Raça e sangue no Brasil do fim do século XIX

"No final do século XIX, o Brasil era apontado como um caso único de miscigenação racial pelos visitantes estrangeiros e intelectuais brasileiros. O mestiço era caracterizado como um indivíduo degenerado que representava a deficiência de capacidades físicas, morais e intelectuais para que os brasileiros ascenderem ao nível do desenvolvimento sócio-econômico europeu. Essa visão pessimista, embora não tivesse surgido naquele momento, foi fortemente ligada à imagem do Brasil durante as expedições científicas de viajantes europeus (Schwarcz, 1993, p. 11-14). Tais debates foram, contudo, iniciados no início do século XIX a partir das mudanças que levaram o Brasil de colônia do Império português a um país independente. Segundo DaMatta (op. cit., p. 68), “é impossível separar e tornar-se independente, sem a conseqüente busca de uma identidade”. E foi isto que ocorreu no país, uma mobilização em direção à constituição de uma racionalização própria, de uma nova noção de pertencimento, que antes estavam subordinadas a Portugal. De acordo com DaMatta (ibid.), esta mobilização deu origem à “fábula das três raças” que passou a diferenciar o Brasil como sociedade e singularizar sua cultura.

O conceito de raça não se limitou à caracterização biológica dos indivíduo. Quando as teorias raciais obtiveram maior repercussão no Brasil durante o final do século XIX, a hierarquia estabelecida pelo sistema escravocrata, que qualificava o negro como um indivíduo mais propenso ao trabalho árduo e ao comportamento servil, já se encontrava abalada pelas idéias abolicionistas e pela promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871. Além disso, a afirmação dos centros de ensino nacionais como referências às discussões dos problemas do país diversificou as perspectivas sobre a situação racial da população brasileira (Schwarcz, 1993, p. 24-27). Segundo Schwarcz (ibid., p. 18), a adoção das teorias raciais seguiu um trajeto similar entre as diferentes áreas de estudo no Brasil, ao invés da cópia dos modelos desenvolvidos na Europa, os intelectuais brasileiros selecionaram e, muitas vezes modificaram, as teorias que eram mais convenientes às possibilidades do Brasil ter um futuro viável. No tocante aos médicos, cujas apropriações nos interessam para este estudo, a noção de raça passou a ser predominantemente um problema de saúde. Embora as teorias deterministas raciais ainda fossem presentes entre os médicos de então, principalmente através da medicina legal, ressoava cada vez mais a concepção de que a raça dependia, sobretudo, da higiene e do saneamento (ibid., p. 205-208).

Em paralelo a tais idéias, propagava-se através de intelectuais brasileiros que o branqueamento da população, por meio da miscigenação, seria a solução para o Brasil (Skidmore, 1976, p. 192-239). Entre os propagandistas de tais concepções, destacou-se o então diretor do Museu Nacional, o médico João Batista de Lacerda, que, em 1911, indicou que os mestiços e os negros estariam extintos no país ao final do século XX 7. Embora fosse asseverado que o mestiço era um elemento degenerado da nação, muitos intelectuais já estavam qualificando-o como a verdadeira identidade do Brasil, independentemente de representar um mal ou bem para o país. Este foi o caso de Silvio Romero que afirmava que “os brancos puros e os negros puros que existem no país, e ainda não estão mesclados pelo sangue, já estão mestiçados pelas idéias e costumes” (Santos & Maio, 2004, p. 65).

As questões raciais suscitadas pelo movimento sanitarista da Primeira República e pelas idéias de branqueamento da população estiveram em evidência durante o que se chamou de o movimento eugênico brasileiro. A eugenia, conforme Stepan (2005[1991], p. 9), era um movimento social e científico que postulava o melhoramento físico e mental da espécie humana através da interferência no processo reprodutivo. A principal preocupação deste movimento era a possibilidade de administrar a hereditariedade, que era compreendida no Brasil através de duas perspectivas distintas: a mendeliana, que postulava que as características físicas e intelectuais não eram adquiridas pelas circunstâncias do ambiente, mas por caracteres herdados, e a neolamarkiana, que assegurava que o ambiente interferia de maneira decisiva na modificação daquelas características9. Segundo Stepan (2004, passim), a vertente da eugenia de origem brasileira privilegiou as medidas de saneamento e a educação como as formas de se combater a alegada degeneração da raça.

---
É isso!


Fonte:
JULIANA MANZONI CAVALCANTI: “Doença, Sangue e Raça: o caso da anemia falciforme no Brasil, 1933-1949”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de concentração: História das Ciências.Orientador: Prof. Dr. MARCOS CHOR MAIO). Rio de Janeiro, 2007.

Nota:

O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

3 comentários:

  1. Meus parabéns excelente blog ajudou muito. Riquíssimo em informação bom mesmo...

    ResponderExcluir
  2. Parabéns, ótimo conteúdo!

    ResponderExcluir

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!