A noção de enfermidade na medicina ipocrático-galênica

A NATUREZA DO HOMEM E A MELHOR CONSTITUIÇÃO DO CORPO: A NOÇÃO DE ENFERMIDADE NA MEDICINA IPOCRÁTICO-GALÊNICA

“Entre diversos textos que integram o Corpus hippocraticum, discutiremos um pouco sobre algumas concepções que aparecem no tratado Da natureza do homem e de Galeno, A melhor condição de nossos corpos.

Os 70 textos que integram a Coleção hipocrática apresentam algumas dificuldades. Estas não se referem somente ao idioma, em nosso caso, mas dizem respeito também à sua autoria, estilos diferentes, muitas vezes apresentando concepções antagônicas sobre cirurgia, ginecologia, medicina interna, higiene e método terapêutico. dúvidas, por exemplo, de que o tratado Da natureza do homem seja da lavra de Hipócrates. É possível, mas pode ser que o autor seja seu discípulo e genro Pólibo.

Vale lembrar ainda que, em obras dos séculos V e IV a.C., que integram o Corpus, indicavam a influencia do ar e dos lugares no aparecimento das epidemias, da constituição dos fetos e dos temperamentos.

Da Natureza do Homem
trata da composição corpo e da disposição e propriedades dos humores. Nele é feita a relação entre estes e as estações do ano.

O tratado se inicia com uma breve revisão a respeito das divergências existentes sobre a natureza humana e a substância que compõe corpo do homem:

Digo, pois, não ser o homem, por completo, nem ar nem fogo nem água nem terra nem nenhum outro elemento que não é manifesto no interior do próprio homem. Mas deixo de lado aqueles que querem falar tais coisas.

O autor critica as concepções de outros autores que admitem ser o corpo constituído por um só elemento, sem nunca terem chegado a uma conclusão. Ele observa nisso a falta de conhecimento a respeito do que dizem. Pois a contradição, a seu ver, significa justamente a falta de saber. Mas não é nesta discussão que o texto se mantém, ela é apenas introdutória. De imediato o aviso de que, “além do que concerne à medicina, este discurso não é interessante de ser ouvido”, alerta que o objetivo é apresentar algo que é diferente e divergente dessas teorias. Ele assim se expressou:

Alguns médicos dizem que o homem é apenas sangue; outros afirmam ser o homem bile; outros ainda fleuma, e chegam, todos elas a mesma conclusão; com efeito, dizem haver uma substancia, a qual cada um quer nomear a sua maneira, e esta substancia, sendo uma, muda o aspecto e a propriedade, coagida pelo frio e pelo calor, e se torna doce e amarga, clara e escura, e toma toda a sorte de outras características.

O autor do tratado escreveu: “digo que se o homem fosse uma unidade, nunca sofreria”. E completou: “não haveria porque sofrer e ainda assim se sofresse, haveria então um remédio único”. Mas, continuou, “há muitos remédios, pois há muitas substâncias no corpo, e o estado e dinamismo destas substâncias, pois elas se esquentam, esfriam, secam e se umedecem, é que geram as doenças”. A doença é, nesta perspectiva, o arranjo das substâncias no interior do próprio corpo. Assim, o homem adoece por causas internas, por influência do clima estas substâncias são preponderantes ou não.

O que segue é um conjunto de objeções e argumentos contra a proposta de o homem ser apenas sangue ou outra substância. O autor argumenta que as substâncias que compõem o homem são sempre as mesmas, seja ele jovem ou velho, no tempo frio ou quente. E ainda, cada substância aumenta ou diminui dentro do corpo.

No tratado Da Natureza do homem aparece a concepção do corpo do homem ser constituído por quatro humores: contém sangue, fleuma, bile amarela e negra. Estas são as substancia no que existem no corpo do homem e pela sua disposição, ele adoece ou mantém a saúde. Sua saúde é mantida quando esses humores estão em harmonia tanto em proporção, quanto em relação às suas propriedades e quantidades, mas sobretudo, quando são misturados.

