos se não louváveis; por exemplo, da idade média até hoje, o livre pensamento religioso, a blasfêmia, a vagabundagem, o furto de caça, o contrabando, o adultério, a sodomia: ou o inverso, de lícitos, de louváveis que eram, passar a ligeiramente delituosos e depois a criminosos ; por exemplo, da antiguidade á idade média, o aborto, o infanticídio, a pederastia, a fornicação.

"Este duplo movimento de transformação que consiste nas qualificações diferentes de um mesmo fato ora permitido, ora punido, se opera sob a ação da lógica inconsciente que preside a todas as transformações da sociedade e que tende a pôr de acordo as crenças com as necessidades, as crenças e as necessidades com os atos." "Não indagaremos, diz por sua vez Garofalo (La Criminalogie), se tudo o que é crime para o nosso tempo e a nossa sociedade teve sempre e por toda parte o mesmo cunho e vice-versa. "A questão seria quase pueril. Quem se não lembra de ter lido que nos costumes de muitos povos, o homicídio para vingar um homicídio não somente era tolerado, mas, que para os filhos da vítima, constituía o mais sagrado dos deveres? que o duelo tem sido ora punido com as penas mais severas, ora legalizado a ponto de constituir a principal das formas processuais ? que a heresia, a feitiçaria, o sacrilégio, que eram considerados outrora os crimes mais detestáveis, desapareceram atualmente de todos os códigos dos povos civilizados? que a pilhagem de um navio estrangeiros naufragado era autorizada por lei em certos países? que o salteamento e a pirataria constituíram durante séculos os meios de existência de povos hoje civilizados? Que finalmente, saindo da raça européia, encontram-se antes de chegar aos selvagens, sociedades semi-civilizadas que autorizam o infanticídio e a venda das crianças, que honram a prostituição e fizeram mesmo do adultério uma instituição ? Estes fatos são muito conhecidos para que seja necessário insistir neles."

Não tem outro fundamento senão o antagonismo entre a criminalidade atual e a dos homens primitivos, dos selvagens, a origem atávica do criminoso, sustentada nos primeiros trabalhos de Lombroso, e ainda hoje defendida em toda a sua pureza, entre outros, pelo distinto alienista francês, Sr. Morandon de Montyel. Esta divergência, esta oposição no modo de apreciar a criminalidade nos diferentes povos, que julguei necessário comprovar com o testemunho acorde de todas as citações lidas, tem sido interpretada principalmente de dois modos distintos; porque também de dois modos distintos se tem compreendido nas raças humanas o desenvolvimento do senso moral, da infração de cujos ditames o crime é principalmente uma função. Ou, os múltiplos fatores da evolução sociológica, que determinam a marcha progressiva da civilização dos povos, foram fazendo nascer gradualmente, nas suas fases sucessivas, sentimentos morais novos, que tiveram como conseqüência modificar paralelamente o modo de apreciar o caráter delituoso dos mesmos atos, de acordo com as exigências sociais das novas épocas ou civilizações; Ou, os mesmos sentimentos, brotados na alma humana em data muito remota da evolução filogenética, daí por diante não fizeram mais do que aperfeiçoar-se em extensão, dilatando-se a mais e mais, até abranger em seu seio como em uma só família, a humanidade inteira. O segundo ponto de vista, que é o do professor Garofalo, pressupõe a existência de um critério fundamental da criminalidade, pelo menos do delito natural, na violação do senso moral médio, representado pelos dois sentimentos básicos da probidade e da piedade, existentes em todos os povos chegados a uma certa fase de desenvolvimento.