O homem, por outro lado, adoece quando há falta ou excesso de um desses humores, ou então quando ele se separa no corpo e não se une aos demais. Pois, se um dos humores se desloca para adiante de seu lugar, não só este lugar adoece, mas também o local onde ele se aloja provoca dor. Da mesma maneira, causará dor e sofrimento se este humor sair do corpo em excesso.

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Cada um destes humores possui características e propriedades particulares. O fleuma, é o mais frio do humores. No inverno ele aumenta no corpo do homem, pois é o que está mais de acordo com aquela estação. Ele também é o mais viscoso. No inverno, os homens escarram , as inchações tornam-se mais brancas e aparecem outras doenças fleumáticas.

Na primavera o fleuma ainda está presente no corpo, mas com a diminuição do frio, aumenta o sangue. O sangue aumenta por causa dos dias quentes e dos temporais. A primavera possui características de acordo com este humor: quente e úmida. Os homens são tomados por disenterias, o sangue lhes escorre pelo nariz.

No verão, o sangue mantém sua força e a bile aumenta no corpo e permanece assim até o outono. A bile amarela, quente e seca, portanto, domina o corpo no verão. Os homens, no outono, vomitam bile, e purgam muito biliosamente.

A bile negra, seca e fria, no outono é abundante e vigorosa. Mas quando chega o inverno, a bile torna-se parca e o fleuma aumenta novamente. “O corpo do homem tem permanentemente todos estes humores que, segundo a estação anual vigente, tornam-se, ora mais, ora menos abundantes, cada qual de acordo com sua proporção e com sua natureza”.

Se os humores se misturam desta forma, segue o texto, as doenças que aumentam no inverno logo diminuirão com a chegada da primavera e do verão. Do mesmo modo as que predominam no verão, devem no outono diminuir de intensidade até que chegue novamente o inverno. Este princípio guiará o médico nos remédios e cuidados que deverá tomar com o doente. E ainda, a doenças que for além do período de cada estação durará um ano.

As doenças que a repleção gera serão curadas com a evacuação. Do mesmo modo, as doenças causadas pela evacuação excessiva serão curadas com a retenção. As enfermidades causadas por exercícios excessivos são curadas pela inércia. Para resumir, diz o texto:

O médico deve pôr-se em oposição às constituições das doenças, às características físicas, às estações e às idades, e relaxar o que estiver tenso, e retesar o que estiver relaxado. Pois assim, o sofrimento cessaria de fato, e parece-me ser isso a cura. As doenças provêm umas das das dietas, outras do ar, o qual inspiramos para viver.

De acordo com o autor, quando muitos homens são tomados pela mesma enfermidade ao mesmo tempo, a causa comum deve ser buscada. E segundo ele, esta causa é o ar. Pois é evidente, que a dieta não é a causa, no caso das epidemias, já que diversos tipos de homens e mulheres são tomados pela mesma enfermidade. Mas, por outro lado, quando indivíduos diferentes são atingidos por enfermidades diferentes, as dietas, segundo o autor, desempenham papel central na causa e na cura. Sendo assim, a forma de tratamento é a partir da observação das excreções e prescrição de dietas adequadas.

Quanto às epidemias, o autor escreve:

Quando se instaura uma epidemia, é evidente que as dietas não são sua causa; mas o que respiramos, este sim, é a causa, e é obvio que este paira contendo alguma secreção insalubre. É preciso nesse momento de epidemia, dar tais conselhos aos homens: não mudar suas dietas, porque elas não são a causa da doença; estar atento ao corpo que emagrece e se enfraquece ao máximo, eliminando aos poucos a bebida e a comida das quais está acostumado a fazer uso (...) Deve, ainda, ser observado que o ar aspirado pela boca seja menos volumoso e o mais puro possível, afastando-se, o quanto se puder, dentro de seus países, das regiões nas quais a doença tiver se assentado, e emagrecendo os corpos, pois assim os homens usam o ar com menos força e freqüência.

O ar, carregado de alguma propriedade, secreção insalubre, é o agente da epidemia. O ar causa a doença, o ar insalubre, de qualidade que é inspirado, mas não existe a idéia de que exista alguma coisa no ar, algum organismo muito pequeno, que não seja visível que venha de uma pessoa e passe para outra. No entanto, o povo intuía isso pois lacrava as casas em que os doentes que haviam morrido se encontravam antes, queimava seus objetos pessoais, etc. A população em geral parecia, ao contrário do saber médico, admitir a transmissão de doenças de uma pessoa para outra. Por exemplo, a peste que tomou Atenas no ano de 430 a.C foi descrita por Tucídides:

A terrível doença matava em poucos dias. Quando isso não ocorria, produzia graves danos nas mãos, pés e orgão genitais. O cadáveres eram deixados pelo chão e temendo contrair a doença, os parentes abandonavam os doentes. Os costumes religiosos,a lei e a honra foram deixados de lado nos momentos de maior mortalidade. Não era possível queimar ou enterrar os corpos segundo a tradição ateniense. A morte atingia a todos.

Parece na descrição que o povo acreditava que a doença poderia ser transmitida, ao contrário do que dizia o conhecimento médico.

No Corpus Hipocrático encontramos em destaque o papel do ar, das águas e dos lugares como agentes de doenças. Conforme o texto Ar, água e lugares, todo médico que chegasse a uma cidade desconhecida deveria considerar o aspecto e a direção do vento, já que os efeitos da saúde da população variavam de acordo com sua localização da própria cidade relativa ao vento.

Da mesma forma, a natureza da água deveria ser considerada em seus efeitos sobre a saúde.

Mas voltemos à Sobre a natureza do homem. O texto nos apresenta um esquema do corpo e a disposição das veias e artérias com o objetivo, parece-nos, de encontrar remédios e orientar os procedimentos para o alívio e cura das enfermidades: as flebotomias, conhecidas como sangrias no século XVI e XVII no Brasil, são freqüentemente recomendadas como remédios para as dores que acometem o corpo. Seja nas costas, na região lombar ou nos testículos, a flebotomia é recomendada. O procedimento será feito em um lugar específico, de acordo com o sintoma. Deve-se ainda, alerta o texto, cuidar para que as incisões não sejam por demais profundas.

Para os doentes que expelem pus sem estarem com febre, ou para aqueles que a urina é muito carregada de pus sem haver dor, e também para aqueles que as fezes estão cronicamente ensagüentadas, e que têm idade de 35 anos ou são mais velhos, a enfermidade surge por uma mesma causa: a vida penosa enquanto eram trabalhadores mais jovens em oposição a carne mole quando deixam de trabalhar. Tornam-se muito diferentes e têm o corpo muito dividido entre o que era antes e o que se tornou.

Pois, até aqui vemos que a saúde e a doença é justamente o arranjo dos humores no corpo, seu excesso e deslocamento causa sofrimento e toda sorte de dores e sintomas. No que se refere às doenças, a cura, segundo o corpus, implica em um procedimento que busca opor-se a causa da doença. A doença, em resumo, é uma patologia humoral.

A enfermidade e a saúde perdem parte de sua representação mítica e ganham um significado natural. Poderíamos, além das febres e das dores, apresentar a “Doença sagrada”, assim era chamada a epilepsia na Antiguidade, como parte deste “novo” olhar sobre o adoecimento.

Logo na abertura deste tratado vemos a intenção do autor: “Eu não acredito que a 'Doença Sagrada' seja mais divina ou sagrada que qualquer outra doença mas, ao contrário, tem características específicas e causa definitiva”.