As diferenças, que a ciência constata, no tempo e no espaço, no modo de considerar os atos criminosos, ele as explica pelo sentido em que se dá o aperfeiçoamento social desses sentimentos básicos. Gradualmente se vão tornando mais compreensivos, passando do clã familiar à tribo, desta á cidade, da cidade à pátria, e elevando-se finalmente da pátria à humanidade. Desta sorte, o homicídio, por exemplo, que só era crime quando praticado num membro da própria tribo e ação permitida e até meritória quando recaía em membro de uma tribo estranha, mais tarde, quando o sentimento de piedade englobou todas as tribos numa só família, adquiriu em todos os casos a qualidade delituosa que só tinha naquela espécie particular. Por este modo procura Garofalo responder á justa alegação de Aramburu'de que a sua teoria importa uma contradição aos princípios da moral evolucionista.

Se, como parece, a doutrina desenvolvida brilhantemente pelo eminente criminalista italiano não encerra toda a verdade em matéria de evolução da moral, todavia é justo reconhecer que com ela deve estar boa parte do seu mecanismo filogenético.

E isto reconhece o próprio Tarde, que aliás se inclina para uma outra ordem de explicação causal.

Para os evolucionistas, a formação de uma idéia abstrata de justiça, tal como a possuímos hoje, se operou lentamente no cérebro humano por força do aperfeiçoamento social, extremamente moroso e demorado, da humanidade.

O movimento reflexo e instintivo de defesa individual transformou-se nos clãs familiares, por exigência dessa forma de organização social, no talião, que já era uma vingança disciplinada e racional. Desta, nasceu naturalmente a composição pecuniária como mais proveitosa aos outros membros da horda ou tribo.

Até então nada há nestes atos que possa lembrar a existência de uma idéia de justiça. Mas as cerimônias processuais, mais ou menos rudimentares, daqueles primeiros atos jurídicos foram guardadas pela tradição e transmitidas às gerações que se seguiram. Com o correr dos tempos confundiram-se como as crenças religiosas, porque os padres, diz Letourneau, que se julgaram sempre depositários natos das tradições dos povos, delias se apoderaram.

Com esta atribuição a uma origem divina, começou a formar-se a idéia abstrata de uma justiça impessoal, perdida como já estava com o tempo a lembrança da sua procedência de uma vingança toda individual. O regime monárquico, que sucedeu à primitiva organização republicana, transferiu de Deus para os reis que, no espírito das sociedades bárbaras, com ele muitas vezes se identificavam, a fonte e a procedência de todo o direito de punir.

E daí concluiu-se a abstração do termo justiça, como representando a existência de um sentimento inato, impresso de todos os tempos na alma humana e correspondendo a existência de ordem superior, sem a menor ligação aos interesses materiais e egoísticos da vida terrena. Mas a justiça conservou sempre, na sua significação etimológica — cousa ordenada — os vestígios disfarçados da sua humildade genealógica.

III. Por conseguinte, para que se possa exigir de um povo que todos os seus representantes tenham o mesmo modo de sentir em relação ao crime, que formem todos da ação delituosa e punível o mesmo conceito, para que a pena, aferida pela imputabilidade, não se torne um absurdo, um contra-senso, indispensável se faz que esse povo tenha chegado ao grau de homogeneidade que Tarde, inspirando-se nas suas teorias sobre a imitação, descreveu magistralmente como o elemento social da identidade em que, em sua teoria, faz ele consistir o critério da responsabilidade penal.