Em resumo, o estudo das doenças, de acordo com este tratado deve considerar:

(...) o quanto existe de comum e de individual na natureza humana: na doença, no doente e em quem a prescreve (porque deste depende o seu desenvolvimento favorável ou não); na constituição geral e específica dos fenômenos celestiais, e de cada região, nos costumes do povo, no regime, nas profissões, na idade de cada um; na fala, nas maneiras de ser, no silêncio, no pensamento, no sono, na insônia, nos sonhos (...).

Galeno (século II) se baseou em várias concepções que estão presentes em diversos tratados da coleção hipocrática e propôs a teoria humoral. A seu ver, cada pessoa já nasceria com uma certa combinação ou “tempero” dos quatro humores básicos. Embora pudesse ocorrer que em algumas pessoas os quatro humores estivessem perfeitamente equilibrados, na maioria dos casos haveria a predominância de um ou dois humores. Isso contribuiria tanto para a formação de tipos físicos diferentes como de personalidades diferentes.

Veremos o que o autor propôs no sentido de compreender o adoecimento a partir de sua obra A melhor constituição de nossos corpos. Galeno considerava que:

Nossos corpos são uma mistura de calor, frio, secura e umidade; (2) deve-se distinguir as misturas conforme as diferentes partes do corpo; (3) cada parte do corpo tem uma causa para sua atividade; e (4) todas as partes do corpo terão uma determinada disposição conforme seus propósi
tos.

Segundo o médico de Pérgamo duas causas para a dor em nossos corpos: as influências externas e as excreções originadas a partir da ingestão do alimento.

As influências externas são, por exemplo, quando alguém é aquecido, resfriado, umedecido ou seco além do nível apropriado. Exaustão, tristeza, insônia e aborrecimentos, entre outras, podem ser incluídos como efeito das influências exteriores ao corpo.

Uma boa saúde esta intimamente ligada a uma boa combinação dos humores. Esta proporciona também imunidade para os males que podem acometer o corpo e resistência à tristeza, fúria, insônia, aborrecimentos e, entre outras causas e doenças, a peste. Em resumo, o corpo estará fragilizado e propenso à enfermidade conforme a combinação de seus humores, seu excesso ou escassez.

Como vimos acima, a condição adequada dos humores auxilia o corpo a resistir às febres e às doenças em geral, incluindo a peste. Embora a peste atingisse muitas pessoas ao mesmo tempo, algumas sobreviviam e não mais contraiam a doença.

Para Galeno, os humores e sua combinação e deslocamento não só podem conduzir à enfermidade, ao aparecimento do sofrimento, mas influenciam no enfrentamento da própria doença. A saúde reside no ideal de encontrar uma combinação adequada dos humores, conforme sua quantidade e qualidade.

Vemos assim que a enfermidade no conjunto destes textos perde seu caráter mítico, como vimos em Sófocles, e adquire um aspecto racionalista.

Resta-nos ainda lembrar um aspecto sobre o dinamismo psíquico: para Galeno as faculdades da alma estavam localizadas no cérebro, no coração e no fígado. Revendo as idéias de Platão, Aristóteles e dos estóicos, ele associou a disposição e prevalência das misturas e temperamentos do corpo à loucura, à sabedoria e às paixões.

No que se refere as paixões, os diferentes temperamentos produziam diferentes efeitos (covardia, raiva, melancolia, etc). Estas concepções foram estudadas e revistas por Tomás de Aquino que ao temperamento atribuiu a causa disponente, o que de material nas paixões. À alma, a causa principal. Esta controvérsia persistiu até a idade moderna e estão presentes, como veremos, nas idéias sobre as causas primárias e secundárias da doença.
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Fonte:
Fernando A. Figueira do Nascimento: "A idéia de enfermidade em um sermão de Padre Antônio Vieira: Uma contribuição aos estudos sobre as idéias psicológicas no Brasil”. (Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História da Ciência, sob a orientação da Profa. Dra. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins). São Paulo, 2010.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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