"Para isso, é preciso, diz Tarde (Philosophie pénale), que as inclinações naturais, quaisquer que sejam, tenham recebido, em larga escala, do exemplo ambiente, da educação comum, do costume reinante, uma direção particular que as tenha especificado, que tenha precisado a fome na necessidade de comer iguarias francesas ou iguarias asiáticas, a sede na necessidade de beber vinho ou chá, o sentimento sexual no gosto de estilo mundano ou idílio campestre, em amor do baile em França ou dos bateis floridos na China, a curiosidade inata em paixão de viagens ou de leitura, de tais viagens ou de tais leituras, etc. Quando a sociedade tem fundido assim á sua imagem todas as funções e todas as tendências orgânicas do individuo, o individuo não faz um movimento, um gesto, que não seja orientado para um fim designado pela sociedade. Além disto, é preciso que, em larga escala também, as sensações brutas fornecidas pelo corpo e a natureza exterior em face um do outro, tenham sido profundamente elaboradas pelas convenções, pela instrução, pela tradição, e convertidas deste modo em um conjunto de idéias precisas, de juízos e de prejuízos, conformes em maioria às crenças dos outros, ao gênio da língua, ao espírito da religião ou da filosofia dominante, à autoridade dos avós ou dos grandes contemporâneos. Depois disto, pense o que pensar o individuo, ele há de pensar com o cérebro social, ele há de crer sob palavra nas suas maiores afoitezas de espírito e não fará mais do que repetir uma lição ensinada pela sociedade, ou combinar, se é livre e fecundo, repetição semelhantes em uma síntese original".

IV. Mas, se a análise científica derrui assim pela base a imutabilidade e o absolutismo das idéias de justiça e de direito, dando-lhes apenas um valor relativo e variável, submetido a exame igual não oferece maior consistência o pressuposto da vontade livre, critério e fundamento da imputabilidade. Uma vez posta à margem a questão metafísica e insolúvel do livre arbítrio, o problema da vontade, tal como o pode estudar a psicologia científica, não escapa às contingências do desenvolvimento evolutivo da mentalidade humana.

"No individuo, diz Ribot (Maladies de la volonté). a coordenação automática precede a coordenação nascida dos desejos e das paixões, que, por sua vez, precede a coordenação voluntária, cujas formas mais simples precedem as mais complexas.

"No desenvolvimento das espécies (se se admite a teoria da evolução), as formas inferiores da atividade existiram sós durante séculos; depois, com a complexidade crescente das coordenações, veio tempo em que a vontade apareceu".

Feito, pois, deste ponto de vista, o exame da questão da liberdade da vontade não nos pode deixar de levar à mesma conclusão a que, em conferencia anterior, já cheguei pela análise psicológica direta.

Esta conclusão foi claramente formulada por Herbert Spencer nos seguintes termos : "Da lei universal, que, em igualdade de circunstâncias a coesão dos estados psíquicos é proporcional á freqüência com que eles se seguiram um ao outro na experiência, resulta o corolário inevitável — que toda e qualquer ação deve ser determinada por essas conexões psíquicas que a experiência gerou, seja na vida do individuo, seja nessa vida geral anterior cujos resultados acumulados se tem organizado em sua constituição".

Apenas vos farei notar ainda que num grau de identidade social, como o descrito acima, as conexões psíquicas hereditárias devem constituir um fundo de ação comum a todos os membros da comunhão social, quase que podendo variar apenas as conexões psíquicas individuais.

V. De todo este estudo, que ainda constitui somente as premissas das conclusões a cuja busca ando eu para a legislação criminal brasileira, resulta, pois:

Que a cada fase da evolução social de um povo, e ainda melhor, a cada fase da evolução da humanidade, se comparam raças antropologicamente distintas, corresponde uma criminalidade própria, em harmonia e de acordo com o grau do seu desenvolvimento intelectual e moral.

Que há impossibilidade material, orgânica, a que os representantes das fases inferiores da evolução social passem bruscamente em uma só geração, sem transição lenta e gradual, ao grau de cultura mental e social das fases superiores; Que, portanto, perante as conclusões tanto da sociologia, como da psicologia moderna, o postulado da vontade livre como base da responsabilidade penal, só se pode discutir sem flagrante absurdo, quando for aplacável a uma agremiação social muito homogênea, chegada a um mesmo grau de cultura mental média."


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Fonte:
Nina Rodrigues: “As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil”. Editora Guaranabra.

Um comentário:

  1. What a stupid text. I learned NOTHING about Nina Rodrigues.
    PS: I know how to read in portuguese, but i don't know how to write, sorry.

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